“RESGATE”
Acompanho, como quase toda a
gente, a tragédia da emigração trans-mediterrânica.
De forma crescente,
embora com flutuações sazonais, um número apreciável de habitantes da metade
norte da África Ocidental e de vários países asiáticos mais ou menos vizinhos
do “Mare nostrum” dos romanos tem-se esforçado por alcançar a Europa.
Uns fogem à guerra e
outros pretendem simplesmente aceder a uma qualidade de vida que, nos seus
países de origem, está apenas ao alcance de poucos. Homens, mulheres e crianças
sobrelotam embarcações ligeiras e arriscam-se a uma travessia que custa a vida
a muitos. Ao contrário do que alguns pensavam, o Mediterrâneo está longe de ser
um mar pacífico.
O recente fenómeno da
emigração não se limita à Europa. Muitos mexicanos pobres tentam “dar o salto”
para os Estados Unidos da América onde, alegadamente, competem com os locais na
procura de postos de trabalho, contribuindo tendencialmente para a baixa dos
salários e engrossando a voz dos políticos populistas.
Na parte que nos toca, o
problema da emigração é reconhecidamente complexo. Não vou falar agora do
badalado risco de islamização da velha Europa, nem da facilidade acrescida de
entrada de terroristas, impossíveis de distinguir no meio de uma multidão de
refugiados. Tão pouco irei referir o efeito provável de compensação das baixas
taxas de natalidade dos países europeus, nem o eventual contributo positivo que
poderão dar à sustentabilidade dos nossos regimes de segurança social. Pelo
menos desta vez, irei focar a atenção na questão das travessias.
Compreendo as reservas
de muitos e também alimento as minhas. Será preciso equilibrar a solidariedade
com o realismo.
Aceito que cada país
tenha o direito de decidir quantos emigrantes africanos ou asiáticos pretende
acolher dentro das suas fronteiras e a que ritmo. No entanto, há realidades que
não se podem esconder. Que fazer aos refugiados que já se encontram nos campos
de acolhimento (ia dizer de concentração) da Itália, da Grécia e da Turquia?
Como evitar que se batam continuamente recordes de morte nas travessias?
Em geral, a solução de
problemas de certa dimensão passa por lhes conhecer as causas e procurar
modificá-las.
Na origem de parte dos
surtos de emigração estão os conflitos armados. Será bom lembrar que muitos
foram desencadeados ou prolongados pela intervenção militar americana em países
do Médio Oriente. Os estrategas do Pentágono parecem entender mal as
mentalidades árabes e os equilíbrios mais ou menos estranhos que se vão gerando
na região. Tentar instituir democracias em países dominados durante décadas por
figuras como as de Saddam Hussein ou Muammar Gaddafi foi um processo que deu
maus resultados.
A guerra civil na Síria
nasceu em circunstâncias diferentes, sendo, contudo, bom não esquecer que o
“Estado Islâmico” representa um efeito colateral da política americana no Médio
Oriente.
Os problemas gerados
pelas guerras só se podem resolver estabelecendo a paz. As guerras, umas vezes
ganham-se e outras perdem-se. Quando tarda em acontecer uma coisa ou outra,
será bom limitar as ingerências externas e negociar.
A pobreza de boa parte
do continente africano não é de hoje. Durante muitos anos, o colonialismo
serviu de desculpa para o atraso civilizacional. Ora, o colonialismo foi banido
há décadas e o desenvolvimento tarda. A questão tende a agravar-se, com as
modificações climáticas atribuídas ao efeito de estufa e ao aquecimento global.
Ao que parece, o deserto está a expandir-se no norte do continente africano.
Enquanto não se consegue
agir eficazmente sobre as causas do problema, haverá que limitar-lhe as
consequências. O desaparecimento de estados fortes no Iraque, na Líbia e na
Síria criou uma dificuldade nova: a falta de interlocutores com quem discutir a
questão de emigração de modo a encontrar colaboração por parte do poder
político locar. Seria necessário negociar compensações e procurar fomentar o
controlo das águas territoriais pelas forças navais de cada nação. Outro
sistema de compensação permitiria provavelmente que os emigrantes indesejados
fossem aceites de volta pelos seus países de origem.
Alguns países sem
fronteiras marítimas mediterrânicas chegaram à conclusão que o problema era de
quem as tinha e levantaram muros ou barreiras para impedir ou dificultar a
entrada de emigrantes nos seus territórios. Esse tipo de ideias tem-se mostrado popular. A xenofobia, o racismo e o ódio ao Islão encontram cada vez mais
intérpretes de sucesso nas políticas nacionais europeias.
A União Europeia tem
estado particularmente atenta a este problema e criou diversas organizações
para tentar controlar o fluxo migratório e as suas consequências. A Frontex
(Agência Europeia de Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos
Estados-Membros da União Europeia) foi criada em 2004 e aperfeiçoada
sucessivamente nos anos seguintes.
Em 2013, foi
estabelecido o sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (Eurosur). Promove
a troca de informações entre os Estados Membros e a Frontex, procurando
detetar, prevenir e combater a imigração ilegal e a criminalidade transfronteiriça.
A Eurosur tem sede em Varsóvia. Trabalhando fora das vistas do público, existem
ainda a Organização Internacional da Migrações (IOM) e o Centro Internacional
para as Políticas de Migração e Desenvolvimento (ICMPD)
O Eurosur está em fase
de implementação. Foi pensado para lutar contra a emigração ilegal. Secundariamente,
destina-se a combater a criminalidade transfronteiriça e a evitar a perda de
vidas de migrantes no mar.
Assenta na vigilância do
Mediterrâneo, com recurso a meios tecnológicos sofisticados que incluem satélites e drones com câmaras de vigilância. O seu campo primordial de ação é o
Mediterrâneo, embora se estenda até às Ilhas Canárias e ao Mar Negro e esteja
previsto alargar-se a todas as regiões marítimas europeias. A informação
recolhida é transmitida a helicópteros e navios de guerra que tentam intercetar
as embarcações que transportam emigrantes.
Têm estado envolvidos
neste processo navios da nossa Armada.
Algumas destas questões
são sensíveis e as autoridades procuram furtar-se à crítica das organizações
humanitárias. É por isso que se fala diariamente nas televisões em “resgatar”
emigrantes do mar. Resgatar é salvar ou libertar. Podem chamar-lhe apanhar,
deter, capturar, caçar. Será eventualmente legítimo fazê-lo, embora as
televisões nos tenham proporcionado imagens em que a tragédia resulta diretamente
do pânico gerado entre os migrantes pela interceção por parte dos navios de
guerra. A palavra “resgate” em situações destas tem uma conotação claramente
hipócrita.
Fotografia: retirada da Internet.
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