Deixo-vos aqui o preâmbulo.
Os contos que
vos trago foram vividos há anos. Não sei ao certo quantos: oito ou nove dezenas
talvez. A história entre os pobres é curta. Como nada se escreve, ficam poucas
certezas. Para que se não varresse tudo da lembrança colectiva, criaram-se as
lendas.
Nem sempre o que relato se passou. Falo também de
coisas inventadas. Dar-vos-ei a conhecer N`Gongo, do povo da ilha e Munkhete,
que foi banido dos cuancalas. Ireis ouvir falar de novos e de velhos, de
pastores e de ferreiros, de mulheres e de crianças, mas encontrareis pouca
gente feliz. É que Pamba, ao criar o homem, deu-lhe por sina procurar a
felicidade como se estivesse próxima e só dar por ela depois de a ter
perdido.
Antes do avô do meu avô, existiu N`Zungui. Era um
grande caçador.
Morava longe daqui, nos planaltos de Angola. Não,
nunca lá estive. Falo apenas do que ouvi.
A terra já se
fartou de dar voltas ao sol desde esse
tempo. Tantas, que até a vossa pele esqueceu a cor antiga. Estranham o que
digo? Não admira. Pouca gente se interessa por essas
coisas. Quase ninguém se abeira de um passado que pode ser um bocadinho
incómodo. Pensem no rio Sado, que corre ali em frente. Para ele ser o que
é, juntaram-se vários ribeiros. Atrás
deles houve regatos que foram misturando as águas. Umas eram claras e outras
mais escuras. No nosso sangue também se entroncaram diversos caminhos. Um deles
conduz a África. Deixou marcas bem vivas nas feições da tia Quitina.
Antigamente era ela quem se encarregava das narrativas. Parece-me que a estou a ver, gorda, meiga e
prazenteira. O riso abria-lhe os beiços grossos e punha-lhe os dentes a
brilhar.
Com gestos vivos ia representando as cenas que
descrevia. Canjala, a menina má,
Chipandeca, o mestre-ferreiro e Nsanda, o conquistador, desfilavam em
palcos novos. A tia chamava-os e enchia-nos as noites de fantasia. Ao
falar, entusiasmava-se tanto que até a
alma lhe reluzia. Os personagens a que voltava a dar vida ficavam mais ágeis e
mais espertos de cada vez que eram lembrados. Alguns, porque os maus pareciam
tornar-se ainda mais ruins...
Apercebi-me, a
determinada altura, de que as histórias
iam mudando. Quitina respeitava o
essencial das narrativas mas acrescentava-lhes factos inéditos. Se era verdade
o que contava? Passava logo a ser... A
tradição não lhe bastava. Pode-se pular por cima de quase todas as barreiras...
A imaginação permitia-lhe preencher prontamente
qualquer lapso de memória. Nunca se atrapalhava nem perdia o fio à meada. Não
devem existir hiatos nas descrições, para além dos silêncios preciosos que
chegam a valer mais do que as palavras. Um bom contador não gagueja nem hesita.
O que há de mágico, o que se avizinha do sagrado numa lenda, pode escapar-se de
vez.
No dia em que a nossa tia morreu, fugi para o campo e
chorei sozinho.
Ela mimava-me de forma especial. Parecia esperar
qualquer coisa de mim. Demorei muito tempo até saber do que tratava.
É que eu era o seu herdeiro. Não de bens materiais que
poucos tinha. Deixou-me o
testemunho. Ainda o transporto.
Nem é pesado. Sou agora o narrador da família.
Trata-se de conservar uma luzita acesa. A candeia gasta pouco azeite...
Devo alimentar algumas raízes pequenas para que o
tronco, que somos nós, saiba de onde vem. Não é apenas para vos entreter que
falo tanto. É que os antigos só morrem de vez pelo esquecimento. Sem
antepassados ficamos perdidos no mundo. Nunca mais há uma árvore a que possamos
verdadeiramente chamar nossa.
O orador interrompeu-se. As crianças dormiam. Reparou
que ainda nem dera início à história preparada. Bem, ficava para o dia
seguinte...
Desenhou-se-lhe no rosto um sorriso temperado por uma
ponta de amargura. Estava a ficar velho. Perdia-se nos preâmbulos e tardava em
chegar às cenas de acção. Começava a apreciar mais os prefácios do que os
enredos.
Tinha de estar atento. Assim não era possível
entusiasmar os miúdos e atá--los ao passado.
Não tinha sono. Agasalhou-se e saiu para a beira- rio.
Umas dezenas de metros a Norte o casario caiava-se de
luar. A dois passos começava a placidez do Sado. A maré vazara e as palafitas
entrelaçavam membros e costelas numa solidariedade triste que parecia emergir
do fundo da água e do tempo. Lá em baixo, as embarcações de madeira sossegavam
na lama.
Um insecto zuniu-lhe junto ao rosto. Afastou-o com um
gesto brusco. Por causa dos mosquitos e das sezões, um grupo de trabalhadores
negros fora instalado em Alcácer do Sal algumas gerações atrás. Resistiam
melhor do que os indígenas ao paludismo e davam mais rendimento nos trabalhos
do arroz.
Com o tempo, tinham-se diluindo na população local.
Restavam tons bronzeados de pele, alguns traços fisionómicos dispersos e poucas
histórias. Cabia-lhe fazer perdurar algumas delas, para que os caminhos que
conduziam ao passado se não apagassem de vez.
A lembrança da tia Quitina chegou-lhe com muito vigor.
Na sua voz caminhava N´Zungui, com a vida presa por um fio de palavras. O
antepassado tivera um destino invulgar. De outro modo ninguém o lembraria.
Tentava às vezes situar-se no mundo do Caçador.
Haveria alguma parecença entre os campos que ele palmilhara e os arrozais de Alcácer? Os rios
de lá pulsariam também com as marés? Como seria uma terra sem lareiras nem
enchidos? E os aromas? Ouvira dizer que os portos de África se podem reconhecer
de olhos vendados, apenas pela vivacidade dos odores. Amargurou-se. Os cheiros
não se podem imaginar... Saber tão pouco
tornava-o inseguro. Receava que os relatos lhe soassem a falso.
Olhou em volta. A Sul estava tudo escuro. As luzitas
de Angola tinham-se apagado há muito. Não conhecia ninguém que o pudesse
ajudar.
Encolheu os ombros. Pouco se afastara de casa. A noite
estava húmida. Encetou o caminho de regresso.
Deu uma espreitadela às crianças, despiu-se e
meteu-se na cama. Adormeceu rapidamente. Julgou não ter sonhado, mas N`Zungui
caçava por perto.
Referência: Europress