DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 14 de abril de 2018




QUE NOS DIZEM AS MÁSCARAS?




A maior parte das minhas máscaras dorme no vão da escada. Outras estão por aí, em paredes ou armários.
Imagino que conversem, durante a noite.
Mesmo de dia, caladas, contam-nos coisas. 



Tanto quanto se sabe, as máscaras existiram em todas as culturas. Persistem entre nós, no nordeste do país, mas assumem ainda hoje uma vitalidade impressionante entre certos povos africanos e sul-americanos.
São geralmente feitas de materiais perecíveis, como o couro, a madeira ou a porcelana. Há exceções notáveis, executadas em metais preciosos e representando reis. É o caso da máscara funerária de Agamenon, o lendário rei de Micenas que terá liderado os gregos no cerco a Troia. 


  E da famosa máscara do egípcio Tutankamon




A madeira foi sempre o material mais usado pelos artífices. O caruncho e os seus parentes xilófagos devoram também cultura. São raras as peças esculpidas em troncos de árvore que resistem ao correr dos séculos.
Aprendemos a fazer máscaras mais ou mesmo ao mesmo tempo em que aprendemos a mentir, isto é, logo depois de proferirmos as primeiras palavras. Fingir, representar, é próprio do homem.
Julgo, que mesmo antes de criar instrumentes cortantes eficazes, o homem aprendeu a esconder-se atrás de ramos de árvores, de cascas de plantas, ou de crânios e de peles de animais.
As máscaras dizem-nos coisas sobre as civilizações que as produziram e sobre o modo de pensar dos seus escultores. Transmitem-nos sentimentos.
      Expectativa? Aceitação? Perplexidade?     



            O silêncio de quem guarda os mistérios


                que não devem ser revelados?




A serenidade da beleza que se sabe fugaz



O vazio da expressão do homem-pássaro que sabe que não voltará a voar



        Assiste-se à dualidade de Janus, que não

        se compromete com qualquer dos mundos



             Ao anseio pelo som dos tambores 

                   para que comece a dança



Há quem se espante com a diversidade do mundo.




Quem pretenda afrontar o demónio



E quem seja o próprio demónio.



    As máscaras dizem-nos quase tudo o que 

                    queiramos ouvir, ou ler.


  Umas confrontam-nos com a certeza da morte



      E outras mostram os diabos tristes 

                      dos nossos carnavais



         Há as que revelam a besta que

                  se esconde dentro de nós.




           E as que nos ligam, de forma mágica, 

                       ao mundo animal.


Algumas denunciam a angústia de não terem por trás um rosto humano, pois as máscaras dão feições aos espíritos e aos medos que assombram as noites dos homens.

                   Ponho esta máscara


                              E esta


                          e depois esta.



Retiro-as.
       Mudei?
       Fiquei o mesmo?

    Se as máscaras tentarem mesmo conversar, nas horas do meu sono, hão de ter dificuldade em entender-se umas às outras. Provém de locais diferentes do globo e, que eu saiba, não se encontra um intérprete entre elas. 



segunda-feira, 9 de abril de 2018


    NO CENTENÁRIO  

DA BATALHA DO RIO LYS



Às 4 e um quarto da madrugada do dia 9 de Abril de 1918, a artilharia germânica iniciou um bombardeamento de intensidade nunca vista pelas nossas tropas. Durou 4 horas e destruiu as defesas da primeira linha. Depois, os boches lançaram oito divisões de infantaria contra as extenuadas forças portuguesas.
As explosões abalaram os doze quilómetros de frente guarnecidos pelos portugueses e fustigaram as bordas dos setores vizinhos. Os obuses caíam sem cessar e eram cada vez melhor apontados. A segunda linha de trincheiras foi atingida em pleno. Os boches pareciam saber exatamente onde se encontravam os ninhos de metralhadoras. A maioria foi silenciada antes de estar à vista alguém em quem atirar.
Os clarões das explosões iluminavam a noite mais do que a aurora nascente. A terra estremecia. Houve extensões de trincheira que foram soterradas, com os ocupantes dentro. Deixou de ser possível circular sem exposição a céu aberto e a cadeia de comando perdeu-se. Viam-se pedaços de corpos destroçados e ouviam-se gritos de agonia por todos os lados.
O terror tomou conta de muitos dos nossos combatentes. Quando a infantaria alemã avançou, a debandada em direção à terceira linha de trincheiras foi geral.
A morte iguala valentes e cobardes. Os monumentos à memória dos soldados caídos em combate não os discriminam. Convém à tranquilidade de espírito da Pátria considerar que todos foram heróis, mas não é assim em guerra nenhuma. No dia 9 de Abril de 1918, muitos portugueses viram a morte de frente, mas foram também numerosos os atingidos pelas costas. Era a “batalha do rio Lys”. No espaço de poucas horas, foram abatidos 7.000 soldados e mais de 300 oficiais portugueses. Foi o maior desaire militar lusitano desde Alcácer Quibir.
Os destroços do C.E.P. foram transferidos para a retaguarda e concentrados na região de Samer. A desmoralização das forças portuguesas era notória. A guerra, para nós, terminara. Os ingleses ainda integraram algumas unidades nas suas forças e usaram outras como cavadoras de trincheiras. O que restava do nosso Corpo Expedicionário manteve-se em França até final de 1918.



Modificado de "República, Luz e Sombra", de António Trabulo

quarta-feira, 4 de abril de 2018



NO BICENTENÁRIO DO 

NASCIMENTO DE KARL MARX

III

           DIALÉCTICA

É sabido que existem ignorantes atrevidos que se atrevem a pôr em causa ideias que conhecem mal. Falo de mim.
Durante muitos anos aceitei que o conceito de Dialética, lançado por Hegel e aperfeiçoado por Feuerbach e Marx explicava satisfatoriamente a evolução do mundo e das sociedades.
A dada altura da minha vida, deu-me para descrer da dialéctica. Parece-me demasiado esquemática e mal adequada a explicar a confusão do Universo. A união e a luta dos contrários afigura-se-me simplista. Nem sempre serão contrários os múltiplos elementos que compõem o mundo e a nós próprios. Conhecemos apenas uma parte deles. Umas vezes digladiar-se-ão, enquanto outras constituirão alianças, trocarão partes ou, simplesmente, se ignorarão mutuamente.


Agrada-me mais o conceito de Lavoisier, que foi filósofo sem o pretender ser. Enunciou o princípio de conservação da matéria: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Alegadamente, o russo Mikhail Lomonossov terá chegado anos antes a uma conclusão semelhante.
Sinto-me tentado há muito a alargar esse princípio à energia, e assim ao conjunto do cosmos. Não alimento ilusões megalómanas: muitos outros o terão feito antes de mim.
Seria assim mais fácil entender o Universo: não começou e não terá fim, nem no tempo, nem no espaço. Se se dilata numa região, como asseguram os físicos que está a acontecer agora, há-de contrair-se noutra. As forças centrífugas e centrípetas hão de contrabalançar-se. À escala cósmica, o Big Bang não passará de outra madrugada.