CONTOS DE HERTOGENBOSCH
A MENINA E A SERPENTE
Quando a vi no inferno, achei que já a
conhecia.
Talvez me
lembrasse dela de algum sonho. Conservava os olhos baixos para fingir modéstia,
tinha seios pequenos e uma silhueta elegante. A longa cabeleira, loira e
ligeiramente ondulada, descia-lhe até abaixo dos joelhos.
Era vigiada por um monstro com forma de
lagarto que empunhava na mão direita um comprido círio aceso. Desconheço o
significado do círio. Há muitas coisas na obra de Bosch que não entendo.
Já nem sei por que razão falei da serpente. Não há lá serpente alguma. Vê-se é outro lagarto estranho, esguio e com apenas duas patas, que a abraça e lhe aproxima a cabeça do sexo.
Se a avistasse
noutro contexto, poderia deixar levar-me por aquela expressão de candura. Não
faltariam cavalheiros tontos dispostos a arriscar a vida para arrancar a virgem
às garras do demónio.
Virgem é que ela
não pode ser. Não há nenhum anúncio escrito à entrada, mas estou em crer que
não aceitam virgens no inferno. Pareceu-me que a rapariga não era indiferente
às carícias do lagarto magro.
Aos poucos, as
recordações foram chegando e o nome dela desenhou-se-me no espírito: Isabela.
Em tempos, a moça escapara-se de um conto meu inacabado.
Tratou-se uma
história invulgar que me deixou perplexo durante um par de semanas.
Embora tivesse
de me levantar cedo na manhã seguinte, não resisti a fixar por escrito a ideia
para um conto. É que já me acontecera adiar o registo de um pensamento e
esquecer-me dele por completo. Escrevi duas páginas, quase três. Não cheguei a
delinear o final, mas isso acontecia muitas vezes com as minhas narrativas. O
resto viria a seu tempo.
Deixei as folhas
manuscritas em cima da secretária e fui-me deitar.
No final da
tarde do dia seguinte, depois do trabalho, voltei a sentar-me à secretária para
continuar a minha obra inacabada. Estava lá apenas uma folha. Era a primeira.
As duas outras tinham sumido.
Naquele tempo,
eu vivia sozinho. A mulher-a-dias não viera naquela manhã. Não entrava mais
ninguém em casa. Poderia ter sido roubado, mas não dei pela falta de mais nada
e ninguém assalta uma residência para levar apenas duas folhas de papel.
Senti-me
confuso. Seria capaz de jurar que tinha escrito mais, na noite anterior.
Estranhamente, não me lembrava de nenhuma das palavras que plantara nas páginas
seguintes do meu conto. Sabia apenas (ou julgava saber) que entrava nele uma
cobra.
Acabei por
concluir que experimentara um sonho demasiado vivido. A página que me restava
continha apenas a descrição das feições e dos modos duma rapariga loira. Não
sabia se lhe começara a inventar uma vida, mas isso deixara de ter importância.
Zanguei-me comigo próprio e deitei a folha isolada para o cesto dos papéis.
Fixei apenas o nome que lhe tinha dado.
Vim dar com ela,
agora, no inferno. Aquela era a loira do meu conto. Já lá está há muitos anos. A tinta com que o
pintor preencheu a tela secou há meio milénio. Parece-me que nada, nesta
história, aconteceu para ser compreendido.
Devagar,
devagarinho, ganhou forma no meu espírito uma ideia surpreendente. A rapariga recolhera
as folhas que a poderiam comprometer e desaparecera da minha vida.
Olhei de novo a
Isabela. Achei que seria bem capaz de ter inventado também o lagarto. Escrevi
diversos livros e alguns contêm narrativas invulgares.
Nada disso tinha
agora importância. Voltei-lhe as costas e saí do museu.
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