CONTOS DE HERTOGENBOSCH
O DIÁRIO DE ADÃO
Data impercetível
Os dias no Paraíso são longos. Vivo sozinho e
tenho poucos afazeres. As horas do dia custam a passar e as da noite ainda são
piores.
Para me entreter,
resolvi escrever um diário.
A princípio,
Deus não se mostrou de acordo comigo.
− Queres o que
não pode ser. A escrita só vai ser inventada daqui a muito tempo.
− Mas o Senhor
Deus sabe tudo!
Confesso que
hesitei. Estive tentado a introduzir uma interrogação na frase.
Deus coçou a
cabeça, antes de responder.
− Sim... No
entanto, há coisas que não devem ser reveladas antes de as criaturas estarem
preparadas para as conhecerem.
− E os anjos?
Estão preparados?
− O Gabriel
está. Nunca teve grande jeito para a guerra nem para a música. Aprendeu outras
coisas.
− Sabe ler e
escrever?
− Sabe, embora
não tenha grande prática…
− Empresta-mo?
− Como? Os anjos
não são coisas! Não se emprestam!
− Não me
expressei bem. Permite que ele me ajude?
Deus coçou outra vez a cabeça. Não via razões para se opor à minha pretensão. No entanto, lá no fundo do seu infinito conhecimento, alguma coisa lhe sugeria que a ideia não era boa.
Data impercetível
Quando o Senhor me amassou
em barro e me transmitiu o sopro da vida, dei por mim no Paraíso.
Olhei em redor e não vi pessoas. Ainda esperei ter companheiros com quem
pudesse conversar. Não os havia ou, pelo menos, não se viam.
Procurei-os em
vales e montanhas, nos recônditos das cavernas e nas grandes planícies.
Calcorreei o Jardim todo, ou quase todo. Gastei muito tempo nisso.
Confesso que estremeci, quando alcancei o extremo oriental do Éden. É uma fronteira natural. Confesso que estremeci, quando alcancei o extremo oriental do Éden. É uma fronteira natural. Consta de dois desfiladeiros, separados por uma montanha, que nem é muito elevada. É por eles que se esgueiram os grandes rios Tigre e Eufrates.
Mais além,
ficava o desconhecido. Viviam lá animais selvagens e seres terríveis a quem
ninguém dera ainda nomes. Dizia-se que o Senhor passava pouco tempo por aquelas
bandas.
Apercebi-me do
meu destino, ou de uma parte dele, algum tempo depois de começar o diário,
quando o Caim aprendeu a andar e entendi que era parecido comigo. Por essa
altura, a Eva estava outra vez grávida há vários meses. Deus quer a terra
povoada. É preciso obedecer-lhe.
Quem escolheu o nome para o meu menino foi ela. Nunca percebi onde o foi buscar. Acho que Deus não pôs as mulheres no mundo para que as compreendamos.
Data impercetível
O Gabriel lá me
veio ajudar a ser escritor. Imaginem a cena… Eu, nu, de mãos atrás das costas,
um pouco nervoso, a caminhar em trajetos curtos, de um lado para o outro,
enquanto ditava. Ele, sentado no chão, a escrever com uma pena de pato numa
folha de papiro…
O anjo olhava-me
e parecia achar que eu tinha pressa demais. Não me admirei. Suponho que os
seres eternos desconhecem a urgência de algumas situações humanas.
Os anjos não
gostam muito de se sentar no chão. Acham que sujam as penas. Perguntei-lhe:
− Como é que sei
se estás a registar exatamente o que eu digo?
Gabriel voltou
para mim os seus olhos cândidos e declarou, com a inocência que lhe competia:
− Não podes
saber. Para tal, terias de aprender a ler, ou de adivinhar os meus pensamentos.
− Ensinas-me a
ler?
Gabriel
movimentou, ao de leve, uma asa e aplicou ao rosto uma expressão suave de
censura.
A mímica dos
anjos é pobre. Não conheço nenhum que seja capaz de fazer teatro. Não sabem o
que é teatro? Perguntem à Eva, quando ela se desentende comigo. Se quiserem ir
mais longe, para conhecerem um encenador, visitem a serpente...
− Não – acabou
por responder o anjo. − Deus avisou-me de que irias fazer esse pedido e proibiu
expressamente que te ensinasse.
− Há algum mal
em aprender?
O anjo hesitou,
antes de falar. Via-se que a minha pergunta o incomodava.
− Estamos
rodeados pelas trevas. É melhor não conhecermos alguns caminhos que podem levar
à escuridão.
− Poderemos
sempre escolher não os trilhar…
− Acho que
confias demasiado no teu livre-arbítrio.
Calei-me. Até essa altura, poucas ocasiões
tivera para fazer escolhas determinantes.
Concentrei-me no diário. Pode ser que alguém
venha a lê-lo. Não gostaria que me tomassem por tolo ou por insensato.
Data
Tenho a certeza
de que o Gabriel filtra as minhas palavras. Não o faz por mal. Está na sua
natureza limar arestas e procurar consensos. Acontece, deste modo, alguma forma
de censura. O anjo não põe lá tudo o que eu digo. Pelo menos, não o transcreve
precisamente da mesma maneira. Os palavrões, por exemplo… Inventei alguns e
divirto-me a repeti-los quando Deus não está por perto. Por outro lado, há
coisas que eu não seria capaz de confiar ao Gabriel. Por exemplo: a serpente
ensinou-me maneiras novas de fazer sexo. Agora, eu e a Eva divertimo-nos mais.
Nunca contaria isso ao anjo. Ele iria logo a correr comunicar tudo ao Senhor.
Por outro lado, receio que lhe dê para colocar no texto acrescentos de natureza ética. Seria falta de consideração pelo que digo e penso. Apesar de ele ser um pouco ingénuo, tem a obrigação de saber que existem diferenças consideráveis entre os homens e os anjos. É preciso respeitá-las.
Estranhamente, Deus nunca deu sinais de estar interessado naquilo que vou ditando ao Gabriel. Achará irrelevante o que digo e penso. Terá outras preocupações.
Data
Julgo que a
serpente é, depois de mim, a criatura mais interessante que Deus pôs na terra.
É curiosa, astuta e tem sentido de humor, ao contrário dos anjos, que são uns
chatos. Aprendi muitas coisas com ela. É mesmo a minha única amiga.
Confesso que me
faz alguma confusão falar dela no feminino pois esse ser, bastante preocupado
com a própria elegância e com a imagem que transmite, comporta-se, de modo
geral, como macho. Talvez cultive certa ambiguidade. Dei nome a vários animais,
mas não me calhou escolher o dela. E que é que lhe havia de chamar?
Dou-me bem com a
Eva, mas falta-me alguém com quem conversar. Conversas de homem, entendem?
Quando os meus filhos crescerem, julgo que a vida será menos aborrecida. No Paraíso,
os dias são iguaizinhos uns aos outros e, com as noites, passa-se o mesmo,
apesar dos esforços da Eva. Se não falasse, de vez em quando, com a serpente,
acho que andaria a precisar de tomar Prozac.
A serpente é uma criatura sensata que procura olhar as coisas como elas são. Não partilha com o Senhor Deus a dicotomia obsessiva entre o claro e o escuro, o bem e o mal. Percebe o que está mesmo em frente aos olhos de todos: a maior parte dos tons do mundo são em cinzento. Concordo com essa graduação e com a relativização dos critérios. Ajudam-me a entender melhor o que me rodeia. Deus sabe tudo, mas espreita lá de muito alto. Acho que vê as suas criaturas como um grande rebanho destinado a seguir cada dia os mesmos caminhos e alimentar-se nos mesmos pastos. A serpente, a bem dizer, é mais humana. Tem as suas próprias fraquezas e compreende as minhas. É tolerante para com os meus pequenos erros e tem sempre uma palavra amiga para me confortar nas horas más. Parece ter nascido para ouvir e perdoar. Claro que não vou ditar nada disto ao pamonha do anjo. Iria logo enfiar isso tudo nas orelhas de Deus.
Data impercetível
Vou contar-vos como é o Jardim do Éden.
Trabalho lá seis dias por semana e só descanso ao sábado, pois Deus
encarregou-me de o cultivar e guardar. Não sei por quê, as palavras que vou
dizer a seguir não parecem bem minhas. É como se falasse com uma voz diferente.
Talvez as tenha ouvido a algum anjo.
Do solo fez o Senhor Deus brotar toda a sorte de árvores
agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do
jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se
dividia, repartindo-se em quatro braços.
Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim
para o cultivar e o guardar.
E
lhe deu esta ordem: de toda a árvore do meu jardim comerás livremente, mas da
árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás: porque no dia em que dela
comeres, certamente morrerás.
O Senhor não
falou de carne, mas também nos alimentávamos dela. Eu armava laços a ratos e
coelhos, que abundavam por ali. Depois de os esfolar com uma pedra de arestas
aguçadas, comia-os crus. Ainda não aprendera a fazer lume.
Para me dar uma
companheira, o Senhor Deus praticou a primeira intervenção cirúrgica com
anestesia geral da História da Medicina. Induziu-me um sono profundo, retirou
uma das minhas costelas e fechou o lugar com carne.
Haviam de ver a
maravilha que produziu a partir de uma simples costela…
Naquele tempo,
andávamos nus. Quando chovia, abrigávamo-nos numa caverna. Sem contar com Deus,
que vestia uma túnica branca que quase se confundia com a sua barba comprida, o
primeiro ser que vi vestido foi a serpente. Antes de o Senhor Deus a castigar,
obrigando-a a rastejar sobre o ventre, ela tinha braços e pernas. Usava uma
roupa estranha e colorida em que tinha grande vaidade e que lhe deixava de fora
apenas a cabeça, as mãos e os pés. Lembro que estes eram fendidos, como os das
cabras.
Às vezes eu, a Eva e as crianças deslocávamo-nos para longe da caverna e ficávamos expostos às intempéries. Tive sempre jeito para inventar coisas. Com três paus e com as peles de dois animais grandes que tinha encontrado mortos, construí uma espécie de tenda que nos ia protegendo da chuva e do sol. A Eva ficou contente, principalmente por causa dos meninos.
Agora, observo os meus netos a brincar e, por vezes, entristeço. As crianças têm uma facilidade extraordinária de experimentar a alegria. Nem eu nem a Eva tivemos meninice. Fomos postos no mundo, já adultos. Tal não voltará a acontecer com humanos, a não ser que o Senhor decida de forma diferente.
Data
Quando fomos expulsos do Jardim do
Éden, julguei que o meu diário terminara. Tendo-se Deus agastado comigo, não
parecia provável que um servo Dele aceitasse continuar a registar por escrito
as minhas impressões. No meu modo de ver, os anjos são demasiado dóceis e
obedientes. Não foram dotados de imaginação. Apenas eu fui feito à Sua imagem e
semelhança. Percebi, nessa altura, que havia um preço a pagar por isso.
Pedi ao Gabriel
as folhas de papiro em que ele inscrevera a minha voz. Cedeu-mas prontamente,
lembrando que não me iriam servir de nada, uma vez que eu não sabia ler.
Guardei-as mesmo assim. Um homem não é feito apenas de razão. Conservei-as o
melhor que pude. Entendia que constituíam material frágil e que o tempo
acabaria por as reduzir a pó.
Ao abalar, e
antes de as arrumar na trouxa, sugeri ao Gabriel que, quando lhe desse jeito,
me visitasse para continuar o trabalho iniciado. Fiquei surpreendido por ele
ter acedido.
Verifiquei,
depois, um facto curioso. Fora do Éden, os anjos são invisíveis. Ninguém
avistou nenhum, embora muita gente tenha imaginado que tal aconteceu.
O Gabriel continua a registar o meu diário. Não deixa de ser interessante ver a pena deslizar como se ninguém a comandasse, enquanto eu falo e as folhas de papiro se vão enchendo de um sem número de carateres indecifráveis.
A Eva, por vezes, gasta um pouco do seu tempo a observar aquela cena. Cansa-se logo. Tem um feitio prático. Acha que me perco com inutilidades e que o anjo é tolo por me dar ouvidos.
Data
Como sabem, fui
o primeiro homem. Agora, passados anos, já existem uns tantos. São todos meus
filhos, ou meus netos. Embora alguns tenham estabelecido família, habitam perto
de nós.
Vou conversando
com os crescidos pois, para os pequenos, a Eva tem mais paciência que eu. De
modo geral, dou-me bem com eles. Dão mostras de um respeito que me agrada.
Tento não envaidecer e não deixo de ter os pés bem assentes no chão.
Dito isto, será
justo reconhecer que a serpente foi o meu primeiro amigo verdadeiro.
Espero que, aos
que me leiam, chegue a sorte de terem um amigo. Trata-se de uma pessoa (ou de
um ser), ao pé de quem nos sentimos bem. Em caso de dificuldades, irá
ajudar-nos o melhor que puder. Se nos virmos mergulhados em dúvidas, há de
apontar o caminho que lhe parecer mais certo. Se a vida nos correr bem,
celebrará connosco. Se nos virmos derrotados e tivermos vontade de chorar,
estará perto de nós para nos dar um abraço. Era assim a serpente. Acabou por
ser punida por me influenciar.
A Eva foi posta
no Jardim pouco tempo depois de mim. Tivemos muitos filhos e filhas, quase a
seguir uns aos outros.
No início da
humanidade, os irmãos tinham de procriar com as irmãs, por não haver mais gente
no mundo.
Eu vivi muitos
anos e cheguei até aos dias em que foram estabelecidas regras novas de moral.
Interditam a ligação carnal entre irmãos, criando um pecado novo a que se
chamou incesto. Não tenho nada contra essas normas. Habituei-me a aceitar a
passagem do tempo e as mudanças que ele traz. Possuo, contudo, memória e sei
que todos os homens e todas as mulheres provêm de ligações incestuosas entre os
meus primeiros descendentes.
Não era bem isto
que tencionava ditar hoje ao anjo. A verdade é que os anos cobram o seu
tributo. A minha cabeça já não é como dantes. Perdi-me em rodeios. No entanto,
o que acabo de dizer serve de pretexto para explicar as razões autênticas do
crime do meu filho mais velho.
Sei que circula
uma história fantástica sobre a inimizade entre os irmãos. Consta que Caim
levou ao Senhor os frutos da terra, enquanto Abel lhe ofereceu as primícias do
seu rebanho. O Senhor Deus ter-se-á agradado de Abel e da sua oferta,
desdenhando da de Caim.
Nada disso se
passou. Deus sabe, melhor do que ninguém, que a cultura dos campos e a criação
de gado contribuem, de forma semelhante, para a alimentação e o progresso do
Seu povo.
O que aconteceu
foi muito diferente. Nasceu uma amargura nova chamada ciúme.
Abel era ainda
adolescente e não tinha esposa. Cortejou a sua irmã Enoque, casada com Caim.
A seu ver, nem
estava a pecar. Tratava-se somente de aproveitar os frutos do Jardim do Éden.
Enoque era linda e a vida era bela.
Caim viu Abel
deitar-se com a sua mulher e deixou que o coração se lhe enchesse de ódio.
Como o irmão
mais novo era mais alto e mais forte do que ele, o primogénito esperou que Abel
adormecesse, depois de ter o desejo satisfeito, e esmagou-lhe a cabeça com um
pedregulho.
Deus amaldiçoou-o e pôs-lhe um sinal no rosto, mas não lhe retirou Enoque. Fê-lo habitar a terra de Node, ao oriente do Éden, onde criou muitos filhos e filhas. Não se sabe se algum deles foi gerado por Abel.
Data
Fui expulso do Jardim. Deus zangou-se
também com a Eva. Garantiu-lhe:
Multiplicarei
os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu
marido te governará.
O Senhor Deus colocou
a oriente querubins armados de espadas. Guardam os caminhos para a Árvore da
Vida.
Sem a minha
família, o Jardim foi deixado ao abandono. É uma pena. O mato há de estar a
tomar conta de tudo, enquanto os animais se devoram uns aos outros.
Nesta região nova, para onde fui exilado, o
solo não é tão fértil nem tão irrigado como o do Éden. Sou obrigado a suar,
para sustentar a família com os produtos da terra.
Como se isso não
bastasse, tenho saudades e vontade de voltar. Se me perguntarem:
− De onde és?
Onde pertences?
Responderei: sou
do Éden; foi o primeiro solo que pisei e foi lá que me conheci. Os meus filhos
chorarão sempre o paraíso perdido.
Sinto também
falta da serpente. Não a voltei a ver desde que Deus nos castigou. Ou foi
enviada para uma terra distante, ou anda por aí, com vergonha de se mostrar na
sua nova forma. Coitada! Foi sempre vaidosa.
Tardei a pensar
nisso, mas lembro agora que nunca lhe conheci companheiro. O senhor Deus deu a
cada macho a sua fêmea e a cada fêmea o seu macho. A serpente apresentou-se
sempre com aspeto mais ou menos masculino mas, hoje, ocorrem-me dúvidas. Seria
macho ou fêmea? Teria filhos? Por onde andaria o seu parceiro, se é que tinha
algum?
Devia ter. Deus
pretende que as suas criaturas se multipliquem e ocupem a terra.
De certo modo, a
serpente era um personagem singular. Com aquele modo de ser, melífluo e
manipulador, teria poucos amigos. No entanto, acho que ela sentia uma
necessidade enorme de os ter. Julgo que gostava verdadeiramente de mim. Dava-se
bem com a Eva, mas colocava-a num patamar inferior. É que ela não passava de
uma mulher.
Chego a pensar que fui o único amigo da serpente.
Por vezes, imagino-a a rastejar e encho-me de pena.
Data
A expulsão do
Jardim do Éden marcou pesadamente a nossa família. Não admira que, decorridos
tantos anos, ainda se fale nisso. Muito do que se diz agora não corresponde ao
que realmente se passou.
O Senhor Deus dá
as suas ordens de forma pouco clara. Julgo que pretende que nos enganemos
algumas vezes. Ouvi-o sempre atentamente, mas cheguei a fazer confusão entre a
árvore do conhecimento e a árvore da vida. A Botânica é complicada.
A verdade é que não comi do fruto da árvore do
conhecimento, que fica no meio do Jardim. A Eva deu-lhe uma dentada e cuspiu-o
logo. Disse que tinha um gosto desagradável. Nunca pretendi comparar-me a Deus
no entendimento do bem e do mal. A Eva também não. Aliás, eu e o Senhor temos
feitios tão diferentes que havíamos de divergir consideravelmente na análise de
cada caso particular.
Existia no
Jardim outro fruto proibido. Era o da árvore da vida, que proporcionava a vida
eterna. Também o não provei. Viver para sempre nunca foi coisa que eu cobiçasse.
A serpente
habituara-se a ir sozinha para aqueles lados. Como era curiosa e cheia de
engenho, aprendeu a preparar uma bebida especial. Arrancava algumas folhas da
árvore do conhecimento, pisava-as com uma pedra, juntava-lhes um pouco de água
e deixava ficar tudo a repousar durante alguns dias. Resultava uma infusão
adocicada que induzia sonhos agradáveis. Durante eles, julgava assistir a
acontecimentos que iriam suceder no futuro.
Sendo minha
amiga, quis partilhar comigo o dom da profecia. Deu-me a beber da poção que
descobrira.
Bebi uns golos.
A princípio, senti-me estranho. Quase a seguir, achei-me engrandecido. A bebida
dava sono. Sentava-me numa pedra, à sombra da árvore, e ficava a assistir ao
deslizar dos sonhos. A sensação era deliciosa, embora não tenha meios de saber
se os prodígios que presenciei de olhos fechados acontecerão algum dia.
Viciei-me na
poção. Havia dias em que acordava cedo e ia logo ter com a serpente para
partilhar a sua bebida.
Vi cidades de
prédios mais altos que todas as árvores da terra. Os seus habitantes vestiam
roupas estranhas e deslocavam-se no solo, sobre as águas e pelos ares, em
aparelhos enormes em que cabia muita gente.
Às vezes, a
serpente sentava-se a meu lado e bebíamos a infusão da mesma cabacinha. Nunca
fomos parecidos um com o outro e possuíamos organismos diferentes. Não admirava
que reagíssemos de forma diversa à bebida. Enquanto eu me sentia eufórico e
muito leve, como se caminhasse sobre as nuvens, ela deixava-se tomar pela
ansiedade. Chegava a chorar durante aquelas experiências.
Certa vez,
perguntou-me:
− Estás a ver o
mesmo que eu?
− Não posso
saber, mas conto-te o que observo. O fogo de Deus está a ser despejado sobre
uma cidade.
− É Sodoma, uma
terra de pecadores…
− Não são todas?
Veio um dia em que assisti a uma chuva incessante que começou por engrossar as torrentes dos rios e foi cobrindo, uma a uma, as montanhas do mundo, até perecerem afogadas todas as criaturas de Deus. Todas não, que um neto meu chamado Noé construiu uma grande arca flutuante onde se abrigou com a sua família e com um casal de cada espécie animal existente, doméstica ou selvagem.
A ira de Deus não se estendeu aos peixes que nada se incomodaram com o dilúvio e nadaram alegremente. Que mal lhe terão feito as avezinhas, para Ele as obrigar a voar sem terem poiso até as forças lhes faltarem e se afundarem nas águas infinitas?
Data
A serpente
confidenciou-me, certo dia, depois de sorver um golo da infusão:
− Não sou como
os anjos…
Eu já sabia. Não
valia a pena abrir a boca para dizer uma coisa tão óbvia. Deixei-a continuar.
− Eu e eles
pensamos de forma distinta. Diferimos até no modo como pesamos as palavras. Não
te aconselho a acreditar em tudo o que digo.
Eu nunca fui
parvo. Aprendi a mentir, antes de a conhecer, e sabia que ela me enganava
algumas vezes.
Serviu-se outra
vez do líquido da cabacinha e prosseguiu.
− Sabes? Às
vezes, invento histórias e conto-as aos outros. Sei-as dizer tão bem… Havias de
ver… Aceitam-nas como se fossem verdadeiras.
Senti um pouco
de ciúme. Quem seriam os outros? Agradava-me imaginar que era o seu único
interlocutor. No entanto, ela poderia narrar os seus contos aos meus filhos e
aos filhos deles.
Dias depois,
pensei melhor. Se calhar, a serpente não falava com mais ninguém. Estaria a
gabar-se, a insuflar o ego. Era coisa que eu era capaz de compreender. Talvez
Deus a tivesse criado também a partir do barro.
Uma única vez,
ouvi a serpente deixar escapar uma acusação ao Senhor:
− Deus é mau…
Lembro-me de ter retorquido, sem grande convicção nas palavras:
− Não é mau. É apenas justo.
Data
Aconteceu que o
Senhor Deus reparou que iam faltando folhas nos ramos mais baixos da sua árvore
favorita. Não teve qualquer dificuldade em identificar os culpados.
Julgo que ainda
assistiu a alguns dos meus sonhos, para comprovar a falta. Por causa dela,
castigou todos os meus descendentes. Devo fazer notar que apenas uma ínfima
porção deles havia já nascido.
Expulsou-nos e,
durante muito tempo, conversou pouco com os homens.
Se calhar,
chegou a arrepender-se de nos ter criado. Ele é terrível, quando se zanga.
Presenciei, em sonhos, o afogamento da maior parte dos seres vivos. O Senhor
Deus fez verter a água do céu para os submergir.
Acho que é
propenso a reações exageradas. Será por ter de tomar sozinho todas as decisões.
Não tem ninguém que o aconselhe. Não me parece que os anjos sejam capazes de o
fazer. Bem poderia escutar a serpente…
Quando me vim
embora, escondi na trouxa algumas estacas pequenas da árvore do conhecimento e
plantei-as na terra que passou a pertencer-me. Estou para ver se vão secar ou
se darão rebentos novos.
Não sei se o
Senhor deu pelo furto. Talvez não… Tem andado preocupado com a agitação que
grassa entre os Seus anjos.