OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
A COZINHEIRA DO INFERNO
Foi o Joaquim quem me desafiou para outra aventura. Estaria a habituar-se à minha companhia.
− Gostava que conhecesses a minha tia
Matilde.
− Não sabia que tinhas uma tia…
− Que sabes tu de mim? E eu de ti?
− Sabemos o suficiente para nos
estimarmos. A tua tia mora perto?
− A tia Matilde, sim. Tenho outra, mas
habita num quadro diferente. Vou visitá-la de vez em quando.
Lá nos vimos num
dos infernos de Bosch. A pintura era o Julgamento Final.
Ao alto, está
Cristo na sua glória. Parece habitar uma nuvem. Tem, de cada lado, um punhado
de bem-aventurados. Há anjos pálidos a tocar trombetas.
Esta é a parte
menos interessante da pintura.
Acho que reside
aqui a fratura essencial na obra e na alma do grande artista flamengo. Bosch
faz a apologia do Bem, mas deleita-se a representar o Mal.
O céu não é
representado de modo interessante, nem acolhedor. A minoria dos eleitos
corresponderá a homens e mulheres com os quais, em vida, teríamos pouco interesse
em relacionar-nos. Assustaram-se com a ameaça dos tormentos do Inferno e praticaram
o Bem de forma interesseira, a fim de poderem ser acolhidos no Paraíso. Poucos
foram acometidos da vontade genuína de ajudar os outros. Dito de outro modo, os
santos são uns chatos. Mal das crenças que fazem da negação do prazer um ideal
de santidade.
Fartei-me de
Filosofia. Baixei o olhar e vi o que parece ser um mundo em chamas. Começa ali o
reino do Mal. Extinguem-se a graça e a clemência de Deus. A vingança dos juízes
é terrível. Os que se portaram mal em vida são sujeitos a todos os suplícios
imagináveis.
A tristeza paira
no ar poluído. Distingue-se um verdadeiro exército de vencidos, conduzidos por
monstros e demónios para a boca de um cântaro enorme onde irão ser triturados.
Os diabos
parecem atarefados. Ou recebem horas extraordinárias, ou têm prémios de
produção. O que contrasta e magoa na pintura é a extrema desproporção entre o
número dos benditos e o dos danados. Segundo o pintor flamengo, Deus destinou a
grande maioria dos humanos a arder eternamente no fogo dos infernos.
O que vale ao
artista (e a nós, que apreciamos a sua obra) é o seu sentido de humor.
Numa espécie de
planalto, na parte inferior do quadro, está a cozinha do Inferno. Pelo menos,
foi o que me pareceu avistar.
Como na visita
precedente, eu tinha tirado a roupa para não dar nas vistas. Estava a
habituar-me a andar despido. Os infernais verdugos mal reparavam por mim. Era
mais um danado, entre centenas ou milhares.
O Joaquim guiou-me por um atalho que parecia
conhecer bem. Chegámos num instante ao espaço das cozinheiras.
− Olha! Aquela é
a Matilde. Vês? O vestido dela é do mesmo pano do meu gorro.
Matilde era um
ser híbrido, parte mulher e parte réptil, com feições grosseiras. Usava um
longo vestido rosa carregado e um toucado branco. Tinha pés de lagarto.
Estava sentada
no chão, ou num banco muito baixo. Segurava uma enorme sertã onde fritava um
danado. Ao lado da fogueira estava dois ovos enormes. Iriam servir para
completar o cozinhado.
Um pouco acima
dela, outro monstro fêmea de cabelo branco ia torturando um danado com ferros
em brasa.
Matilde parecia
descontraída. Olhava para cima. Talvez espreitasse o relógio.
O sobrinho
aproximou-se para a saudar.
− Olá, tia… Tem
passado bem?
A cozinheira não
pareceu muito contente com a vinda do Joaquim. Respondeu-lhe:
− Eu tenho… E
tu? Que é que vieste cá fazer?
− Vim visitá-la…
− Passo bem sem
as tuas visitas. Não vês que estou atarefada?
O Joaquim ficou
desapontado com a falta de simpatia com que fora recebido, mas não esmoreceu.
Fez uma vénia à tia e recuou.
− Ela não é má
pessoa… Tem é aquele ofício.
Não me ocorreu
nada para lhe dizer. De certo modo, cada um tem de cumprir o seu destino,
embora exista quase sempre uma margem razoável de livre-arbítrio.
Deixei de teorizar
e olhei em redor com mais atenção. Constatei que tinha perdido parte da
capacidade de me surpreender. De um lado e do outro, era tudo mais do mesmo.
Monstros mais ou menos cobertos de armaduras metálicas entretinham-se a fazer
mal aos condenados. Reparei num que cavalgava uma espécie de peixe com focinho
de ratazana. Calçava botas.
Um pouco acima,
sobre uma placa que cobria um pequeno edifício, ficava o local onde o meu amigo
Joaquim exercia habitualmente o seu ofício. Não chegámos a falar dele, mas
imagino que fosse semelhante ao dos seus colegas.
Fiz um aceno de
despedida à Matilde, mas ela não deu por mim. Não me importei. Já me habituara
a passar despercebido naquele lugar. Viemos embora.
Eu quase sentia
vontade de ter uma tia assim. Como não podia ser, tomei nota mentalmente para,
num próximo aniversário lhe oferecer os dois grossos volumes do Pantagruel.
Estou certo de que o Joaquim se irá alegrar com a ideia de ser o portador da
encomenda.
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