OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
AS CARTAS
O Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa tem o privilégio
de acolher as «Tentações de Santo Antão», um dos quadros emblemáticos de Bosh.
O tríptico veio do antigo Palácio Real das Necessidades. Ninguém sabe como lá
foi ter. Há quem diga que pertenceu ao humanista Damião de Góis. Desloquei-me
até lá algumas vezes, para apreciar a pintura.
Nessa manhã, instalei-me de novo face ao quadro. Achei que era
uma pena não existirem cadeiras em alguns lugares do museu.
Antão era um eremita egípcio do século III, considerado o
fundador da vida monástica. Fora muito popular na Idade Média, sendo
considerado protetor contra o ergotismo, doença provocada pela cravagem do
centeio. O santo é muitas vezes representado na companhia de um porco. Comer
mais carne e menos pão diminuía a probabilidade de contrair a doença.
Santo Antão distribuiu os seus bens pelos pobres e passou
vinte anos a meditar no deserto, o que provocou a ira do diabo, que o tentou de
todas as formas imagináveis.
Bosh retratou, a seu modo, as tentações a que o pobre santo
foi exposto. Rodeou-o de monstros e demónios assustadores.
As tentações começam no painel que fica à esquerda de quem
olha. Em cima, o santo é arrastado aos ares pelos demónios. A meio,
enfraquecido, é amparado por figuras piedosas.
A parte mais interessante do painel está em baixo. Há
demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um monstro patina no gelo
para entregar outra.
Bem gostaria de saber o que diziam as missivas.
Nos últimos tempos, deu-me para imaginar conversas com as
figuras dos quadros. Preocupo-me pouco com esta minha tendência. Sei que não estou
doido. Distingo bem o mundo real do congeminado. Afinal de contas, isto não
passa de um jogo.
Sem mover os lábios, dirigi-me ao monstro corcunda de funil
na cabeça que transporta uma carta no bico.
− Sabes o que é que está aí escrito?
− Tens alguma coisa com isso?
− Ter, não tenho, mas venho aqui com frequência. Cada vez
que te vejo patinar, fico mais curioso.
− A curiosidade matou o gato. Além disso, tu não és dos
nossos…
Eu não tinha argumentos para contrariar a imagem com quem
discutia.
− Tens razão. Pertenço a outro mundo.
− Sabes pintar?
− Não. Nunca fui bom no desenho, no tempo em que andava na
escola.
− Então, não há nada que eu possa fazer por ti. Adeus…
− Vou-me já embora… Ao menos, diz-me o que vem na carta…
− És tonto! Não vês que eu não sei ler?
Nessa altura, o monstro rodou levemente a cabeça na minha
direção, abriu um pouco o bico e disse baixinho:
− Pergunta ao santo. Ele é que sabe tudo.
Voltei-me para o painel da direita, sem vontade de fazer
mais perguntas. Vê-se lá uma mulher despida, a tentar Santo Antão. A dama não
tem grande aspeto físico. Fiquei a pensar que o diabo, apesar da sua experiência
de milénios, não entende a beleza feminina. Sem o pretender, aligeira os
caminhos da santidade.
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