DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

 


                   APRESENTAÇÃO DO LIVRO


                         O DIA EM QUE DEUS 

            COMEÇOU A DESMONTAR O MUNDO




                   Doutor António Bárbolo Alves

                Centro de Estudos em Letras

         Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro


 “Há rios que deslizam por vertentes opostas da mesma montanha, como lágrimas que escorrem apenas por um dos lados da face. Só é permitido a cada um o entendimento da sua encosta. Não se conhecem, nem sabem do sofrer da outra parte. As correntes seguem trajetos quase paralelos. Os caudais aproximam-se, uma vez por outra. Tocam-se, mas não juntam as águas.” (O Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo, Prólogo).

 Em face da nossa imagem ou da nossa sombra, estamos continuamente à procura dos nossos limites. Quem não gostaria, nem que fosse por um momento, de alcançar o lado de lá do espelho, parar o tempo para tocar o rosto da outra criatura sem turvar a água? Mas, como sabemos, a aventura misteriosa que Narciso iniciou é impossível, porque a imagem e a sombra são iguais. Confrontado com as suas limitações, com o mundo que nos limita e nos divide, o ser humano procura superar-se, vencendo ou contornando aquilo que as divindades e as potências infernais jamais lhe concederam. Um dos primeiros rostos deste desafio encontramo-lo, na nossa civilização, na enigmática e ambígua figura que os Egípcios esculpiram na rocha do deserto e os gregos colocaram à entrada de Tebas: a Esfinge. Com corpo de leão e cabeça humana, a Esfinge é a encarnação perfeita da nossa própria ambiguidade e a realização plástica mais concreta de um dos actos mais antigos da criação humana: a arte e, neste caso, a literatura.

Coincidência ou não, também Dumba, personagem do nosso livro, informe e diabólica criatura (ainda que sem as metamorfoses satânicas e teratológicas vulgarmente atribuídas ao diabo), se une pelo seu sobrenome a esse ser misterioso e enigmático que os antigos colocaram como guardião das pirâmides e deixaram errar perigosamente pelos caminhos de Tebas. Dumba é o “leão-do-homem”, ladrão de sonhos e uma espécie de “demónio pessoal e doméstico”. Nascido da vontade e sobretudo da ambição do curandeiro Hende, este ser débil e frágil − “tão leve que qualquer pequeno sopro o levaria de volta ao mundo dos mortos” − depressa cresceu e foi ganhando força:

“Foi-lhe dada voz. Aprendeu logo a mentira e o fingimento. Matreiro por natureza, era, acima de tudo, curioso. Às vezes chegava a sentir-se quase gente.” Aprendendo a enganar, a fingir e a mentir, passou naturalmente a assemelhar-se aos humanos. Mas aprendeu também a ler os pensamentos e os sonhos, perscrutando as almas e falando com elas porque lhe foi dada “voz”. E ao ganhá-la, deixou de se assemelhar à antiga esfinge egípcia − colossal, enigmática, mas sempre silenciosa – transformando-se na esfinge grega, que falava e propunha um enigma a todos os seres humanos, terminando com a terrífica ameaça: decifra-me ou devoro-te!

É com altivez e desprezo que os deuses olham e interrogam os humanos. E foi também com alguma sobranceria, talvez libidinosa, que Dumba seduziu primeiramente Chissola, uma das mulheres de Hende, seu amo, e acabou por engravidar também as outras três, cumprindo assim aquilo que o curandeiro, por ser estéril, não conseguira fazer, nem ele, sozinho, nem com a ajuda de nenhuma mezinha dos seus amigos feiticeiros. Na longínqua Tebas o monstro foi vencido por um adolescente que por ali passava. O jovem Édipo que só sabia uma coisa: todos os enigmas são enigmas do homem. Logo, a resposta à pergunta da Esfinge só podia ser “homem”. Acertou. A Esfinge, derrotada, envergonhada e furiosa, lançou-se dos rochedos e precipitou-se no mar, despedaçando-se. Porém, como se sabe, o Destino não foi particularmente propício com o jovem herói: a engrenagem mais bem montada do Fado fez com que ele se casasse com a mãe, assassinasse o pai, e depois, confrontado com a cruel realidade, por desgosto, fugisse e arrancasse os próprios olhos.

Na nossa história, Dumba, confrontado pelas mulheres com a inflexibilidade de levarem a gravidez até ao fim, também é obrigado a fazer sumir Hende que é, simbolicamente, seu pai. Assumiu o seu papel, “vestiu a forma do amo” e adoptou a sua posição. Mas aquele mundo fechado, aquele papel de pai adoptivo e “feiticeiro substituto”, depressa o levaram ao tédio. “Afinal, o mundo era imenso. Atrás de uma serra, escondiam- se outras. Havia terras sem fim a palmilhar. Ouvira falar de um rio muito grande e também do mar. Dizia-se que havia pessoas de costumes e linguagem diferentes e que até existiam quimbos habitados por gente de pele clara.”

“Preso àquele chão, o diabo tinha falta de ar. Tomou uma decisão. Enquanto pudesse, havia de caminhar e de experimentar coisas novas. Resolveu deixar para trás tudo o que conhecera até então. Voltou as costas às quatro esposas. Anunciou, alto e bom som, que se dirigia para leste, à procura de ervas para tratar doenças de criança.”

Foi na busca de novos rios, de novas paisagens e de novos costumes, que Dumba partiu. No seu percurso atravessa lugares reais – como a fenda da Tundaval; a (serra da) Chela; o Munhino; o Lubango, o Cunene onde se deixa ferozmente levar pelas cataratas do Ruacaná – mas este périplo constitui sobretudo uma viagem pelo mundo onírico, e uma profunda peregrinação pelos dédalos e pelos labirintos da alma e do ser humano. Por isso, diz o narrador, “recolheu sonhos de cão, de porco, de hiena, de aves diversas, e até de um ovo. Juntou-os cuidadosamente aos dos meninos e adultos”, embora preferisse “os das aves e os dos velhos.”

Foi à procura de respostas que Dumba se fez “peregrino”. Não sou eu que o digo, é o narrador que assim descreve o momento da sua partida:

“Quando Dumba iniciou a sua peregrinação, ainda estava escuro.” Ora, uma breve incursão pela filologia permite-nos concluir que esta palavra, de origem latina, onde adquiriu significados próximos dos que hoje lhe atribuímos, é primeiramente composta pelo prefixo “per” e o nome “ager”, querendo por isso dizer, ir pelos campos, e ajustando-se assim a motivação etimológica, uma vez que a viagem de Dumba não tem qualquer objectivo religioso. “Calcorreava os caminhos de Angola”, aparentemente sem destino, sem outra motivação que não fosse a de procurar, quem sabe, uma solução, uma resposta, as respostas. É isto religioso? Talvez. Fica para cada um de vós, ouvintes que, estou certo, se converterão brevemente em leitores, a interrogação e a resposta. Quanto a Dumba, como bom peregrino, “entregou-se à caminhada como se a marcha em si mesma pudesse constituir um objetivo. Procurava alívio para alguma dor que era incapaz de precisar.”  Não esqueçamos que um dos seus atributos é ser “ladrão de sonhos”.

O enigma continua presente e a Esfinge, começando pela do antigo Egipto, cujo sorriso enigmático os antigos egípcios interpretaram como sendo uma interrogação, é afinal uma resposta. Ora, os mistérios não pedem respostas, não precisam de ser decifrados, é preciso aprender a olhá-los sem a tentação de os interrogar pois o silêncio constitui a sua densidade. Quanto a Dumba, apesar de todas os seus poderes − era invisível, “lia facilmente os pensamentos e dava conta dos defeitos e qualidades que cada um escondia atrás do semblante” e julgava até “entender os mecanismos dos sonhos” – não conseguia parar a torrente de questões, nomeadamente sobre a natureza dos sonhos: “Seriam livres os sonhos? O leão-do-homem achava que não. Eram bois atados por cordas compridas. Corriam, mas acabavam por ser conduzidos de novo ao curral. E esses fios de ideias soltas do corpo, queriam todos voltar? Nenhuns se evadiam? Perguntas... Perguntas...” Talvez seja por isso, pela ausência de respostas, que Dumba retoma sempre a sua “peregrinação”, viajando de noite, porque a “escuridão sempre lhe dava alguma tranquilidade”, e sempre à procura de explicações para melhor entender os brancos e os pretos, ou os “pretos-brancos ou brancos-pretos”, “viera do nada e caminhava para sítio nenhum.” A Esfinge interrogava os tebanos. Dumba interroga quem encontra, mas interroga-se sobretudo a ele próprio, retoricamente, parvamente, tontamente e quase sempre sem respostas: “Perguntava e respondia. – Que sabedoria habita nas chamas? – Provavelmente nenhuma. No entanto são fortes. Só a chuva as detém. – E eu, leão-do-homem, que ando a fazer? – Observo. Registo. Pergunto. Guardo as respostas. – O que aprendi, de que me serve? – De nada… – Quem acederá ao meu saber? – Ninguém. – Isso é mau? – Nem mau, nem bom. Encolheu os ombros e retomou a caminhada.

 Ao entardecer, deu-lhe para olhar para dentro de si. Gostou pouco do que viu. Sabia que não era único, mas nunca lhe acontecera dar com outro leão-do-homem. Se o encontrasse, que faria? Iria falar-lhe? Para quê? Que ganharia com isso? Continuou a fazer perguntas parvas. Procurou que as mahambas nada ouvissem. De qualquer forma, já não tentava responder. – Um pequeno diabo tem alguma utilidade? – De que serve viver? Gozar, dá mesmo gozo?”

Paralelamente à história de Dumba, na outra vertente da montanha, corre outra, a de um missionário espiritano, Bernardo Moresville, que vamos conhecendo através de um suposto “Diário” encontrado num baú da Missão da Mupa, no sul de Angola. Segundo o narrador, “estava escrito em alemão e foi difícil encontrar quem se dispusesse a traduzi-lo.” A sua visão é a de um europeu, que tenta compreender os enigmas de África através do seu olhar cristão, católico e racional, reconhecendo as suas limitações e procurando ir ao encontro das almas africanas: “Ainda não estou preparado para recolher ovelhas para o rebanho do Senhor. Ocupo-me em aprender a ouvir e falar. Um missionário tem de se entender muito bem com os indígenas. Se não fosse dotado de algum talento para as línguas, estaria a sentir-me infeliz.” E mais adiante: “Os cuanhamas da vizinhança da Missão vão aceitando conversar comigo. Tenho falado até com alguns quimbandas. Não procuro convencê-los. Neste momento, manter o diálogo é tudo a que posso aspirar. Vou aprendendo tudo o que posso sobre as suas crenças.” Simbolicamente, as duas narrativas, ou melhor, as duas vidas ou as duas visões, encontrar-se-ão uma única vez quando Dumba, de passagem pela região do  Munhino e tendo ouvido falar dos missionários que eram “quimbandas europeus que tentavam convencer os povos da Huíla de que Kalunga fora, em tempos, preso por uns brancos maus e sujeito a morte cruel”, “resolveu entrar no espírito do missionário” e conhecer-lhe os sonhos:

“Quase se perdeu. Achou-lhe a mente complicada. Abarrotava de ideias. Pareciam muito bem arrumadinhas, mas não fluíam livremente. Estavam atadas a regras fortes de disciplina. O Kalunga dos europeus estava em todo o lado. Dominava aquele homem. Associava-se a uma necessidade incompreensível de persuadir todas as pessoas do mundo a pensar da mesma maneira. Convencê-las era o objetivo primordial de toda a sua vida.” Mas Dumba descobriu também que “debaixo das ideias organizadas sobrevivia um espírito angustiado e carregado de dúvidas.” Que o missionário não acreditava, pelo menos com suficiente firmeza, em tudo o que pregava, nem estava certo de seguir exactamente os caminhos do bem. Contudo, seguindo os princípios africanos, ele não estava ali para mudar e muito menos para julgar ninguém. Por isso “saiu daquela alma antes que a manhã viesse”, deixando o missionário entregue aos seus sonhos, às suas inquietações e às suas dúvidas.

Ainda assim essa experiência, no mar das suas interrogações, ajudou-o a ver com toda a clareza “que .. os homens eram parecidos uns com os outros como folhas da mesma árvore. Muito enganados viviam os que se consideravam especiais ou superiores. A condição humana irmanava-os mais do que podiam imaginar.” Tal como o mistério, agora sepulto, das portas de Tebas, será possível encontrar um futuro para a humanidade – para África – edificado no “homem” e no próprio homem? A verdade é que desde o início da obra (desde o “Prólogo” de que lemos o primeiro excerto), o autor nos adverte que o livro foi “construído sobre duas formas diversas de encarar o mundo”, e que África é a “designação da cordilheira que separa” (não une) o “Rio dos Brancos do “Rio dos Negros”.  

Estas barreiras, Bernardo Moresville, o missionário, vai-as descobrindo e contornando como sabe e como pode, adaptando a sua pregação e a sua doutrina: “– Senhor Padre... O Senhor Deus, de que cor é? Hesitei, pensando na melhor forma de responder. Às vezes a palavra é chave: abre a questão, como se desfizesse um nó. Outras vezes aperta-o e ninguém mais o desata. – Eu sei! Vi lá na igreja – Disse a pequena Catima. Deus é branco. Branquinho como as palmas das minhas mãos! – Deus não é preto nem é branco… – Então é mulato.... – Interrompeu o Carlos. – Também não! Eu explico. Comecei a falar. Não segui o caminho mais direito, mas não me sentia capaz de contar a verdade toda. Ali ninguém aceitaria um Deus sem corpo. – Deus tem muitas cores, e nem sempre escolhe a mesma. Gosta da cor da terra quando para de chover e, quando calha, usa-a. Agrada-lhe o verde do capim fresco da manhã e confunde-se com ele. Outras vezes é do tom do riacho que se desequilibra e tomba na cascata. Há dias em que se pinta do amarelo do sol que, lá do alto, manda em todos, ou do vermelho em que ele se embrulha quando está cansado e quer dormir. Chega a vestir a cor da noite e de alguns dos nossos sonhos. – Mas o preto não é a cor do diabo? – Não! Vocês são negros e são filhos do Senhor.”

No século XVI, ao tentar compreender o choque que representava a descoberta do Novo Mundo, Michel de Montaigne escreveu nos seus célebres Ensaios que o “nosso mundo acabava de descobrir outro”. Esta frase do célebre humanista, tantas vezes repetida, esquece muitas vezes o raciocínio e a crítica que se lhe seguem. A “criança” acabada de nascer, diz Montaigne, não se transformou, como seria natural e desejável, num simples irmão mais novo. Depressa foi dominado pelo mais velho, o Mundo Antigo, mesmo sabendo que o “novo” não lhe era, em nada, “inferior”. Para além disso, o mais velho aproveitou a inexperiência do mais novo para o dominar, para mais facilmente lhe incutir as ideias de traição, de luxúria, de ganância e todo tipo de desumanidade, seguindo o exemplo e o modelo dos nossos costumes.

Já voltaremos a esta questão dos dois mundos. Para já, vamos ao encontro do Dumba na sua caminhada para o sul, junto ao grande rio de que tanto ouvira falar. Lembrámos, no início destas palavras, como o mito de Narciso nos coloca perante os nossos limites: a impossibilidade de parar o tempo para que o nosso rosto se detenha sobre a outra criatura que nos sonhamos. Mas os deuses, naquilo que têm de criação humana, permitem-no, ainda que muitas vezes pagando preços demasiado elevados ou inatingíveis. Foi isso que aconteceu com a mulher de Loth, incapaz de se libertar do passado e, olhando para trás, transformada em estátua de sal; Orfeu, a quem foi concedido o momento único, claro e irrepetível de ver Eurídice, ao olhar passa trás, viu-se também condenado a perder, irreversivelmente, a sua amada, e ele próprio a ser condenado à tristeza, à solidão e à morte. Também Dumba, na magia das palavras ou na magia pura, se encontra com ele próprio, num momento ímpar e pleno de simbolismo: “Havia lugares, junto à margem, onde a água acastanhada mal se movia. Dumba aproveitou para se mirar. Via tão bem de noite como de dia, mas aquela superfície enganava. A imagem que lhe foi devolvida confundiu-o: era velho e novo, morto e vivo. O passado e o futuro sobrepunham-se. Eram iguais os caminhos para a frente e para trás. Às tantas, pareceu-lhe que estava do outro lado do espelho. Estranhou-se. Dizia “eu” e quase jurava que a voz vinha do fundo. Era como se tivesse vestido a pele às avessas. Indiferente, o Cunene seguia o seu caminho.”

 Mas esta indiferença que os elementos naturais dispensam aos homens, nem sempre é partilhada pelos deuses. A partir do Céu ou do Olimpo, Hermes não cessa de interpelar os humanos ainda que eles nem sempre estejam à altura de decifrar as suas mensagens. Por isso, nem Dumba nem Bernardo Moresville são capazes de entender os sinais vindos do alto. O missionário interroga-se: “Se Deus, na sua imensa sabedoria, se revelou aqui como Kalunga, vim para o local errado e ando a espalhar a confusão nas almas desta gente. Terá sido por isso, também, que Deus se zangou.” Seja como for, o certo é que, olhando o firmamento, Bernardo de Moresville estava certo de que faltavam algumas estrelas no céu, e isso só podia ser um mau agoiro: “Faltam estrelas no céu, disso não tenho dúvidas. Talvez o brilho delas não seja eterno. Pode ser que o fogo de algumas se apague mais cedo do que doutras.”

Do outro lado da “montanha”, os olhos de Dumba vêem “nuvens de fumo negro” que são, imagina ele, apenas “a respiração da terra doente”. Mas este olhar primevo que o deixa também imaginar, no céu, “pássaros de ferro”, depressa se esvanece na realidade crua da guerra, pois as ditas “aves” despejavam fogo e morte, ceifavam homens, mulheres e crianças, “a besta não escolhia cores nem tribos: varria a eito. Angola soluçava.”

O resto da história já nós a conhecemos. Ou julgamos conhecê-la! O dia em que Deus começou a desmontar o mundo é assim uma viagem pela realidade africana, mas é sobretudo uma interrogação sobre o Homem, as culturas, as formas e as possibilidades de integração e de miscigenação cultural. O lado do Portugal colonizador, missionário e conquistador aparece-nos aqui de uma forma que podemos chamar “à portuguesa”, isto é, baseada no “desenrascanço”, disfarçando as nossas dificuldades e as nossas limitações, mas também os nossos desejos de sedução, as relações com o outro, da forma mais suave e mais discreta possível. A propalada aptidão dos portugueses para sermos “outros” encontra eco na expressão pessoana de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”. Mas esta não é mais do que a manifestação dramática da multiplicidade e, porventura, da vontade de imitar o próprio Deus. Na realidade, como reconhece o nosso narrador, pelos olhos de Dumba, “o mundo dos brancos penetrara fundo nas almas negras. O contrário também acontecera, mas numa escala muito menor.” E “quando os europeus abalaram, nada voltou a ser como dantes.” Nas palavras de Fernando Pesssoa, "um português que é só português não é português". E a verdade é que a capacidade de adaptação de que os portugueses deram provas ao longo da sua história de emigrantes e de marinheiros parece dar razão ao paradoxo pessoano, ainda mais claro e adequado se pensarmos no Grande-Cais – evocado na Ode Marítima – “donde partimos em NaviosNações”. É a bordo deste barco que, segundo a máxima de Pascal, “todos nascemos embarcados, e um dia desembarcamos”. Mas a dimensão do navio português foi sempre muito maior do que este exíguo rectângulo à beira-mar plantado. Do Minho a Timor ou de Macau à Amazónia, este super-país imaginário parece também encontrar eco nos devaneios de Dumba, em cujos sonhos e memórias se confundem e se entrelaçam “o passado e o presente”. Afinal, não podemos esquecê-lo, Portugal nasceu sob o olhar de Deus. Pelo menos assim o imaginaram os cronistas e poetas, desde o simbólico milagre de Ourique até à “consagração” do Infante D. Henrique, fazendo de Portugal uma espécie de nação à margem da História, na esperança permanente e hierofânica da consumação de um Quinto Império. Por isso, se os deuses presidiram à construção de Portugal e do seu Império imaginário, bem podemos cometer a heresia de lhe conceder o direito de o desconstruírem! Ainda que o nosso missionário tenha muita dificuldade em compreendê-lo e muito mais em aceitá-lo! “Seria terrível pensar - diz ele - que Deus se arrependeu da sua obra e começou mesmo a desmontar o Universo.”

Deixámos há pouco em aberto a questão dos “dois mundos” que, nesta obra, tal como a peregrinação de Dumba e a vida do missionário, correm paralelamente. Estão próximos, mas nunca ou raramente se encontram. As águas onde Narciso se vê, seduzem-no e encantam-no, mas condenam-no também a nunca mais se encontrar. Ao contrário do mito bíblico de Babel no qual, segundo algumas leituras, Deus castigou os homens a não se entenderem, na nossa narrativa foi o pecado da incomunicabilidade, o desrespeito e pela não-aceitação do pacto de compreensão que devia existir entre os humanos, que desencadeou a ira divina. O dia em que deus começou a desmontar o mundo é assim a narrativa do pacto possível entre dois mundos – europeu e africano, português e angolano, Deus e Kalunga –, superficialmente pacíficos, mas que, no fundo e no final, não foram capazes de comunicar, isto é, de se entender. Nesta viagem ao mundo das sombras, isto é da alegoria, ou seja, do sentido que não se encontra na “ágora”, na praça pública, mas sim fora dela, o que encontramos são interrogações, são enigmas, são metáforas. Ora, não há enigma maior do que o que representamos para nós próprios. E esse enigma nunca será resolvido. Neste sentido, também esta obra, tal como a Esfinge, não dá respostas, interroga-nos. Compreendê-la é olhá-la, é lê-la, sem a tentação de lhe perguntar nada.

Uma última nota para o prémio que esta obra conquistou. Para além da homenagem ao Professor Adriano Moreira, celebra-se a lusofonia, a sua diversidade cultural, a suas vozes e as suas línguas. É bem curiosa, aliás, a descoberta de Carlos Estermann, também ele missionário e companheiro de Bernardo de Moresville, sobre uma velha questão linguística que tem a ver com a forma como as línguas condicionam, ou não, a nossa maneira de ver o mundo: “Estermann acabou por fazer uma constatação curiosa. A mulher pensava em cuancala e em banto. Ao pensar na língua nativa não tinha barreiras nem tabus – as ideias expandiam-se como se percorressem a floresta contornando as árvores e os obstáculos naturais. Só as detinham a fome e a sede. Quando pensava em cuanhama, os conceitos deixavam-se circundar pelos cercados de espinheiras.” Não entraremos aqui nessa velha discussão que opõe os defensores de uma “gramática universal”, àqueles para quem as línguas são sobretudo variabilidade e diferença. Todos nós, sobretudo aqueles que falamos línguas diferentes, temos experiências semelhantes à desta mulher. Podemos, por isso, tirar as nossas conclusões… Quanto à obra que aqui nos traz e nos reúne, sendo ela própria polifónica, convida-nos a escutar a pluralidade das línguas e culturas que pululam no espaço angolano, africano e lusófono. Para além do português, língua da narração, podemos ouvir um conjunto de palavras de outros idiomas que o narrador vai utilizando, sem esquecer as referências a outras línguas como o umbundo, o quimbundo, o cuanhama, o ndonga, o banto, entre outras, que somos desafiados a descobrir. “Talvez sejam as línguas que vão escolhendo os escritores de que precisam”, diz Ricardo Reis, diante da estátua de Eça de Queirós, uma vez regressado do Brasil. “Serve-se deles para que exprimam uma parte do que é”, mas, adverte, “quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver.” Nós, simples leitores, agradecemos às línguas que, servindo-se ou não dos escritores, nos permitem viajar nos sonhos, embarcar nos mitos e nas utopias. “Os homens, lembra o nosso narrador, são os grandes sonhadores da natureza, embora estejam longe de ser os únicos.” Por isso, esta obra é também uma viagem, fala do passado, mas desafia-nos sobretudo a interrogar o futuro. Lembrando que, sem a espessura desse passado, sem conhecer a nossa história, individual e colectiva, teremos o presente, mas o futuro será apenas uma candeia apagada, sem luz, sem esperança e sem sonhos.

Bragança, 19/Junho/2021


quinta-feira, 10 de junho de 2021

 


OS MEUS LIVROS


EU, CAMILLO

 


Tal como o anterior, o quarto livro que publiquei foi uma biografia em forma de diário. De entre os escritos que Camilo Castelo Branco nos deixou na primeira pessoa, selecionei os que se adaptavam ao meu projeto. Depois, inventei os que estavam em falta, procurando respeitar a verdade histórica e tentando não me afastar da personalidade do escritor, tal como a entendi.

Enquanto a escrita de António de Oliveira Salazar era relativamente simples e fácil de reproduzir, imitar o estilo de Camilo obrigou-me a um esforço de proporções quase camaleónicas.

Uma vez publicado o livro, sofri uma desilusão. Apesar de ter sido elogiada por conhecedores, a obra conheceu um sucesso comercial muito limitado. Pensei, na altura, que Camilo Castelo Branco morrera uma segunda vez quando retiraram os seus livros dos currículos escolares obrigatórios do ensino secundário.



Parceria A.M. Pereira, 2006.