OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
SABES QUEM SOU?
Passo muito
tempo a olhar as reproduções dos quadros de Jerónimo Bosch. Às tantas, chego a
pensar que certos personagens que neles figuram se habituaram a mim. Confesso
que me afeiçoei a alguns dos pequenos monstros que o pintor imaginou.
Tentei meter conversa
com alguns. Durante bastante tempo não tive êxito. Um deles acabou por
responder à minha interpelação.
Era um monstro
pequeno, de barba benfeita. Ostentava uma espécie de turbante, prolongado num
lenço comprido. Calçava uma única bota vermelha. No pé esquerdo usava apenas
uma meia, da mesma cor. Parecia beber de uma taça doirada, mas não se entendia
como era capaz de o fazer, pois não tinha braços nem mãos. O pescoço
continuava-se imediatamente na cintura pélvica. Avistei-o num canto da pintura
e chamei-o:
− Ei… Tu!
Surpreendentemente,
ouviu-me e voltou-se para trás.
− Que pretendes
de mim?
Tinha uma voz
grossa. Hesitei, antes de responder.
− Eu… bem… Se
calhar, não quero nada. Perdoa-me por fazer perder o teu tempo.
− Tempo é coisa
que não me falta. Sabes quem sou?
Voltei a
hesitar. Já estava arrependido por o ter interpelado.
− Confesso que
não.
− Bem, assim já
somos dois.
− Não entendo…
− Eu também não
sei quem sou, nem o que faço aqui. Durante a maior parte do tempo não faço
nada. E tu, sabes quem és? Tens um nome?
− Sim. Chamo-me
António.
− Pois eu, nem
nome tenho. A culpa é daquele pintor maluco que me inventou. Conhece-lo?
− Conheço os
seus quadros. Admiro-o.
− Tens falado
com ele?
Só então percebi
que o pequeno monstro não dava conta da passagem do tempo. Jerónimo Bosh
morrera há cinco séculos. Achei melhor não o desapontar.
− Ultimamente,
não…
Levantei-me, com
a intenção de me retirar. O monstro pareceu entristecer.
− Gostei de
falar contigo, António. Espero que voltes cá. Tenho um favor a pedir-te.
− Se estiver ao
meu alcance…
− Deve estar.
Não é coisa complicada. Se encontrares o pintor, pergunta-lhe quem sou. Depois,
vem-me dizer o meu nome. Eu sou fácil de encontrar. Estou sempre por aqui.
− Está bem. Até
à vista.
Decidi não
voltar a olhar aquele quadro sem ter inventado um nome e um passado para o meu
novo amigo.
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