DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016




ACABOU O FOLCLORE

Chegou ao fim o espetáculo mediático mais impressionante do começo deste século. Terminado o show, virá ao de cimo a realpolitik e irão preponderar os interesses permanentes do Estado Americano.
Surpreendentemente (ou não) o discurso de vitória de Donald Trump foi de apaziguamento e de apelo à unidade da nação. Trump prometeu ser o presidente de todos os americanos, independentemente da raça, religião ou proveniência de cada um. São afirmações comuns nos discursos de vitória um pouco em toda a parte, mas poderão revestir-se, neste caso concreto, de um significado especial.
De nada serve especular sobre se aconteceu a vitória de Donald Trump ou a derrota de Hilary Clinton. Hilary também não é flor que se cheire. Se concorresse contra o mesmo adversário, ganharia (provavelmente) por larga margem na Inglaterra, na França, na Grécia, em Portugal e na Espanha. Lá mais para o centro da Europa, já tenho as minhas dúvidas. Julgo que foi Trump que ganhou. Um número significativo de compatriotas seus considera-o um exemplo vivo do sonho americano.
Vamos a ver se o obamacare (ou a pequena porção dele que saiu do papel) vai ser desmantelado e se o apregoado muro na fronteira com o México se tornará realidade. Os americanos não têm um Mar Mediterrânico, mas têm o golfo do México e as águas costeiras da Califórnia. Se têm sido pouco utilizados pelos emigrantes ilegais é porque é relativamente fácil de transpor a fronteira de milhares de quilómetros que se estende do Oceano Atlântico ao Pacífico e separa o sul dos E.U.A. do norte do México. A ser construído o muro, será de prever que a indústria mexicana do século venha a ser o fabrico de escavadoras. A fronteira irá parecer-se com um vasto campo de toupeiras com um muro inútil em cima. Os mexicanos não pagarão a construção da barreira, mas irão contribuir alegremente para a escavação de túneis.
No rescaldo das eleições presidenciais americanas fica, sobretudo, uma nota triste. A falta de respeito com que os dois candidatos se trataram um ao outro não prestou um bom serviço à Democracia.




terça-feira, 1 de novembro de 2016



“RESGATE”


Acompanho, como quase toda a gente, a tragédia da emigração trans-mediterrânica.
De forma crescente, embora com flutuações sazonais, um número apreciável de habitantes da metade norte da África Ocidental e de vários países asiáticos mais ou menos vizinhos do “Mare nostrum” dos romanos tem-se esforçado por alcançar a Europa.
Uns fogem à guerra e outros pretendem simplesmente aceder a uma qualidade de vida que, nos seus países de origem, está apenas ao alcance de poucos. Homens, mulheres e crianças sobrelotam embarcações ligeiras e arriscam-se a uma travessia que custa a vida a muitos. Ao contrário do que alguns pensavam, o Mediterrâneo está longe de ser um mar pacífico.
O recente fenómeno da emigração não se limita à Europa. Muitos mexicanos pobres tentam “dar o salto” para os Estados Unidos da América onde, alegadamente, competem com os locais na procura de postos de trabalho, contribuindo tendencialmente para a baixa dos salários e engrossando a voz dos políticos populistas.
Na parte que nos toca, o problema da emigração é reconhecidamente complexo. Não vou falar agora do badalado risco de islamização da velha Europa, nem da facilidade acrescida de entrada de terroristas, impossíveis de distinguir no meio de uma multidão de refugiados. Tão pouco irei referir o efeito provável de compensação das baixas taxas de natalidade dos países europeus, nem o eventual contributo positivo que poderão dar à sustentabilidade dos nossos regimes de segurança social. Pelo menos desta vez, irei focar a atenção na questão das travessias.
Compreendo as reservas de muitos e também alimento as minhas. Será preciso equilibrar a solidariedade com o realismo.
Aceito que cada país tenha o direito de decidir quantos emigrantes africanos ou asiáticos pretende acolher dentro das suas fronteiras e a que ritmo. No entanto, há realidades que não se podem esconder. Que fazer aos refugiados que já se encontram nos campos de acolhimento (ia dizer de concentração) da Itália, da Grécia e da Turquia? Como evitar que se batam continuamente recordes de morte nas travessias?
Em geral, a solução de problemas de certa dimensão passa por lhes conhecer as causas e procurar modificá-las.
Na origem de parte dos surtos de emigração estão os conflitos armados. Será bom lembrar que muitos foram desencadeados ou prolongados pela intervenção militar americana em países do Médio Oriente. Os estrategas do Pentágono parecem entender mal as mentalidades árabes e os equilíbrios mais ou menos estranhos que se vão gerando na região. Tentar instituir democracias em países dominados durante décadas por figuras como as de Saddam Hussein ou Muammar Gaddafi foi um processo que deu maus resultados.   
A guerra civil na Síria nasceu em circunstâncias diferentes, sendo, contudo, bom não esquecer que o “Estado Islâmico” representa um efeito colateral da política americana no Médio Oriente.
Os problemas gerados pelas guerras só se podem resolver estabelecendo a paz. As guerras, umas vezes ganham-se e outras perdem-se. Quando tarda em acontecer uma coisa ou outra, será bom limitar as ingerências externas e negociar.
A pobreza de boa parte do continente africano não é de hoje. Durante muitos anos, o colonialismo serviu de desculpa para o atraso civilizacional. Ora, o colonialismo foi banido há décadas e o desenvolvimento tarda. A questão tende a agravar-se, com as modificações climáticas atribuídas ao efeito de estufa e ao aquecimento global. Ao que parece, o deserto está a expandir-se no norte do continente africano.
Enquanto não se consegue agir eficazmente sobre as causas do problema, haverá que limitar-lhe as consequências. O desaparecimento de estados fortes no Iraque, na Líbia e na Síria criou uma dificuldade nova: a falta de interlocutores com quem discutir a questão de emigração de modo a encontrar colaboração por parte do poder político locar. Seria necessário negociar compensações e procurar fomentar o controlo das águas territoriais pelas forças navais de cada nação. Outro sistema de compensação permitiria provavelmente que os emigrantes indesejados fossem aceites de volta pelos seus países de origem.
Alguns países sem fronteiras marítimas mediterrânicas chegaram à conclusão que o problema era de quem as tinha e levantaram muros ou barreiras para impedir ou dificultar a entrada de emigrantes nos seus territórios. Esse tipo de ideias tem-se mostrado popular. A xenofobia, o racismo e o ódio ao Islão encontram cada vez mais intérpretes de sucesso nas políticas nacionais europeias.
A União Europeia tem estado particularmente atenta a este problema e criou diversas organizações para tentar controlar o fluxo migratório e as suas consequências. A Frontex (Agência Europeia de Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia) foi criada em 2004 e aperfeiçoada sucessivamente nos anos seguintes.
Em 2013, foi estabelecido o sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (Eurosur). Promove a troca de informações entre os Estados Membros e a Frontex, procurando detetar, prevenir e combater a imigração ilegal e a criminalidade transfronteiriça. A Eurosur tem sede em Varsóvia. Trabalhando fora das vistas do público, existem ainda a Organização Internacional da Migrações (IOM) e o Centro Internacional para as Políticas de Migração e Desenvolvimento (ICMPD)
O Eurosur está em fase de implementação. Foi pensado para lutar contra a emigração ilegal. Secundariamente, destina-se a combater a criminalidade transfronteiriça e a evitar a perda de vidas de migrantes no mar.
Assenta na vigilância do Mediterrâneo, com recurso a meios tecnológicos sofisticados que incluem satélites e drones com câmaras de vigilância. O seu campo primordial de ação é o Mediterrâneo, embora se estenda até às Ilhas Canárias e ao Mar Negro e esteja previsto alargar-se a todas as regiões marítimas europeias. A informação recolhida é transmitida a helicópteros e navios de guerra que tentam intercetar as embarcações que transportam emigrantes.
Têm estado envolvidos neste processo navios da nossa Armada.

Algumas destas questões são sensíveis e as autoridades procuram furtar-se à crítica das organizações humanitárias. É por isso que se fala diariamente nas televisões em “resgatar” emigrantes do mar. Resgatar é salvar ou libertar. Podem chamar-lhe apanhar, deter, capturar, caçar. Será eventualmente legítimo fazê-lo, embora as televisões nos tenham proporcionado imagens em que a tragédia resulta diretamente do pânico gerado entre os migrantes pela interceção por parte dos navios de guerra. A palavra “resgate” em situações destas tem uma conotação claramente hipócrita.

Fotografia: retirada da Internet.