DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

 





CRÓNICAS DA PESTE


(e-book publicado em Kindle/Amazon)

Este livro orbita a pandemia de COVID-19. É a doença que lhe serve de pano de fundo. O coronavírus representa também o ponto de partida para as voltas do enredo. No entanto, os leitores não irão assistir a uma apresentação sistemática de factos. Para tal, bastaria colecionarem recortes de jornais.

O protagonista é um médico velho e aposentado. Fala na primeira pessoa e procura contrapor aos números crus de infetados e mortos de cada país referido as impressões recolhidas pessoalmente em visitas anteriores. A intenção é lembrar as terras como eram antes desta nova peste e como voltarão a ser, depois de ela abalar. Muitos dos episódios relatados foram felizes. Uns tantos chegaram a ser caricatos.

A solidão a que o confinamento obrigou fez lembrar mais vezes os amigos. O autor deu-lhes entrada nas páginas do livro.

Fechado em casa, sem entretenimentos para além da televisão e da escrita, o velho médico foi recordando peripécias da sua vida clínica e acrescentou-as ao texto.

O livro segue uma orientação cronológica com muitas interrupções. Os mergulhos num passado que chega a ser distante acontecem amiúde.

Ao escrever numa época difícil, o doutor Álvaro Folgado imaginou que um dia haveria um número considerável de pessoas a folhear as páginas do seu livro, ou a segui-lo num dispositivo eletrónico. Isso quereria dizer que o mundo sobrevivera à pandemia e que as edições livreiras haviam retomado o seu vigor, num ou noutro suporte.

 

 


domingo, 22 de novembro de 2020

 

 

A EXECUÇÃO DE SÓCRATES




Sócrates era ateniense e provinha de uma família relativamente humilde. O pai era escultor e a mãe parteira. Em 399 a.C., foi acusado de divulgar heresias e executado. Vivera 70 anos.

Terá tentado seguir a profissão do pai, mas demonstrou uma notória falta de jeito para esculpir o mármore.

Consta que casou duas vezes e que teve três filhos varões. Xântipe, a segunda esposa, era bastante mais nova do que ele.

Tratava-se de um homem estranho, que gostava de andar descalço, mesmo sobre a neve. Não apreciaria os banhos e lia tudo o que encontrava sobre sexo. Quando se embrenhava em alguma questão, abstraía-se do mundo e chegava a passar horas seguidas imóvel.

Resolveu aprender Filosofia e estudou com Anaxágoras e Arquelau. O seu talento depressa deu nas vistas. A Pítia do Templo de Apolo, em Delfos, chegou a chamar-lhe “o mais sábio de todos os homens”.

Influenciado pela mãe, comparava a filosofia a um parto e chemava-lhe maêutica, o parto das ideias. Considerava que o conhecimento estava dentro das pessoas, que o poderiam alcançar sozinhas, ou precisar de ajuda para acelerar esse processo.

Para ele, era mais importante procurar do que encontrar. Dava mais valor a tentar aprender o que não sabia do que a ensinar o que julgava saber. Começava por pôr em causa as ideias dos seus interlocutores, levando-os a abordar os temas por outros pontos de vista. Ao fazer uma pergunta, não procurava apenas uma resposta, mas uma comprensão mais alargada das questões.

Sócrates não deixou escritos. Se os redigiu, perderam-se. No seu tempo, o conhecimento transmitia-se sobretudo por via oral. Por outro lado, para Sócrates, escrever seria assumir que  encontrara algumas respostas para o seu incessante questionar. Embora os seus contemporâneos Xenofonte e Aristófanes o tenham mencionado, a sua obra chegou até nós essencialmente através do seu aluno Platão.

Haverá sempre dúvidas na hora de delimitar com precisão a fronteira entre as ideias de Sócrates e as de Platão. Os “diálogos” em que Platão refere Sócrates estão profundamente impregnados do pensamento filosófico do seu antigo mestre.

A filosofia de Sócrates restringe a sua área de procura ao homem e à comunidade em que vive. O homem está no centro das suas preocupações. “Conhece-te a ti mesmo”, mais do que uma divisa, é um método de trabalho.

É famoso o seu postulado de reconhecer a própria ignorância. Quem a não admitisse e não se esforçasse por aprender, estaria condenado a desconhecer a verdade.

A ironia era outro dos seus instrumentos de trabalho. Com ela, combatia a ignorância e a vaidade.

Sócrates não chegou a elaborar uma doutrina. Era um homem de procura e não de achados. Fazia perguntas engenhosas que conduziam a questões novas.

A ética é uma preocupação constante da sua filosofia. Sócrates foi um moralista. No seu modo de olhar, o indivíduo não se podia compreender nem realizar fora do relacionamento com os seus semelhantes. As relações entre os homens deviam basear-se na virtude e na justiça, de modo a permitir a cada um a sua liberdade de pesquisa. Para ele, o saber e a virtude eram mais do que complementares: os dois conceitos identificavam-se.

Sócrates aborda com equilíbrio a questão da busca do prazer. A virtude e o prazer não são incompatíveis. O homem que se vai tornando sábio analisa as circunstâncias e escolhe, em cada momento, o prazer que o desvia do caminho da dor e do mal.

O seu relacionamento com a transcendência é também pouco comum. Sócrates encara a Filosofia como um mandato divino. Esse sentido de missão acompanhou-o durante toda a vida. Assentarão nele boa parte das razões dos seus conflitos com as autoridades da cidade, que acabaram por decretar a sua morte. Embora o filósofo aceitasse que os cultos religiosos tradicionais integravam os deveres de cidadania, não ficava por aqui. Entendia que, às divindades, se não deveriam solicitar favores materiais, mas o bem e a virtude. Não admira que haja quem o considere um precursor do cristianismo.

Aristóteles atribuiu a Sócrates a introdução, na Filosofia e na Ciência, do raciocínio indutivo e do conceito do universal. Sócrates terá sido o primeiro filósofo a organizar o seu pensamento segundo um método científico.

A opinião de Aristóteles tem sido contestada. Há quem pense que os conceitos socráticos se referem ao “dever ser” e não à própria realidade.

O filósofo raramente saiu da sua cidade. Ausentou-se por três vezes, sempre como soldado. Em Atenas, os varões entre as idades de 15 e 45 anos tinham obrigações militares. Sócrates tomou parte nos combates de Potideia, Délios e Anfipolis. Enquanto militar, ganhou a reputação de ser resistente ao cansaço e de manter o sangue-frio, mesmo em circunstâncias adversas.

Pouco ou nada participou na vida política de Atenas. A Filosofia bastava-lhe. Tinha um modo peculiar de a entender. Filosofar era interrogar. O processo começava na própria alma, para depois se alargar à dos outros.

Não organizou uma escola, nem se fazia pagar pelas suas aulas, pelo que viveu sempre pobremente. Ensinava em praças e ginásios, procurava dialogar com quem lhe dava atenção. Nunca teve um trabalho que lhe proporcionasse uma remuneração regular.

Sem o pretender, Sócrates desencadeou uma rotura na história da filosofia grega e ocidental. Os filósofos passaram a ser divididos em pré e pós-socráticos. Sócrates desviou o objetivo fundamental da pesquisa filosófica da Natureza para o Homem 

Curiosamente, o ideal helénico de uma alma sábia num corpo harmonioso teve pouco reflexo em Sócrates, que era feio.

Para Sócrates, a virtude constituía o objetivo da atividade humana. Aproximava-se do conhecimento e chegava a identificar-se com ele. Ninguém fazia o Mal por o querer fazer, mas por ignorar os caminhos do Bem. Quem alcançava o saber tornava-se virtuoso.

O seu julgamento e a sua execução centram a obra de Platão “Apologia a Críton”.

Sócrates contava 70 anos quando três cidadãos atenienses o acusaram de ensinar doutrinas contrárias à religião oficial da cidade, corrompendo assim a juventude.

Um dos acusadores proclamou: “Sócrates é culpado dos crimes de não reconhecer os deuses da cidade e de introduzir divindades novas; é ainda culpado de corromper a juventude. Castigo pedido: morte”.

Nessa prática de corrupção da juventude, não era referido “le petit pechê des grecques”. Nada indica que Sócrates fosse homossexual. Se a orientação sexual fosse crime não haveria, nos vastos campos que circundavam Atenas, cicuta que chegasse para tantas execuções.

Vista pelos olhos de hoje, a acusação não chegaria para condenar alguém à morte. Não tenho conhecimento de execuções anteriores por meros delitos de opinião, o que não significa que não tenham ocorrido.

Platão considerou que a condenação de Sócrates teve motivações políticas. Poderá ter sido favorecida pelo rancor de algumas personalidades importantes.

Curiosamente, o júri que o condenou era composto por meio milhar de homens adultos. Haveria pouco para fazer, na Atenas daquela época. O censo realizado no final do século IV a.C. contou 21 mil cidadãos. Os dez mil metecos e os 400 mil escravos não tinham acesso à administração da justiça. Assim, um em cada 42 cidadãos interveio no julgamento do filósofo.

Foi a defesa de Sócrates que exaltou os jurados e determinou a sentença de morte. O acusado não recuou um único passo na defesa das suas ideias. Declarou que o esforço educativo que dedicava há décadas aos atenienses nascera em obediência a uma ordem divina e que nunca deixaria de cumprir essa tarefa. A assembleia declarou-o culpado, por uma maioria reduzida de votos. Condenou-o ao exílio perpétuo. A alternativa seria cortar-lhe a língua, para que não pudesse continuar a influenciar os seus concidadãos.

Sócrates poderia exilar-se, ou pedir a redução da pena. Em vez disso, comparou-se aos beneméritos de Atenas, dignos de ser sustentados pelo erário público. A sua defesa irritou ainda mais os jurados, que o condenaram à morte, agora com uma maioria sólida.

O filósofo poderia ter escapado, se o quisesse fazer. Os seus amigos organizaram-lhe a fuga. Sócrates recusou partir.

Não receava a morte. Ia nos 70 anos e dificilmente viveria muitos mais.

Ensinara, durante toda a vida, a consideração pela justiça e pelas leis. Referi, atrás, que sempre considerou o indivíduo como parte da sociedade. Fugir seria desrespeitar as leis da urbe. Isolado da sua comunidade, e infringindo as suas regras, um homem empobrecia. Ao aceitar as leis, admitia a punição, por mais que discordasse dela.

A morte de Sócrates constituiu um espetáculo público. Os alunos e os amigos mais fiéis acompanharam-no até ao fim. De certo modo, foi a sua última aula.

A sentença de morte era executada pela ingestão de uma infusão de cicuta.

A cicuta é uma erva comum nos países mediterrânicos. Deita mau cheiro. A sua rama faz lembrar a das cenouras. As folhas compõem-se de folhetos verdes, brilhantes, em forma de lança, denteadas nos bordos. As flores, brancas e pequenas, organizam-se em cachos. Tudo na planta é venenoso, das raízes às sementes. Atribui-se-lhe, ocasionalmente, a morte de vacas. Ingerida, provoca paralisia progressiva dos músculos e convulsões violentas e dolorosas.

Sócrates tomou o vaso que continha a bebida com as próprias mãos e ingeriu-a. Permaneceu consciente até aos seus últimos momentos. Já muito perto do fim, ostensivamente senhor do controlo das próprias emoções, continuou a ensinar.

O orgulho que o levou a aceitar uma vida de pobreza, tendo consciência de ser um dos cidadãos mais ilustres do estado ateniense, apoiou-o até aos minutos finais.

Para os não filósofos como eu, Sócrates ter-se-á deixado matar essencialmente por por teimosia.

 

 

Bibliografia: Abbagnano, Nicola. História da Filosofia, vol I. Editorial Presença, Lisboa, 1976.

domingo, 8 de novembro de 2020

    

        A EXECUÇÃO DE JESUS CRISTO




As referências ao Messias abundam no Novo Testamento, mas escasseiam no Antigo. O conceito de Messias é fundamental para os cristãos, sem o ser tanto para os judeus. 

Ao longo da história, os pretensos Messias trouxeram ao seu povo sangue e destruição. Não admira que os hebreus os receassem. Os judeus nunca foram capazes de enfrentar o poderoso império romano. Os fariseus e os sacerdotes conheciam a realidade do seu tempo e o desequilíbrio de forças entre Roma e Israel. Um agitador que arrastasse o povo atrás de si atrairia a desgraça. Cristo foi executado por constituir uma ameaça para a segurança de Israel.

Quem me conhecer poderá estranhar que um homem como eu se socorra de textos de Joseph Ratzinger, que mais tarde foi eleito Papa com o nome de Bento XVI. Acontece que o modo de pensar das pessoas está longe de ser uniforme ou homogéneo. Não fomos feitos com régua e esquadro. Li com agrado o “Jesus de Nazaré”.

Passo a citar alguns parágrafos desse livro:

Quando a oração noturna de Jesus (no Monte das Oliveiras) terminou, chegou, guiada por Judas, uma milícia armada, às ordens das autoridades do templo, e prendeu Jesus, enquanto os discípulos não foram molestados.

Como se chegou a esta prisão, obviamente decretada pelas autoridades do templo, em última análise pelo sumo-sacerdote Caifás? Como se chegou à entrega de Jesus ao tribunal do governador romano Pilatos e à condenação à morte na cruz?

Os Evangelhos permitem-nos distinguir três etapas no caminho que levou à sentença jurídica de condenação à morte: uma reunião do conselho na casa de Caifás, o interrogatório diante do Sinédrio e, por fim, o processo na presença de Pilatos.

No começo, o movimento que se foi formando em torno de Jesus Cristo não preocupou as autoridades do templo. Aconteciam ocasionalmente factos semelhantes e auto-limitados.

A situação mudou com o Domingo de Ramos: a homenagem messiânica prestada a Jesus por ocasião da sua entrada em Jerusalém; a purificação do templo, com a palavra interpretativa que parecia anunciar o fim do templo enquanto tal e uma mudança radical do culto, em contraste com os ordenamentos legados por Moisés; os discursos de Jesus no templo, em que se podia perceber uma reivindicação de autoridade plena que parecia dar à esperança messiânica de Israel uma nova forma, ameaçadora do seu monoteísmo: os milagres que Jesus realizava em público e o afluxo cada vez maior de povo que ia ter com Ele − todos esses factos já não podiam ser ignorados.

É o evangelista João quem melhor descreve a reunião do Sinédrio que visou analisar “o movimento popular nascido após a ressurreição de Lázaro”. Segundo João, reuniram-se os chefes dos sacerdotes e os fariseus, os dois grupos dominantes da sociedade hebraica da época. Partilhavam uma preocupação antiga: o receio de que os romanos se enfurecessem com as manifestações populares e destruíssem o templo e a nação hebraica.

Os fariseus descendiam provavelmente do grupo religioso hassidim (os piedosos) que apoiara a revolta dos macabeus contra o Império Selêucida. Em 142 a.C., com a vitória dos macabeus, conseguida após uma prolongada guerra de guerrilha, constituiu-se o Reino da Judeia que se manteve independente até 63 a.C., altura em que foi dominado pelos romanos.   

Fariseus e sacerdotes não se entendiam sempre, mas aliavam-se em situações especiais.

Ainda não amanhecera, quando Jesus foi levado ao palácio do sumo-sacerdote, onde já se encontravam os sacerdotes, anciãos e escribas que constituíam o Sinédrio. Segundo João, a reunião começou com dúvidas e hesitações quanto ao melhor modo de proceder em relação a Jesus. Coube ao sumo-sacerdote Caifás a intervenção determinante: vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um homem só pelo povo e não pereça a nação inteira.

O exército romano poderia destruir o templo sagrado e a nação judaica. Havia mais. A pretensão messiânica implicava a reivindicação da realeza sobre Israel. Daí a tábua com a inscrição “Rei dos judeus”, pregada na cruz.

Segundo o evangelista Marcos, Caifás perguntou a Jesus: És tu o Messias, o Filho do Bendito? Jesus respondeu: sou, e vós vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vir entre as nuvens do céu.

De acordo com o Evangelho de São Lucas, à pergunta do Sinédrio: “Tu és então o Filho de Deus?”, Jesus terá respondido: “Vós o dizeis. Eu sou!”

Caifás rasgou as vestes, exclamando: Blasfémia!

O delito previsto para a blasfémia era a pena de morte, que apenas os romanos tinham poder para declarar. Por outro lado, ao declarar-se Messias, Jesus candidatara-se à realeza e esse era um delito político a ser apreciado pela justiça romana.

O governador romano Pôncio Pilatos tinha o hábito de se sentar no tribunal ao começo da manhã.

É curiosa a imagem que os evangelhos nos transmitem sobre Pilatos. Seria um homem pragmático, disposto a recorrer às armas sempre que tal fosse indispensável, mas ciente de que Roma assentava em boa parte o seu poder na tolerância para com as múltiplas religiões do Império e na força pacificadora do direito romano.

As autoridades romanas não tinham conhecimento de perturbações da ordem pública. Roma nada tinha contra Jesus. Eram os dirigentes judaicos que pretendiam vê-lo morto.

Sigamos o relato do evangelista João:

Depois levaram Jesus da casa de Caifás para o pretório. Era cedo, de manhã. Eles não entraram. Então, saiu Pilatos para lhes falar e lhes disse: Que acusação trazeis contra este homem?

Responderam-lhe: Se este não fosse malfeitor, não to entregaríamos.

Replicou-lhes, pois, Pilatos: Tomai-o vós outros e julgai-o seguindo a vossa lei.

Responderam-lhe os judeus: A nós não nos é lícito matar ninguém.

Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus?

Respondeu Jesus: Vem de ti mesmo essa pergunta, ou to disseram outros a meu respeito?

Replicou Pilatos: Porventura sou judeu? A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste?

Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é aqui.

Então lhe disse Pilatos: Logo tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. 

Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade?

No final do interrogatório, Pilatos tirou as suas conclusões. Jesus não era um revolucionário, em termos políticos. As suas palavras e o seu modo de agir não constituíam uma ameaça para Roma. As eventuais transgressões à Tora não lhe diziam respeito. Por outro lado, o Sinédrio aceitava a situação vigente. Em termos objetivos, era um aliado da governação romana. Não seria conveniente afrontá-lo sem uma razão suficientemente forte e a vida de um judeu não tinha assim tanto valor.

Regressemos a João: Tendo dito isto, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum.

É costume entre vós que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa; quereis, pois, que vos solte o rei dos judeus?

Então gritaram todos, novamente: não é este, mas Barrabás!

Ora, Barrabás era considerado um salteador.

De acordo com Ratzinger, Barrabás não era um salteador, mas um patriota judeu. Teria cometido um assassínio durante a revolta. Tratava-se, assim, de dois acusados do mesmo crime: a rebelião contra o domínio romano.

Pilatos desinteressou-se da questão. Voltou a sentar-se na cadeira de Juiz e pronunciou a sentença de morte.

Entregou Jesus aos seus soldados para que o chicoteassem. No direito romano, os condenados à morte eram flagelados.

Quem, como eu, teve uma educação católica, conhece bem o que se passou a seguir.

Curiosamente, Joseph Ratzinger cita Platão, a propósito de Jesus Cristo: na sua obra sobre o Estado, tentou imaginar qual seria o destino reservado neste mundo ao justo perfeito e chegou à conclusão de que seria crucificado.

O movimento cristão persistiu e obteve o êxito retumbante que se conhece. Sem o líder, os seus discípulos dispersaram e levaram a suas palavras às cidades gregas da Ásia Menor e à própria Roma. Com a ausência de Cristo, o seu legado reforçou as vertentes espiritual e internacionalista. Deixou de constituir um desafio a Roma e um perigo para os judeus. A estratégia dos chefes religiosos resultara e a autonomia possível do povo judeu foi preservada por mais um século.

  Cem anos após a morte de Jesus Cristo, no reinado do imperador Adriano, Simon Bar Cochba levantou a sua nação contra Roma. Bar Cochba era também chamado Barcoquebas, que significa “filho de uma estrela”. Era o novo Messias.

A rebelião durou de 132 a 135. De início, os judeus obtiveram pequenas vitórias. Foram derrotando as tropas romanas e chegaram a tomar Jerusalém, onde Cochba proclamou a independência da Judeia.

Os romanos reuniram mais forças e lançaram-se ao contra ataque. Simão Bar Cochba abandonou Jerusalém, que foi arrasada. Refugiou-se na cidade-fortaleza de Betar. Resistiu até meados de 135. Depois, oitenta mil romanos invadiram Betar e assassinaram os homens, as mulheres e as crianças, até o sangue correr das soleiras e valetas (Talmud). Simão foi morto e decapitado.

No conjunto, pereceram centenas de milhares de judeus.

Ao longo do tempo, foram surgindo novos Messias. Até em Setúbal apareceu um. Chamava-se Luís Dias, era alfaiate e chegou a ser bastante conhecido. A Inquisição queimou-o em Lisboa, em 1542, juntamente com 83 seguidores.


Bibliografia: João. Evangelho

                  Ratzinger, Joseph. Jesus de Nazaré

Fotografia: detalhe de A coroação de espinhos, de Bosh.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

 

     O PROCESSO DE JESUS CRISTO 

Em tempos, publiquei neste espaço descrições de variados crimes e de mortes violentas. Destinavam-se a integrar uma obra, escrita na primeira pessoa, sobre a vida de um assassino profissional. Chamei-lhe, inicialmente, “O assassinato de Trotsky”.

Entretanto, mudei de ideias e retirei do livro projetado a série de crimes. O meu trabalho de então resultou na novela “O Diário de Antero Maleano”, que recebeu em 2019 o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes e foi editado pela Câmara Municipal de Portimão.


 

Retomo agora a outra parte do projeto. Irá chamar-se “O Processo de Jesus Cristo e outros relatos de mortes violentas” e começará pelo assassinato mais antigo de que rezam as crónicas: o de Abel.

Prevejo, de momento, cerca de vinte pequenos artigos. As publicações já feitas não serão repetidas. Poderão encontrar-se neste blogue, no arquivo de outubro de 2017.


   O ASSASSINATO DE ABEL


 



Ao falar de mortes violentas, parece razoável começar pela primeira de que há notícia: o assassinato de Abel. 

O Génesis conta uma história fantástica sobre a origem da inimizade entre os irmãos. Consta que Caim levou ao Senhor os frutos da terra, enquanto Abel lhe ofereceu as primícias do seu rebanho. O Senhor Deus ter-se-á agradado de Abel e da sua oferta, desdenhando da de Caim.

 


Segundo as Escrituras, Caim terá ficado enfurecido com a injustiça divina. “Decaiu-lhe o semblante”. Chamou o seu irmão ao campo e matou-o.

Como a bibliografia é escassa e nos remete mais para a lenda da criação do que para relatos credíveis, tentei apoiar as minhas divagações na prosa de um ficcionista: José Saramago. O autor  mostra-se agastado com o Antigo Testamento e, um pouco também, com o Novo.

Apesar de ser um admirador da obra de Saramago, desiludi-me depressa com o seu livro “Caim”. O escritor aceita, no essencial, a narrativa do Génesis e faz dela ponto de partida para as relações entre o criador e a criatura, isto é, entre Deus e o homem. Reflete longamente sobre a partilha de culpas entre Caim e o Senhor, quando do suposto primeiro assassinato da História. Caim é marcado na testa e parte sozinho mundo fora.

Nada disso se poderia ter passado. Deus saberia, melhor do que ninguém, que a cultura dos campos e a criação de gado contribuíam, de forma semelhante, para a alimentação e o progresso do Seu povo.

Proponho aos leitores que embarquem comigo numa história mais plausível.  

Nascera uma amargura nova chamada ciúme. No início da humanidade, os irmãos tinham de se deitar com as irmãs, por não existir mais gente no mundo.

A aceitar o que diz o Génesis, todos os homens e todas as mulheres provêm de ligações incestuosas entre os descendentes de Adão e Eva. Não se sabe se os nossos pais primitivos procriaram também com filhos e netos.

Abel ainda era adolescente e não tinha esposa. Cortejou a sua irmã Enoque, casada com Caim.

A seu ver, nem estava a pecar. Tratava-se somente de aproveitar os frutos do Jardim do Éden. Enoque era linda e a vida era bela.

Caim viu Abel deitar-se com a sua mulher e deixou que o coração se lhe enchesse de ódio.

Como o irmão mais novo era mais alto e mais forte do que ele, o primogénito esperou que Abel adormecesse, depois de ter o desejo satisfeito, e esmagou-lhe a cabeça com um pedregulho.

Deus amaldiçoou-o.

- Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim. És agora, pois, maldito por sobre a terra cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo não te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra.

Caim achou o castigo demasiado duro:

− É tão grande o meu castigo que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; quem comigo se encontrar me matará.

O Senhor respondeu:

− Aquele que matar Caim será vingado sete vezes.

E pôs um sinal em Caim, para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse.

Pôs-lhe o sinal, mas não lhe retirou Enoque. Fê-lo habitar a terra de Node, ao oriente do Éden, onde criou muitos filhos e filhas.

Não se sabe se algum deles foi ainda gerado por Abel. Tão pouco se sabe se o sinal negro com que Deus lhe tingiu o rosto alastrou ao conjunto da pele.