O PROCESSO DE JESUS CRISTO
Em tempos, publiquei neste espaço descrições de variados crimes e de mortes violentas. Destinavam-se a integrar uma obra, escrita na primeira pessoa, sobre a vida de um assassino profissional. Chamei-lhe, inicialmente, “O assassinato de Trotsky”.
Entretanto, mudei de ideias e retirei do livro projetado a série de crimes. O meu trabalho de então resultou na novela “O Diário de Antero Maleano”, que recebeu em 2019 o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes e foi editado pela Câmara Municipal de Portimão.
Retomo agora a outra parte do projeto. Irá chamar-se “O Processo de Jesus Cristo e outros relatos de mortes violentas” e começará pelo assassinato mais antigo de que rezam as crónicas: o de Abel.
Prevejo, de momento, cerca
de vinte pequenos artigos. As publicações já feitas não serão repetidas. Poderão
encontrar-se neste blogue, no arquivo de outubro de 2017.
O ASSASSINATO DE ABEL
Ao falar de
mortes violentas, parece razoável começar pela primeira de que há notícia: o
assassinato de Abel.
O Génesis conta
uma história fantástica sobre a origem da inimizade entre os irmãos. Consta que
Caim levou ao Senhor os frutos da terra, enquanto Abel lhe ofereceu as
primícias do seu rebanho. O Senhor Deus ter-se-á agradado de Abel e da sua
oferta, desdenhando da de Caim.
Segundo as
Escrituras, Caim terá ficado enfurecido com a injustiça divina. “Decaiu-lhe o
semblante”. Chamou o seu irmão ao campo e matou-o.
Como a
bibliografia é escassa e nos remete mais para a lenda da criação do que para relatos
credíveis, tentei apoiar as minhas divagações na prosa de um ficcionista: José
Saramago. O autor mostra-se agastado com o Antigo Testamento e, um pouco também, com o
Novo.
Apesar de ser um
admirador da obra de Saramago, desiludi-me depressa com o seu livro “Caim”. O
escritor aceita, no essencial, a narrativa do Génesis e faz dela ponto de
partida para as relações entre o criador e a criatura, isto é, entre Deus e o
homem. Reflete longamente sobre a partilha de culpas entre Caim e o Senhor,
quando do suposto primeiro assassinato da História. Caim é marcado na testa e
parte sozinho mundo fora.
Nada disso se poderia
ter passado. Deus saberia, melhor do que ninguém, que a cultura dos campos e a
criação de gado contribuíam, de forma semelhante, para a alimentação e o
progresso do Seu povo.
Proponho aos
leitores que embarquem comigo numa história mais plausível.
Nascera uma
amargura nova chamada ciúme. No início da humanidade, os irmãos tinham de se
deitar com as irmãs, por não existir mais gente no mundo.
A aceitar o que
diz o Génesis, todos os homens e todas as mulheres provêm de ligações
incestuosas entre os descendentes de Adão e Eva. Não se sabe se os nossos pais
primitivos procriaram também com filhos e netos.
Abel ainda era
adolescente e não tinha esposa. Cortejou a sua irmã Enoque, casada com Caim.
A seu ver, nem
estava a pecar. Tratava-se somente de aproveitar os frutos do Jardim do Éden.
Enoque era linda e a vida era bela.
Caim viu Abel
deitar-se com a sua mulher e deixou que o coração se lhe enchesse de ódio.
Como o irmão
mais novo era mais alto e mais forte do que ele, o primogénito esperou que Abel
adormecesse, depois de ter o desejo satisfeito, e esmagou-lhe a cabeça com um
pedregulho.
Deus amaldiçoou-o.
- Que
fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim. És agora, pois,
maldito por sobre a terra cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue
de teu irmão. Quando lavrares o solo não te dará ele a sua força; serás
fugitivo e errante pela terra.
Caim achou o
castigo demasiado duro:
− É tão grande o
meu castigo que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da
terra, e da tua presença hei de esconder-me; quem comigo se encontrar me
matará.
O Senhor
respondeu:
− Aquele que
matar Caim será vingado sete vezes.
E pôs um sinal
em Caim, para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse.
Pôs-lhe o sinal, mas não lhe retirou Enoque. Fê-lo habitar a terra de Node, ao oriente do Éden, onde criou muitos filhos e filhas.
Não se sabe se algum deles foi ainda gerado por Abel. Tão pouco se sabe se o sinal negro com que Deus lhe tingiu o rosto alastrou ao conjunto da pele.
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