DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 15 de agosto de 2020

 


15 de Agosto

 

Cresci no sul de Angola, na cidade de Sá da Bandeira, fundada por colonos madeirenses no começo de 1885. Situa-se no planalto da Serra da Chela a mais de 1.800 metros de altitude e é hoje mais conhecida por Lubango.

Ali, a temperatura amena surpreende quem se desloca das terras quentes do litoral. Dão-se lá bem muitas das culturas portuguesas.

Os ilhéus levaram com eles as suas tradições. Conta-se, entre elas, a festa de Nossa Senhora do Monte, que se celebra hoje.

A cidade foi-se desenvolvendo. A vizinha Missão da Huíla foi sede do primeiro Seminário católico de Angola. O facto de, durante décadas, ter albergado um dos dois liceus de Angola (o outro era em Luanda) permitiu-lhe, de certo modo, desempenhar um papel de centro cultural. É atualmente uma cidade universitária.

Com a guerra civil que se seguiu à independência deu-se uma migração massiva de habitantes do interior para os centros urbanos e o Lubango cresceu desordenadamente. Não tenho conhecimento de censos recentes, mas diz-se que conta mais de 400.000 habitantes. A ser assim, ultrapassaria largamente a população da Ilha da Madeira.


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 

OS SEM-ABRIGO DA MADEIRA



Não visitava a Madeira há muitos anos. Surpreendeu-me a quantidade de pedintes e de “sem-abrigo” que se veem nas ruas centrais do Funchal. Preferem a parte antiga da cidade, mais frequentada por turistas.

É verão. Alguns refugiam-se em locais difíceis de imaginar. Dei com dois deitados debaixo de um banco de madeira rodeado por uma estrutura de cimento. Não os protegerá da chuva, se ela cair.


A maior parte deles nem parece infeliz. Será do álcool, das drogas, da natural resiliência humana, ou do conjunto de alguns desses fatores.

Enquanto almoçávamos na esplanada de um restaurante situado numa rua estreita da cidade velha, passou por nós um homem barbudo de meia-idade. Trazia uma viola na mão, mas não tocava. Limitava-se a pedir esmola. Minutos depois, voltou a passar, a correr, em sentido contrário. Perseguia-o um jovem magro de cabelo alourado. Alcançou o da barba e agrediu-o a murro. O outro defendeu-se como pôde. Levantei-me com a intenção de me interpor entre os contentores, mas a minha mulher segurou-me a camisa e lembrou-me os anos que conto.

Dos circunstantes, ninguém mais reagiu. Apareceram dois outros supostos marginais e separaram-nos. O rapazito loiro afastou-se, mas por pouco tempo. Regressou, numa correria desenfreada, de encontro ao homem barbudo. Deitara para o chão a camisola de manga curta, provavelmente para ficar com aspeto mais belicoso. Assistimos a mais alguns momentos de pugilato.

Alguém, num dos estabelecimentos comerciais vizinhos fez soar um alarme ruidoso. A luta interrompeu-se e o pequeno grupo de marginais dispersou. Veio ao de cima a solidariedade. Via-se que se ajudavam uns aos outros a escapar da polícia que não tardaria. Quando os agentes chegaram, a rua estava tranquila.

Alguém, numa mesa vizinha, referiu que aqueles conflitos eram frequentes. A motivação residiria na delimitação dos territórios para a mendicidade e para o pequeno tráfico de droga.

Voltei a ver o pedinte pugilista dois dias depois. Era domingo e esperava, à porta duma igreja, a saída dos fiéis.  Aparentava vinte e poucos anos e tinha um ar saudável, mas não mostrava pejo em esmolar.


Desconheço a situação económica da ilha da Madeira. Terá sido agravada pela pandemia, como aconteceu em todos, ou quase todos os territórios em que o turismo representa uma atividade essencial, mas aquela miséria não parecia recente. Eu diria que era endémica. Por outro lado, os infelizes que quase parecem exibir-se nas ruas mais cosmopolitas da ilha poderão representar apenas uma minoria com pouco significado na demografia da Região.