DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 7 de julho de 2020



A BOMBA DE MONSANTO


Entre o verão de 1975 e a primavera de 1977, Portugal foi sacudido por cerca de seis centenas de atentados terroristas. Às ordens de António de Spínola, operacionais do chamado Movimento Democrático de Libertação de Portugal atacaram sedes do PCP e fizeram rebentar automóveis e residências de personalidades conotadas com a esquerda política.
O episódio que relato aconteceu em 1975, julgo que a 26 de setembro e relaciona-se com as histórias do Ângelo de Trancoso que o meu amigo Moreirão me ia relatando aos poucos.
Poderei faltar à verdade aqui e ali porque a minha memória já não é o que era e o meu amigo já não está entre nós para me esclarecer.
Chamemos Orlando ao homem que levou Spínola a salto para Espanha, quando a sua tentativa de tomar o poder correu mal. Talvez se chamasse mesmo assim. Segundo o meu amigo, trabalhava nas bibliotecas móveis da Gulbenkian nos meses quentes e chorou quando foi despedido. No começo do ano letivo foi para a Guarda para fazer o sexto ano do liceu e hospedou-se em casa de um agente da PIDE que acabaria por influenciar decisivamente as suas escolhas políticas. Quando voltava a Trancoso, dizia ao Moreirão, do meio da rua:
− O senhor qualquer dia também vai!
Suspeitaria que o Moreirão teria alguma coisa a ver com o seu despedimento. Depois, o meu amigo estava conotado com a esquerda desde os tempos de Coimbra. Curiosamente, era vizinho do Ângelo e conversava com ele com alguma frequência.
Contou-me que, quando se instalou em Trancoso, pediu emprestada ao Ângelo uma pistola para defesa pessoal. Meses depois, devolveu-lha. O Ângelo foi buscá-la a casa dele. Contou o meu amigo.
− Eu sabia que ele pensava. Se eu devolvia a arma, era porque adquirira outra. Imaginei que poderia estar a pensar onde a teria escondido. Nem seria preciso procurar longe. Estava debaixo do sofá onde ele estava sentado.
O Orlando era um excelente condutor. Ele e os seus amigos entretinham-se a rebentar à bomba sedes do Partido Comunista.
Segundo o meu amigo, chegou a trabalhar em Lisboa numa casa de câmbios.
No dia em que estava planeado o rebentamento da bomba na antena de Monsanto da RTP, o Orlando e dois correligionários seus foram recolhidos a 4 quilómetros de Aguiar da Beira. Dirigiam-se todos para Lisboa.
Os tempos corriam confusos e os comunistas não se ficavam. Andavam de olho neles e seguiram-nos de automóvel. Com as voltas que deram para se escapar, perderam bastante tempo.
Tratava-se duma bomba relógio e fora programada com antecedência. Os bombistas não chegaram a Monsanto. A bomba rebentou em plena estrada e ficaram feitos em pedaços.
O pai do de Trancoso deve ter recebido uma arroba de notas (foi a expressão do meu amigo) pois, daí em diante, passou a fazer vida larga, sem que se lhe conhecessem meios para isso.
Ainda segundo o meu amigo, as reuniões do ELP em Trancoso decorriam na casa da Guarda Florestal, onde funciona hoje a GNR. O tipo que estava à frente da Guarda Florestal era amigo do Ângelo. Apagavam as luzes exteriores e ninguém dava por nada.



segunda-feira, 6 de julho de 2020



 A DEUSA SERPENTE

PARTE II


Coleciono peças variadas, essencialmente máscaras e armas antigas.
Ao longo do tempo fui adquirindo algumas peças arqueológicas. 
Falei aqui, há algum tempo, de uma estátua de pedra que encontrei num antiquário do Alentejo. Trata-se duma imagem híbrida de mulher e de serpente. Para além da face humana tem também uma cabeça de cobra. Assim, não sei se se trata de um, ou de dois répteis. Achei-a interessante e comprei-a.
Fiquei a imaginar que poderia ter certo valor arqueológico, o que implicaria a impossibilidade de poder continuar a ser propriedade privada. Pensei portanto doá-la a um museu e pensei no Museu Nacional de Arqueologia.
 Como sou médico e não arqueólogo, o que torna as minhas opiniões nesta área altamente falíveis, pedi ajuda a um arqueólogo muito conhecido e enviei-lhe algumas fotografias.
          A resposta pouco tardou. Foi didática e gentil. Exponho aqui o essencial do que me foi dito.


Por aquilo que observo nas fotografias, diria que é uma peça moderna, sem real interesse histórico ou arqueológico.
Durante a Antiguidade, no ocidente da Península Ibérica, o calcário não era utilizado na produção de esculturas de vulto redondo. Só a partir da Idade Média (bem entrada)  se começa a usar essa matéria-prima tanto para elementos arquitetónicos, como para estatuária, usualmente, de índole religiosa
Normalmente, a escultura faz-se para figuras de vulto redondo (aquilo a que mais usualmente chamamos estátuas) ou em elementos arquitetónicos, por vezes historiados  (capitéis, baixos-relevos, etc.). Ora a presente peça que se apresenta de vulto redondo é aquilo a que se pode chamar um objeto informe, não sendo tampouco elemento arquitetónico.
A representação da face humana não se assemelha a nenhum cânone conhecido da escultura antiga. Pode dizer-se que se inspirará vagamente na chamada "arte ibérica" da zona levantina  peninsular (regiões de Cartagena, Múrcia, Valência), onde há também uma tradição de escultura antiga, pré-romana, feita sobre o calcário local, bem diferente do da presente peça.
Se a peça fosse efetivamente antiga, apresentaria por certo muito mais sinais de desgaste e pequenas fraturas, dado o calcário ser material bastante friável.
Assim, diria que de duas uma: ou é peça moderna, em que o escultor explorou algumas dimensões do imaginário antigo, ou sendo peça moderna foi produzida justamente para sugerir tratar-se de uma Antiguidade... Pelo meio, desenha-se a fronteira entre criatividade e desonestidade.
Infelizmente, tem crescido de um modo extenso o universo dos produtores de falsos antigos, com claros intuitos desonestos e comerciais. O fenómeno é mais extenso e mais forte em Espanha, porque o mercado é maior, mas sempre vai sobrando alguma coisa aqui para o lado português. Para ficarmos somente pelo nosso país, há os recentes casos da chamada "Coleção Egípcia" do BPN, uma pretensa coleção de Antiguidades adquirida por aquele banco e supostamente um dos seus ativos, mas que afinal era toda composta por falsificações modernas, o caso já foi julgado, com condenações dos agentes e venda, de sentença transitada em julgado; ou o da chamada "Coleção Estrada", que supostamente constituiria a base do futuro Museu de Arte e Arqueologia da Abrantes e que se verifica ser sobretudo composta por peças falsas, que o colecionador adquiriu de boa-fé.
O vendedor pode ter vendido sem assegurar a antiguidade da peça ou pode ter sido enganado também.
Um tema de que se fala nos últimos tempos tem a ver com a ampla circulação destes falsos. A Guardia Civil espanhola que, nestas coisas é muito mais ativa e eficaz do que a nossa PJ, desmantela periodicamente quadrilhas de salteadores de Antiguidades, usualmente saqueadores de sítios arqueológicos, mas também produtores de falsos - nada melhor para credibilizar um falso que misturá-lo com material autêntico. No final dessas operações, o material autêntico dá entrada em museus espanhóis, em conformidade com as leis locais, mas não se sabe muito bem o que acontece aos falsos. Suspeita-se que voltem a entrar no mercado de antiguidades...


Não divulgo o nome do Professor que me facultou graciosamente essas informações por não lhe ter pedido autorização para as publicar.
Estou-lhe agradecido. Alia à competência técnica a generosidade e a disponibilidade em divulgar os seus conhecimentos. Poderá evitar que outros tansos como eu sejam enganados.
Não perdi grande coisa com o negócio. O senhor que me vendeu a estátua aceitou-a de volta. Trouxe do seu estabelecimento mais algumas armas antigas bonitas.
Agora, que fiquei com pena da deusa serpente, fiquei…






COVID E TRANSPORTES PÚBLICOS


Terminei ontem um livro.
Como aconteceu tantas vezes no passado, regresso aos blogues. 
Tem-nos preocupado a todos a possibilidade de transmissão do coronavírus quando as pessoas se deslocam de e para o trabalho em transportes sobrelotados. Às horas de ponta, os autocarros e os comboios suburbanos vão cheios e o distanciamento social é uma utopia.
A C.P. anunciou há dias a compra de meia centena de carruagens usadas à RENFE. São de bitola ibérica. Os nossos vizinhos estão empenhados em mudar para a bitola internacional. Saem assim consideravelmente mais baratas. São antigas mas, convenientemente remodeladas, poderão servir durante muitos anos. Demorarão, contudo, algum tempo a entrar em funcionamento e não poderão ajudar a combater a presente vaga da pandemia, nem a próxima, se a houver.  
Não vejo as empresas de transporte rodoviário com capacidade de fazer investimentos massivos no aumento das suas frotas.
Não podendo aumentar significativamente a oferta de lugares disponíveis nos transportes públicos e assumindo que o teletrabalho não pode ter aplicação generalizada, resta-nos desfasar os horários e os calendários do trabalho.
A curva de utilização dos transportes suburbanos nas horas de ponta deverá ser também achatada. Serão necessárias medidas governamentais para desfasar os horários de entrada e saída dos trabalhadores das empresas públicas e privadas. Se, em vez de existir uma hora de ponta de manhã e outra à tarde, passar a haver três, as pontas passarão a ser bem menos aguçadas e os utentes poderão ir mais afastados e seguros.
Depois, enquanto durar a pandemia, os dias semanais de descanso deverão passar a ser rotativos. Com base (por exemplo) no último número do cartão de cidadão, uma parte dos trabalhadores folgará aos sábados e domingos, outra parte aos domingos e segundas, uma outra às segundas e terças, e assim sucessivamente. Julgo que as autoridades religiosas não se oporão frontalmente a alterações provisórias de evidente interesse sanitário para os seus fiéis.
Teria, naturalmente de existir coordenação para que as famílias pudessem descansar nos mesmos dias. Por essa razão, as escolas teriam também de rodar os dias de folga.
As medidas propostas seriam revertidas logo que a pandemia abrandasse.
Confesso que não estou à espera de que as minhas ideias sejam ouvidas e aceites. Quer-me parecer, contudo, que teríamos todos mais saúde, se assim fosse.

Nota: a imagem foi retirada da Internet. A assinatura do (excelente) desenhador é bem visível.