O mito de pessoas
engolidas por animais e depois encontradas vivas é comum a diversas culturas
europeias. Os gobblers são muitas
vezes repteis e fazem parte de variadas lendas europeias e mediterrânicas.
A história mais conhecida
provém do Médio Oriente e ficou registada no Antigo Testamento. Curiosamente, a
Bíblia (pelo menos a versão que possuo) não refere uma baleia, mas sim um
grande peixe. Tendo Jonas mostrado arrependimento por ter desobedecido ao Senhor,
o peixe vomitou o profeta ileso na terra, após três dias e três noites passados
no seu ventre.
Na Península Ibérica, o culto
da serpente parece anterior tanto ao contacto com fenícios, gregos e
cartagineses, como à chegada dos povos indo-europeus conhecedores da metalurgia
do ferro e geralmente designados por celtas. O intercâmbio de culturas produziu
um grande número de variações mitológicas em que predominam, ora a influência
céltica, ora a mediterrânica.
As velhas narrativas
partilham características comuns, evoluindo ao longo do tempo.
As mais antigas estão
ligadas a serpentes que guardam as fronteiras que levam ao rio flamejante que
conduz ao mundo inferior. Exigem tributo, ou alimentam-se das presas. Noutros
casos, protegem tesouros ocultos e chegam a engolir os incautos que se
aproximam. Serão predadores e guardiões.
Há fórmulas que se
repetem. Nas histórias clássicas, a serpente predadora transfere a sua
sabedoria para a presa engolida, como é o caso da lenda de Santa Margarida. De
certo modo, a cobra é aliada. Ao ser alimentada, compensa quem o faz com
dádivas.
Com o passar do tempo,
vai-se perdendo a noção de benefício e a serpente engolidora passa a ser olhada
como um inimigo. O herói não obtém prendas nem favores mágicos do interior do
réptil e acaba por o matar.
Uma variante consiste no
padrão de duelo com a serpente ou o dragão. Chegamos assim à lenda de S.
George, característica do mundo mediterrânico antigo e espalhada pelo centro da
Europa. Vão sendo introduzidas inovações culturais. Uma donzela é sacrificada
cada ano à serpente devoradora, que é morta pelo herói que não chega a ser
engolido.
Relacionado com os
anteriores, existe um terceiro padrão, o do encantamento. Em tempos históricos talvez mais recentes, nasce a figura da mulher serpente, associada a oráculos ligados
a locais sagrados a que as pessoas acorrem para fazer perguntas e oferecer
presentes.
A Península Ibérica era
conhecida na Antiguidade como Ofiusa (terra de serpentes). Tanto em Espanha
como em Portugal existe um número considerável de lendas que envolvem
serpentes, dragões e rainhas ou mouras encantadas. Habitam a vizinhança de
fontes ou cavernas e são geralmente associadas à água, pois a água, que seria o
ambiente da serpente, remete para o sangue da Grande Deusa ancestral. Na
Península, a serpente é apresentada como um ser benfazejo, que muitas vezes
oferece prendas preciosas.
Voltemo-nos agora para a
África subsaariana. Tive ensejo de publicar, no ano de 2003, uma seleção de
contos tradicionais angolanos. Os monstros ou ogres engolidores são personagens
importantes em sete das 40 histórias curtas então escolhidas.
Em Angola, a influência da
cultura mediterrânica ancestral é provavelmente inexistente. Foi desenvolvido
de forma autónoma um conjunto de lendas que referem monstros engolidores, encarados como inimigos.
Em “O monstro e os dois
rapazes caçadores” (recolha de Carlos Estermann) depois de aberta a barriga do
monstro saíram a salvo todas as pessoas devoradas, assim como os bois, os
cabritos e as galinhas. A forma física do ogre não é descrita.
No conto cuanhama “O filho
do Haikali”, também recolhido por Carlos Estermann, o aspeto físico do monstro
também não é referido. A história termina com a morte do ogre. Todas as pessoas
que ele tinha comido puderam sair-lhe da barriga, vivas e com saúde.
Em “Ngana Samba e os
Ma-Kishi” (recolhido por Héli Chatelain), uma rapariga foi raptada por um ogre
que se casou com ela. Geraram três filhas.
As designações dos ogres
variam conforme as regiões e os dialetos. Di-Kishi é um dos nomes do papão.
Ma-Kishi é o plural de di-Kishi. Em certas zonas são descritos com tendo duas
cabeças. Em toda a parte apreciam carne humana. Em geral, não são muito
espertos.
Em “Os leões e Kimona-Ngombe”
(recolha de Héli Chatelain), os leões com fome apareceram num povoado e deram
aparência de mulher a uma leoa jovem. O dono do cercado casou com ela. A
falsa mulher acabou queimada quando o amo mandou os servidores deitar fogo à
cubata.
Em “A mulher devorada pelo
ogre” (recolha de Carlos Estermann), os monstros deixavam pegadas. Um deles
tinha cauda curta, dois enfeites de concha na barriga e usava a pulseira da
mulher devorada no pulso esquerdo. Depois de o matarem, os filhos esfolaram o ogre
e acabaram por encontrar a mãe viva no dedo mais pequeno do pé esquerdo. Quase
todos os que são devorados por monstros acabam por sair vivos. O problema é
que, para os devorados, o tempo não passa e a mãe, engolida quase vinte anos
antes, tinha a idade dos filhos.
Em “A rapariga e o papão”
(recolha de J. Valente) o ogre capturou uma rapariga. Juntamente com a mulher,
cortaram-na em pedaços e meteram-na na panela. Recomendaram à filha que tomasse
conta da panela, mexendo a carne com uma agulha. Insistiram que usasse o fundo
da agulha e nunca a ponta. A miúda ogre distraiu-se e usou a ponta. A carne que
estava lá dentro uniu-se num corpo e saltou cá para fora. A ressuscitada
atirou-se à cozinheira, cortou-a em pedaços e deitou-a na panela em seu lugar.
Os Ma-Kishi acabaram por comer a própria filha.
Deixei propositadamente
para o fim “A serpente fantasma”, recolhida por J. Valente. Uma enorme serpente
engoliu uma criança. A mãe pediu ajuda a quem pôde. Os socorristas foram todos
tragados. Apareceu finalmente um rapazinho com uma faca afiada. Ao ser engolido,
picou e rasgou com a faca até à cauda. Todos os devorados saíram com vida.
Tratava-se de uma cobra sem qualquer característica humana.
É curioso verificar como a
imaginação é capaz de fabricar de forma independente, na ausência de qualquer
intercâmbio cultural, mitos tão aproximados como os dos monstros que
devoram pessoas e as conservam ilesas nos ventres. Seremos mais parecidos uns com os outros do que nos habituámos a pensar.
BIBLIOGRAFIA
Bru Romo, Margarita e Vasquez-Hoys, Ana. The representation
of the serpent in ancient Iberia. University of Malta Press, 1986.
Chatelain, Héli. Folk Tales of Angola. Boston, 1894.
Estermann, Carlos. Cinquenta contos bantos do Sudoeste de
Angola. Instituto de Investigação Científica de Angola, Luanda, 1971.
Núñez, Eloy Martos, Blanco, Antonio Castaño,
García, Aitana Martos. The serpent as a Pan-Mediterranean myth. Mediterranean
Journal of Social Sciences MCSER Publishing, Rome-Italy Vol6 Nº 4 S2 July 2015.
Trabulo, António. No tempo do Caparandanda. Europress, Lisboa, 2003.
Trabulo, António. No tempo do Caparandanda. Europress, Lisboa, 2003.
Valente, José Francisco. Paisagem africana. Instituto de
Investigação Científica, Luanda, 1974.
Fotografia do autor.
Fotografia do autor.
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