DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 22 de novembro de 2020

 

 

A EXECUÇÃO DE SÓCRATES




Sócrates era ateniense e provinha de uma família relativamente humilde. O pai era escultor e a mãe parteira. Em 399 a.C., foi acusado de divulgar heresias e executado. Vivera 70 anos.

Terá tentado seguir a profissão do pai, mas demonstrou uma notória falta de jeito para esculpir o mármore.

Consta que casou duas vezes e que teve três filhos varões. Xântipe, a segunda esposa, era bastante mais nova do que ele.

Tratava-se de um homem estranho, que gostava de andar descalço, mesmo sobre a neve. Não apreciaria os banhos e lia tudo o que encontrava sobre sexo. Quando se embrenhava em alguma questão, abstraía-se do mundo e chegava a passar horas seguidas imóvel.

Resolveu aprender Filosofia e estudou com Anaxágoras e Arquelau. O seu talento depressa deu nas vistas. A Pítia do Templo de Apolo, em Delfos, chegou a chamar-lhe “o mais sábio de todos os homens”.

Influenciado pela mãe, comparava a filosofia a um parto e chemava-lhe maêutica, o parto das ideias. Considerava que o conhecimento estava dentro das pessoas, que o poderiam alcançar sozinhas, ou precisar de ajuda para acelerar esse processo.

Para ele, era mais importante procurar do que encontrar. Dava mais valor a tentar aprender o que não sabia do que a ensinar o que julgava saber. Começava por pôr em causa as ideias dos seus interlocutores, levando-os a abordar os temas por outros pontos de vista. Ao fazer uma pergunta, não procurava apenas uma resposta, mas uma comprensão mais alargada das questões.

Sócrates não deixou escritos. Se os redigiu, perderam-se. No seu tempo, o conhecimento transmitia-se sobretudo por via oral. Por outro lado, para Sócrates, escrever seria assumir que  encontrara algumas respostas para o seu incessante questionar. Embora os seus contemporâneos Xenofonte e Aristófanes o tenham mencionado, a sua obra chegou até nós essencialmente através do seu aluno Platão.

Haverá sempre dúvidas na hora de delimitar com precisão a fronteira entre as ideias de Sócrates e as de Platão. Os “diálogos” em que Platão refere Sócrates estão profundamente impregnados do pensamento filosófico do seu antigo mestre.

A filosofia de Sócrates restringe a sua área de procura ao homem e à comunidade em que vive. O homem está no centro das suas preocupações. “Conhece-te a ti mesmo”, mais do que uma divisa, é um método de trabalho.

É famoso o seu postulado de reconhecer a própria ignorância. Quem a não admitisse e não se esforçasse por aprender, estaria condenado a desconhecer a verdade.

A ironia era outro dos seus instrumentos de trabalho. Com ela, combatia a ignorância e a vaidade.

Sócrates não chegou a elaborar uma doutrina. Era um homem de procura e não de achados. Fazia perguntas engenhosas que conduziam a questões novas.

A ética é uma preocupação constante da sua filosofia. Sócrates foi um moralista. No seu modo de olhar, o indivíduo não se podia compreender nem realizar fora do relacionamento com os seus semelhantes. As relações entre os homens deviam basear-se na virtude e na justiça, de modo a permitir a cada um a sua liberdade de pesquisa. Para ele, o saber e a virtude eram mais do que complementares: os dois conceitos identificavam-se.

Sócrates aborda com equilíbrio a questão da busca do prazer. A virtude e o prazer não são incompatíveis. O homem que se vai tornando sábio analisa as circunstâncias e escolhe, em cada momento, o prazer que o desvia do caminho da dor e do mal.

O seu relacionamento com a transcendência é também pouco comum. Sócrates encara a Filosofia como um mandato divino. Esse sentido de missão acompanhou-o durante toda a vida. Assentarão nele boa parte das razões dos seus conflitos com as autoridades da cidade, que acabaram por decretar a sua morte. Embora o filósofo aceitasse que os cultos religiosos tradicionais integravam os deveres de cidadania, não ficava por aqui. Entendia que, às divindades, se não deveriam solicitar favores materiais, mas o bem e a virtude. Não admira que haja quem o considere um precursor do cristianismo.

Aristóteles atribuiu a Sócrates a introdução, na Filosofia e na Ciência, do raciocínio indutivo e do conceito do universal. Sócrates terá sido o primeiro filósofo a organizar o seu pensamento segundo um método científico.

A opinião de Aristóteles tem sido contestada. Há quem pense que os conceitos socráticos se referem ao “dever ser” e não à própria realidade.

O filósofo raramente saiu da sua cidade. Ausentou-se por três vezes, sempre como soldado. Em Atenas, os varões entre as idades de 15 e 45 anos tinham obrigações militares. Sócrates tomou parte nos combates de Potideia, Délios e Anfipolis. Enquanto militar, ganhou a reputação de ser resistente ao cansaço e de manter o sangue-frio, mesmo em circunstâncias adversas.

Pouco ou nada participou na vida política de Atenas. A Filosofia bastava-lhe. Tinha um modo peculiar de a entender. Filosofar era interrogar. O processo começava na própria alma, para depois se alargar à dos outros.

Não organizou uma escola, nem se fazia pagar pelas suas aulas, pelo que viveu sempre pobremente. Ensinava em praças e ginásios, procurava dialogar com quem lhe dava atenção. Nunca teve um trabalho que lhe proporcionasse uma remuneração regular.

Sem o pretender, Sócrates desencadeou uma rotura na história da filosofia grega e ocidental. Os filósofos passaram a ser divididos em pré e pós-socráticos. Sócrates desviou o objetivo fundamental da pesquisa filosófica da Natureza para o Homem 

Curiosamente, o ideal helénico de uma alma sábia num corpo harmonioso teve pouco reflexo em Sócrates, que era feio.

Para Sócrates, a virtude constituía o objetivo da atividade humana. Aproximava-se do conhecimento e chegava a identificar-se com ele. Ninguém fazia o Mal por o querer fazer, mas por ignorar os caminhos do Bem. Quem alcançava o saber tornava-se virtuoso.

O seu julgamento e a sua execução centram a obra de Platão “Apologia a Críton”.

Sócrates contava 70 anos quando três cidadãos atenienses o acusaram de ensinar doutrinas contrárias à religião oficial da cidade, corrompendo assim a juventude.

Um dos acusadores proclamou: “Sócrates é culpado dos crimes de não reconhecer os deuses da cidade e de introduzir divindades novas; é ainda culpado de corromper a juventude. Castigo pedido: morte”.

Nessa prática de corrupção da juventude, não era referido “le petit pechê des grecques”. Nada indica que Sócrates fosse homossexual. Se a orientação sexual fosse crime não haveria, nos vastos campos que circundavam Atenas, cicuta que chegasse para tantas execuções.

Vista pelos olhos de hoje, a acusação não chegaria para condenar alguém à morte. Não tenho conhecimento de execuções anteriores por meros delitos de opinião, o que não significa que não tenham ocorrido.

Platão considerou que a condenação de Sócrates teve motivações políticas. Poderá ter sido favorecida pelo rancor de algumas personalidades importantes.

Curiosamente, o júri que o condenou era composto por meio milhar de homens adultos. Haveria pouco para fazer, na Atenas daquela época. O censo realizado no final do século IV a.C. contou 21 mil cidadãos. Os dez mil metecos e os 400 mil escravos não tinham acesso à administração da justiça. Assim, um em cada 42 cidadãos interveio no julgamento do filósofo.

Foi a defesa de Sócrates que exaltou os jurados e determinou a sentença de morte. O acusado não recuou um único passo na defesa das suas ideias. Declarou que o esforço educativo que dedicava há décadas aos atenienses nascera em obediência a uma ordem divina e que nunca deixaria de cumprir essa tarefa. A assembleia declarou-o culpado, por uma maioria reduzida de votos. Condenou-o ao exílio perpétuo. A alternativa seria cortar-lhe a língua, para que não pudesse continuar a influenciar os seus concidadãos.

Sócrates poderia exilar-se, ou pedir a redução da pena. Em vez disso, comparou-se aos beneméritos de Atenas, dignos de ser sustentados pelo erário público. A sua defesa irritou ainda mais os jurados, que o condenaram à morte, agora com uma maioria sólida.

O filósofo poderia ter escapado, se o quisesse fazer. Os seus amigos organizaram-lhe a fuga. Sócrates recusou partir.

Não receava a morte. Ia nos 70 anos e dificilmente viveria muitos mais.

Ensinara, durante toda a vida, a consideração pela justiça e pelas leis. Referi, atrás, que sempre considerou o indivíduo como parte da sociedade. Fugir seria desrespeitar as leis da urbe. Isolado da sua comunidade, e infringindo as suas regras, um homem empobrecia. Ao aceitar as leis, admitia a punição, por mais que discordasse dela.

A morte de Sócrates constituiu um espetáculo público. Os alunos e os amigos mais fiéis acompanharam-no até ao fim. De certo modo, foi a sua última aula.

A sentença de morte era executada pela ingestão de uma infusão de cicuta.

A cicuta é uma erva comum nos países mediterrânicos. Deita mau cheiro. A sua rama faz lembrar a das cenouras. As folhas compõem-se de folhetos verdes, brilhantes, em forma de lança, denteadas nos bordos. As flores, brancas e pequenas, organizam-se em cachos. Tudo na planta é venenoso, das raízes às sementes. Atribui-se-lhe, ocasionalmente, a morte de vacas. Ingerida, provoca paralisia progressiva dos músculos e convulsões violentas e dolorosas.

Sócrates tomou o vaso que continha a bebida com as próprias mãos e ingeriu-a. Permaneceu consciente até aos seus últimos momentos. Já muito perto do fim, ostensivamente senhor do controlo das próprias emoções, continuou a ensinar.

O orgulho que o levou a aceitar uma vida de pobreza, tendo consciência de ser um dos cidadãos mais ilustres do estado ateniense, apoiou-o até aos minutos finais.

Para os não filósofos como eu, Sócrates ter-se-á deixado matar essencialmente por por teimosia.

 

 

Bibliografia: Abbagnano, Nicola. História da Filosofia, vol I. Editorial Presença, Lisboa, 1976.

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