DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 6 de julho de 2020



 A DEUSA SERPENTE

PARTE II


Coleciono peças variadas, essencialmente máscaras e armas antigas.
Ao longo do tempo fui adquirindo algumas peças arqueológicas. 
Falei aqui, há algum tempo, de uma estátua de pedra que encontrei num antiquário do Alentejo. Trata-se duma imagem híbrida de mulher e de serpente. Para além da face humana tem também uma cabeça de cobra. Assim, não sei se se trata de um, ou de dois répteis. Achei-a interessante e comprei-a.
Fiquei a imaginar que poderia ter certo valor arqueológico, o que implicaria a impossibilidade de poder continuar a ser propriedade privada. Pensei portanto doá-la a um museu e pensei no Museu Nacional de Arqueologia.
 Como sou médico e não arqueólogo, o que torna as minhas opiniões nesta área altamente falíveis, pedi ajuda a um arqueólogo muito conhecido e enviei-lhe algumas fotografias.
          A resposta pouco tardou. Foi didática e gentil. Exponho aqui o essencial do que me foi dito.


Por aquilo que observo nas fotografias, diria que é uma peça moderna, sem real interesse histórico ou arqueológico.
Durante a Antiguidade, no ocidente da Península Ibérica, o calcário não era utilizado na produção de esculturas de vulto redondo. Só a partir da Idade Média (bem entrada)  se começa a usar essa matéria-prima tanto para elementos arquitetónicos, como para estatuária, usualmente, de índole religiosa
Normalmente, a escultura faz-se para figuras de vulto redondo (aquilo a que mais usualmente chamamos estátuas) ou em elementos arquitetónicos, por vezes historiados  (capitéis, baixos-relevos, etc.). Ora a presente peça que se apresenta de vulto redondo é aquilo a que se pode chamar um objeto informe, não sendo tampouco elemento arquitetónico.
A representação da face humana não se assemelha a nenhum cânone conhecido da escultura antiga. Pode dizer-se que se inspirará vagamente na chamada "arte ibérica" da zona levantina  peninsular (regiões de Cartagena, Múrcia, Valência), onde há também uma tradição de escultura antiga, pré-romana, feita sobre o calcário local, bem diferente do da presente peça.
Se a peça fosse efetivamente antiga, apresentaria por certo muito mais sinais de desgaste e pequenas fraturas, dado o calcário ser material bastante friável.
Assim, diria que de duas uma: ou é peça moderna, em que o escultor explorou algumas dimensões do imaginário antigo, ou sendo peça moderna foi produzida justamente para sugerir tratar-se de uma Antiguidade... Pelo meio, desenha-se a fronteira entre criatividade e desonestidade.
Infelizmente, tem crescido de um modo extenso o universo dos produtores de falsos antigos, com claros intuitos desonestos e comerciais. O fenómeno é mais extenso e mais forte em Espanha, porque o mercado é maior, mas sempre vai sobrando alguma coisa aqui para o lado português. Para ficarmos somente pelo nosso país, há os recentes casos da chamada "Coleção Egípcia" do BPN, uma pretensa coleção de Antiguidades adquirida por aquele banco e supostamente um dos seus ativos, mas que afinal era toda composta por falsificações modernas, o caso já foi julgado, com condenações dos agentes e venda, de sentença transitada em julgado; ou o da chamada "Coleção Estrada", que supostamente constituiria a base do futuro Museu de Arte e Arqueologia da Abrantes e que se verifica ser sobretudo composta por peças falsas, que o colecionador adquiriu de boa-fé.
O vendedor pode ter vendido sem assegurar a antiguidade da peça ou pode ter sido enganado também.
Um tema de que se fala nos últimos tempos tem a ver com a ampla circulação destes falsos. A Guardia Civil espanhola que, nestas coisas é muito mais ativa e eficaz do que a nossa PJ, desmantela periodicamente quadrilhas de salteadores de Antiguidades, usualmente saqueadores de sítios arqueológicos, mas também produtores de falsos - nada melhor para credibilizar um falso que misturá-lo com material autêntico. No final dessas operações, o material autêntico dá entrada em museus espanhóis, em conformidade com as leis locais, mas não se sabe muito bem o que acontece aos falsos. Suspeita-se que voltem a entrar no mercado de antiguidades...


Não divulgo o nome do Professor que me facultou graciosamente essas informações por não lhe ter pedido autorização para as publicar.
Estou-lhe agradecido. Alia à competência técnica a generosidade e a disponibilidade em divulgar os seus conhecimentos. Poderá evitar que outros tansos como eu sejam enganados.
Não perdi grande coisa com o negócio. O senhor que me vendeu a estátua aceitou-a de volta. Trouxe do seu estabelecimento mais algumas armas antigas bonitas.
Agora, que fiquei com pena da deusa serpente, fiquei…

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