A GRIPE PNEUMÓNICA
Assinalou-se
em 1918 o centenário do começo da gripe pneumónica, a pandemia mais assassina
da história da humanidade. Terá atingido 500 milhões de pessoas, em todos os
continentes, numa altura em que a população mundial, rondava os 1.600 milhões
(Vagneron). Adoeceu quase um terço dos habitantes do planeta (Sobral). A
estimativa do número global de mortos oscila, segundo as fontes, entre 20 e 100
milhões. (Sequeira, Pereira, Sobral, Johnson e Mueller).
Para
dificultar o acerto de contas contribui o facto de, há um século, as
estatísticas serem pouco fiáveis em alguns dos países mais populosos do mundo,
como a China e a Índia.
Alguns historiadores apontam para um número de
óbitos comparável à soma dos mortos civis e militares registados no conjunto das
duas Grandes Guerras (Sobral). Provavelmente, a gripe pneumónica colheu, no
decurso de um único ano, um terço do número das vidas ceifadas pela peste em
seis séculos de história (Sequeira).
A
taxa de mortalidade variou consoante os países afetados, as ondas epidémicas e os
critérios dos observadores. Johnson e Mueller apontam para uma taxa de 2,5 a
5%, à escala mundial. Foi mais elevada na segunda vaga, onde terá atingido 6 a
8 por cento. Em algumas regiões, ter-se-á aproximado dos 20%. Nos Estados
Unidos, houve populações de índios que foram devastadas.
A
origem geográfica da chamada “gripe espanhola” continua a ser discutida.
Sabe-se, porém, que não começou na Espanha. A explicação para a alcunha é simples
(Sequeira). A Espanha foi um dos poucos países que mantiveram a neutralidade
durante a I Grande Guerra e, por essa razão, um dos raros onde a imprensa era
livre de noticiar a epidemia. Sabia-se que, mesmo longe da região do conflito
armado, estavam a adoecer e a morrer milhares e milhares de pessoas. Os países
beligerantes evitavam alarmar em demasia as opiniões públicas nacionais e
censuravam as notícias.
O
primeiro registo seguro provém do Kansas, no centro dos E.U.A. A doença foi
identificada pela primeira vez em janeiro de 1918, em Haskell County, num campo
militar. (Sequeira).
Na
primavera de 1918, continuavam a ser treinados muitos recrutas americanos para
participar na guerra que se travava na Europa. No mês de março de 1918, foi
internado na base militar de Fort Riley, um jovem que se queixava de dores de
garganta, mialgias e febre. Na mesma semana, adoeceram mais de duzentos
soldados com os mesmos sintomas. Uma semana depois, foi registado um caso similar
em Queens, Nova Iorque. Antes do final de março, havia mais de mil militares
hospitalizados. A doença espalhou-se rapidamente por vários acampamentos
militares. Era a gripe.
Logo
a seguir, o vírus foi transportado pelos soldados americanos. A Pneumónica
viajou por mar. Na Europa, foram registados os primeiros casos em abril de
1918. Ocorreram em soldados franceses, ingleses e americanos que se encontravam
em portos de embarque, em França. (Sequeira).
É
esta a opinião dominante. Há, contudo, quem defenda que a pandemia começou mais
cedo, em instalações militares francesas e inglesas (Killingray, Spinney). Há
também quem admita a possibilidade de a gripe ter tido origem multicêntrica,
com focos independentes na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos da América.
Tratava-se
de uma doença extraordinariamente contagiosa. Chegaram a adoecer mil e
quinhentos soldados por dia.
Todos
os exércitos envolvidos na Grande Guerra foram devastados pelo mal. Calcula-se
que perto de 80 por cento das mortes nas forças americanas destacadas para a
Europa foram provocadas pela gripe (Sequeira).
A
expansão da epidemia foi imparável. Em maio, atingiu Portugal, Espanha e a
Grécia. Em junho, chegou à Dinamarca e à Noruega e, em agosto, matava já na
Holanda, na Bélgica e na Suécia. A seguir, espalhou-se pelo mundo. Mesmo ilhas
remotas, no Ártico e no Pacífico foram afetadas pela pandemia. (Abreu, Rebelo-de-Andrade).
Em
Portugal, os cálculos do total de óbitos variam entre os 100.000 (Sequeira) e
os mais de 130.000 (Bandeira, Sobral). Os números ganham maior expressão se
comparados com os 8.000 soldados mortos portugueses registados na I Grande
Guerra, os 9.000 ocorridos durante os 16 anos das guerras coloniais e os 10.550
atribuídos à SIDA ao longo de 30 anos de vigência da endemia (Abreu).
A
pneumónica grassou durante os anos de 1918 e 1919. O seu progresso não foi
regular. Evoluiu em três vagas sucessivas. (Sequeira). A primeira foi a mais
benigna e decorreu até agosto de 1918.
A
segunda foi a mais mortífera. Instalou-se durante os meses frios do outono e do
inverno. Segundo Laurinda Abreu e José Vicente Simões, Portugal terá registado
uma das maiores taxas de mortalidade da Europa. Os cálculos variam entre os 9,8
por mil habitantes (Sobral) e os 22 (Bandeira). Na vizinha Espanha, os óbitos
ficaram em cerca de 13 por mil.
A
terceira onda decorreu de fevereiro a maio de 1919.
Esta
pandemia gripal demonstrou virulência e agressividade raras. Matava
rapidamente, por vezes em dois ou três dias, com sintomas hemorrágicos. Era
frequente a associação de complicações respiratórias bacterianas graves.
Em
1918, o vírus da gripe ainda não tinha sido identificado.
Em
setembro desse ano, os médicos franceses Charles Nicolle, Charles Lebailly e
René Dujarric defenderam a origem viral da gripe. Seria transmitida por um
micróbio “filtrável”, isto é, tão pequeno que passava através dos melhores
filtros. (Rebelo-de-Andrade).
Em
1931, Richard Shop isolou o vírus influenza dos suínos. Em 1933, os ingleses
Wilson Smith, Christopher Andrews e Patrick Laidlow atribuíram a gripe humana
ao vírus influenza (Rebelo-de-Andrade).
O
vírus da gripe em humanos só foi isolado em 1939 (Sequeira).
A
Pneumónica foi provocada por uma estirpe do vírus Influenza A, do subtipo H1N1 (Sobral).
O
vírus da gripe é um ortomixovírus com dois tipos essenciais de glicoproteínas
de superfície: a hemaglutinina e a neuraminidase. (Sequeira). A variação da
antigenicidade destas glicoproteínas permite à gripe apresentar-se de formas
novas quase todos os anos.
De
tempos a tempos, ocorrem variações maiores, os chamados “antigenic shift”. (Sequeira)
As nossas defesas imunológicas assentam na imunidade humoral, baseada na
produção de anticorpos contra estes dois antigénios e ajudada pela imunidade
celular, a cargo dos linfócitos T, das células exterminadoras naturais e dos
macrófagos (Sequeira).
Segundo
Francisco George, as pandemias de gripe são sempre diferentes umas das outras.
Sucedem-se, a cada pandemia, epidemias anuais provocadas por estirpes que lhe
são aparentadas, como se duma dinastia se tratasse.
Em
2005, foi anunciado o sequenciamento genético do vírus da gripe de 1918,
recuperado de cadáveres enterrados em campos congelados no norte da Europa (Sequeira).
As
crianças e os idosos costumam ser os mais vulneráveis às epidemias. Não
aconteceu assim com a Pneumónica que castigou, essencialmente, os setores
jovens da população, predominando entre os 20 e os 40 anos de vida.
Estudos
em ratinhos sugeriram que as mortes ocorriam quando os sistemas imunológicos
reagiam exageradamente ao vírus, com libertação excessiva de citoquinas. Essas
“tempestades” de citoquinas terão precipitado o envolvimento pulmonar e a morte
de adultos jovens, durante a pneumónica. (Rebelo-de-Andrade e Felismino). Os
sistemas imunológicos mais débeis de crianças e velhos não seriam capazes de reações
tão intensas, permitindo menores taxas de mortalidade.
Apesar
de existirem diferenças notáveis nas condições higiénicas e alimentares dos
portugueses, na opinião de muitos investigadores a gripe foi transversal a
todas as classes sociais (Sobral). Outros, como Ricardo Jorge, consideram que
os mais pobres foram mais castigados.
As
medidas tomadas contra a pandemia foram semelhantes às que se tinham aprendido
com a experiência multissecular de combate ao tifo exantemático e à peste
bubónica: banhos obrigatórios, desinfeção de roupas e habitações, isolamento
dos doentes e dos seus contactos. Foram-lhes adicionadas a notificação
obrigatória dos infetados e a divisão das cidades maiores em áreas sanitárias,
com constrangimentos à circulação entre bairros. Recomendava-se o uso de
máscaras e a lavagem frequente das mãos. Os espaços públicos eram desinfetados com
formaldeído, creolina e outros produtos. A dois de outubro de 1918, a direção
dos H.C.L. proibiu as visitas aos doentes internados.
Há
quem defenda que uma parte dos óbitos por gripe poderá estar associada à intoxicação
com aspirina, que chegava a ser recomendada em doses de 30 gramas por dia e
seria capaz de provocar hemorragias. No entanto, a mortalidade foi também
elevada em regiões do mundo em que a população não tinha acesso a esse
medicamento.
Muitos
consideram que a estirpe viral da gripe pneumónica foi invulgarmente agressiva.
Terá sido ajudada, pelo menos na Europa, pela subnutrição e pela falta de
condições higiénicas causadas pela guerra e, ainda, pelas aglomerações humanas
nos acampamentos militares e nas cidades. A sobrelotação dos hospitais terá
facilitado a eclosão de superinfeções bacterianas, responsáveis por muitas
mortes.
Os
mais velhos terão sido relativamente poupados por terem tido contacto anterior
com vírus aparentados a este, que terão circulado décadas atrás (pandemia de
1890).
As
vítimas prediletas da gripe pneumónica foram as grávidas, com taxas de
mortalidade excecionalmente elevadas. Há quem indique uma taxa de 30% e quem aponte
para números superiores. Entre outubro e novembro, de 1918 a pneumónica
matou 40% das mulheres grávidas portuguesas. (Correio do Ribatejo).
A
história da gripe está longe de acabar. Vejamos brevemente como começou.
Tucidide
(460-395 a. C.), autor da Guerra do Peleponeso (Sequeira) relatou uma epidemia
ocorrida em Atenas no ano de 431 a.C. Descreveu os sintomas, que parecem
sobreponíveis aos da gripe e, ainda, a desregulação que a doença provocou na
vida da cidade, com o oportunismo, o mercado negro dos bens essenciais e a
falta de respeito pelos mortos.
Hipócrates
descreveu um surto de infeção catarral acontecida no norte da Grécia no ano 412
a.C. Tratou-se, provavelmente, de gripe, e foi relatada no Livro IV das
Epidemias. (Sequeira)
Há
descrições de possíveis surtos gripais no século V, mas a verdadeira história
da gripe epidémica tem início entre os séculos XIV e XVI, com os relatos das
epidemias italianas do Renascimento. Ocorreu uma pandemia em 1530. (Sequeira) A
partir dessa data, a gripe diminuiu de frequência na Europa, até que no inverno
de 1889, nasceu na Sibéria uma nova pandemia (Sequeira).
Depois
da Pneumónica, houve três pandemias de gripe A: a gripe asiática de 1957 (que
contagiou o autor destas linhas) a de Hong Kong de 1968 e a de 2009.
As aves, especialmente as aquáticas migratórias, como os patos selvagens, constituem o reservatório natural do vírus da gripe. As pandemias regressam, com intervalos de tempo variáveis.
As
autoridades sanitárias estão, cada ano, à espera duma nova epidemia. Hoje
dispomos de antibióticos para combater as infeções bacterianas secundárias e de
uma melhor organização dos cuidados sanitários. Contudo, os transportes são
muito mais rápidos e os vírus propagam-se bem mais depressa.
Que
conselhos se poderiam dar aos doentes? Alguns são atuais ainda nos nossos dias:
permanecer em casa, repousar e adotar uma dieta ligeira. Recomendavam-se ainda
caldos de galinha e gargarejos mentolados.
A
terapêutica era sintomática (Rebelo-de-Andrade). A febre era combatida com
soluções de quinino e salicilatos. A tosse tratava-se com xaropes de benzoato
de sódio e de acetato de amónio. (Sequeira). Nos casos mais graves, recorria-se
a injeções de soluções arsenicais, cafeína e adrenalina. Em 1918, não existiam
terapêuticas antivirais específicas.
Na
atualidade, dispomos de vários medicamentos. O antiparkinsónico amantadina e a
sua aparentada rimantadina (grupo das adamantanas) nunca foram eficazes contra
a gripe B e encontram cada vez mais resistências nas estirpes de gripe A.
Tendem a ser abandonadas no tratamento da gripe.
Os
inibidores da neuraminidase (zanamivir, oseltamivir (Tamiflu) e peramivir)
podem ser usados tanto para prevenir, como para tratar, a gripe. Há quem os
aconselhe para doentes com co-morbilidade. O peramivir, de administração intravenosa,
é sugerido para as situações em que o oseltamivir falha.
Em
casos de mutação viral importante, são estes os únicos meios terapêuticos de
que dispomos para tentar controlar a proliferação da doença, até se produzir
uma vacina específica contra a estirpe nova.
A
terapêutica antiviral reduz a mortalidade dos doentes com pneumonia viral,
mesmo se iniciada dois dias após o início da doença. No entanto, nas epidemias
de gripe A do Missisipi (em 2001) e de Hong Kong (em 2009) foram encontrados
vírus que continham o gene de mutação H275Y da neuraminidase, que conferia
resistência ao oseltamivir. Tem sido recomendada a profilaxia precoce. A F.D.A.
descreveu os efeitos gerais destas drogas como “modestos” (Jefferson).
Há
artigos que sugerem que o uso profilático deste produto em pessoas que
contactaram com doentes pode aumentar o risco de resistência e que a profilaxia
se deverá reservar a pacientes com patologia grave associada. Tem sido tentada
a associação de vários antivirais.
O
vírus da gripe pneumónica percorreu o mundo durante dezoito meses, de março de
1918 a agosto de 1919.
Os portugueses poderiam mesmo chamar
“espanhola” à gripe pneumónica. Os primeiros casos conhecidos ocorreram em maio
de 1918, em Vila Viçosa. Foram trazidos de Espanha por trabalhadores sazonais
portugueses vindos de Badajoz e de Olivença. (Sequeira). No entanto, segundo Rebelo-de-Andrade e
Felismino, as portas de entrada do vírus no nosso país poderão ter sido
múltiplas, em relação com o regresso dos militares que combatiam em França. No
Porto, terão sido registados alguns casos já no começo de março.
A
gripe espalhou-se rapidamente pelo Alentejo. Chegou a Lisboa em junho. Em pouco
tempo, espalhou-se por todo o país.
Instalou-se na Madeira, a partir de meados de setembro, levada por passageiros embarcados no navio Mormugão.
Atingiu, uma semana mais tarde, os Açores, transmitida por
doentes que seguiram, por mar, de Bordéus para Ponta Delgada
(Rebelo-de-Andrade).
Quando
ocorreram, em Vila Nova de Gaia, (Sequeira,) em agosto, alguns casos de
pneumonia fulminante, houve quem receasse estar a enfrentar um surto de peste
bubónica, de que havia memória recente. Ocorrera uma epidemia de peste, na
região, no final do século XIX. As autoridades sanitárias esclareceram que se
tratava de gripe, mas a população nada terá ganho com a troca.
Era
o início da segunda vaga da gripe. Durou poucos meses, mas acompanhou-se de uma
elevada taxa mortalidade.
Perante um flagelo que não entendiam, nem
eram capazes de combater, muitos portugueses refugiaram-se na religião e
procuraram obter, como durante a Idade Média, por meio de preces e procissões,
o auxílio que as autoridades sanitárias eram impotentes para proporcionar.
Segundo
João Frada, os concelhos da Região Norte foram relativamente poupados pela
doença. Os resultados da investigação de Leston Bandeira apontam para Lisboa,
Porto e Viseu como os distritos mais atingidos.
Por
outro lado, as taxas mais elevadas de mortalidade não se verificaram nos
concelhos mais populosos do continente. Benavente foi a povoação mais afetada
pela epidemia, tendo morrido sete por cento dos doentes atingidos. Entre as
cidades, as mais afetadas foram Covilhã e Leiria (Bandeira, Pereira). De acordo
com Sobral, no nosso país, a mortalidade foi maior em mulheres (54% do total de
óbitos), ao contrário do que aconteceu na maioria das nações.
Foram,
nessa altura, ensaiadas as primeiras vacinas polivalentes. Algumas chegaram a
ser utilizadas no final de 1918, com sucesso limitado.
Em
1920 (os números de 1918 não são conhecidos) existiam em Portugal 2.580 médicos
(1/2.338 habitantes) e 1.577 farmácias (1/3.825 habitantes). Concentravam-se
mais nas grandes cidades e eram escassos nas regiões periféricas, como o
Algarve. A mobilização de muitos médicos para a guerra da Flandres agravou a
situação sanitária do país (Sobral).
Ricardo
Jorge, diretor do então Instituto Central de Higiene (Sequeira, Sobral) teve um
papel importante, ainda que nem sempre consensual, no combate à gripe.
Tornara-se conhecido pela sua intervenção no surto de peste bubónica ocorrido
no Porto em julho de 1899. Quando a Pneumónica chegou, era Diretor-geral de
Saúde e foi nomeado comissário-geral do governo na luta contra a epidemia
gripal.
Em
18 de junho de 2018, apresentou no Conselho Superior de Higiene, um relatório
em que referia “a nova incursão peninsular da influenza” (Pereira).
Ricardo
Jorge obrigou à notificação de todos os casos diagnosticados, procurou impedir
as movimentações das forças militares e as migrações dos trabalhadores
agrícolas sazonais e esforçou-se por conter os aumentos dos preços dos
medicamentos nas farmácias. Suspendeu as aulas, proibiu as visitas aos
hospitais e opôs-se à realização de feiras e peregrinações. No entanto,
preocupou-se também com a economia e com saúde mental dos portugueses. As fábricas
continuaram a laborar. Escolas, cafés, salas de espetáculo, igrejas e
transportes públicos, não foram encerrados. (Rebelo-de-Andrade).
Faltavam camas para os doentes. Em
Lisboa, o Liceu Camões e o convento das Trinas foram transformados em
hospitais.
Como
noutros países, as crianças pequenas e os adultos jovens foram mais atingidos.
Segundo
Helena Rebelo-de-Andrade, a pandemia encontrou Portugal a braços com uma crise
“económica, social, política e sanitária”.
O quadro clínico da Gripe Pneumónica era
semelhante aos das gripes dos nossos dias: febre, cefaleias, mialgias, ardor
faríngeo, rinorreia e, ocasionalmente, conjuntivite. Na maioria dos casos, a
doença evoluía bem e curava em 3 a 5 dias.
A complicação mais temida era a
pneumonia primária, com expetoração hemoptoica e espumosa. Provocava muitas
vezes síndromes de insuficiência respiratória aguda, matando o doente num dia
ou em dois. Ocasionalmente, eram invadidos outros órgãos e sistemas, surgindo
miocardites, encefalites e, provavelmente em associação com o uso de
salicilatos, síndromas de Reye.
A desgraça estava à vista de todos.
Saíam, cada dia, funerais da própria rua e até da casa ao lado. A epidemia era
transversal a todas as classes sociais. Morriam padeiros, leiteiros, médicos e
coveiros. Os sinos das igrejas tocavam quase continuamente a finados. A dada
altura, alguns calaram-se. Houve autoridades locais que consideraram que contribuíam
demasiado para o alarme social.
A morte banalizou-se. Faltavam os
caixões e muitos corpos eram sepultados em valas comuns, envoltos em
serapilheiras.
Registo o telegrama dramático que o governador civil de Faro dirigiu ao presidente da República e que foi publicado pelo jornal “O Século”, a 14/10/1918:
Exmo.
Senhor Presidente da República. Belém. Lisboa. Gravemente doente, solicito a V.
Ex.ª proteção para o Algarve. Epidemia varre povoações inteiras havendo já
cemitérios completamente cheios, fazendo-se enterramentos em campa rasa. Faltam
medicamentos, arroz, açúcar, velas, petróleo, massas, manteigas, batatas, e há
três dias que não há pão […]. Povo ordeiramente vem pedir-me pão e crianças
vagueiam nas ruas chorando com fome. Director Geral de Abastecimentos mandou
requisitar toda batata de Monchique, único concelho produtor e que já não tem
batata para metade do distrito. Rogo proteção a V. Ex.ª acudindo a tanta
miséria. A todo o momento cai gente na rua com doença e fome. Barcos de pesca
param serviço por falta de gente. Não há peixe.
No nosso país, foram mais atingidos pela
gripe as crianças com menos de dois anos de idade e os adultos jovens. Metade
dos óbitos registaram-se entre os 20 e os 40 anos de idade (Rebelo-de-Andrade)
e 55% entre os 15 e os 39 anos. (Sequeira). No entanto, é possível que parte
dessas mortes tenha sido falsamente atribuída à gripe.
O número de óbitos registado em Portugal
varia, segundo as fontes, entre 50 e 120 mil. João Frade contabiliza exatamente
60.174, mas poderão ter-lhe escapado inúmeros casos sem diagnóstico ou com
diagnósticos enganosos. Note-se que, em 1918, os portugueses eram menos de seis
milhões.
Sidónio
Pais, o “Presidente-Rei” de Fernando Pessoa, empenhou-se pessoalmente no combate
à pandemia. Segundo Rebelo-de-Andrade e Felismino, chegou a fazer da gripe uma
bandeira política. Sabia falar aos mais humildes.
Faltava
pão nas casas, os republicanos não se entendiam e a participação de Portugal na
guerra desgastava o país. As metralhadoras obrigavam os soldados a afundar-se
nas trincheiras.
Sidónio, professor universitário de Matemática e vagamente major de Artilharia, mostrava-se ao país fardado e montado num cavalo branco.
Procurou conciliar o populismo com o pragmatismo. Apresentando-se como o salvador de Portugal, procurou o apoio dos muitos portugueses católicos e apaziguou as relações tensas entre a Igreja e o Estado. Devolveu à Igreja os seminários confiscados em 2011 e restabeleceu as relações diplomáticas com a Santa Sé. Foi piscando o olho, simultaneamente, aos monárquicos e aos sindicalistas, procurando fortalecer a sua base de apoio social. Falhou. Mataram-no no Rossio a 14 de dezembro de 1918. Por essa altura, a segunda vaga de gripe pneumónica aproximava-se do fim.
Os vírus da gripe modificam-se
rapidamente. É provável que tenham evoluído para cepas menos letais. Como as
variantes altamente mortíferas acabam em muito pouco tempo com o seu anfitrião,
não se podem propagar com tanta facilidade. Trata-se de um processo de seleção
natural.
A
gripe pneumónica provocou uma crise demográfica grave no nosso país, com um
saldo negativo de 70.291 habitantes, apenas em 1918.
Entre dezenas de milhares de
desconhecidos, a gripe ceifou as vidas de várias personalidades com relevo na
sociedade portuguesa: o pintor Amadeu de Souza Cardoso. o suposto vidente de
Fátima Jacinto Marto, o pianista e
compositor António Fragoso e o fundador do Sporting, José Alvalade.
Vou
dedicar algum espaço a Amadeo.
Amadeo
de Sousa-Cardoso morreu, em Espinho a 14 de outubro de 1918. Foi ceifado pela
Gripe Pneumónica. O pintor integrava o grupo etário mais atingido: festejaria o
seu 31º aniversário dali a um mês.
Durante a sua prolongada estadia em
Paris, Amadeo de Sousa-Cardoso privou com alguns dos nomes mais sonantes da
pintura e da escultura da época. Outro Amadeo (Modigliani) tornou-se seu amigo
chegado.
A I Grande Guerra fê-lo voltar à Pátria.
Quem olha hoje as obras de Amadeo, fica
impressionado pela vitalidade que transmitiu ao pincel. Lê-se ali vontade de
experimentar, ambição, bom gosto, desejo de afirmação e uma grande harmonia na
mistura das cores. Aqui e além, o artista dá a impressão de tatear, como se
percorresse, de olhos vendados, uma vereda pouco conhecida. Pintou centenas de
quadros. Em muitos deles, parece brilhar a centelha do génio.
A pensar em quadros seus, escreveu
Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos: só tem direito ou o dever de exprimir o
que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. O que é preciso é o
artista que sinta por um certo número de Outros, uns do passado, outros do
presente, outros do futuro.
O pintor não se fidelizou a qualquer
corrente estética. Afirmou, numa entrevista a um jornal português:
Eu não sigo escola alguma. Nós, os novos, só
procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista,
abstracionista? De tudo um pouco.
Alcançou
a perfeição em várias dessas correntes, mas não se deteve em nenhuma. Chegou a
escrever: Eu, por exemplo, nem a mim mesmo me sigo na visão artística. Tudo o
que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito.
Ia
outubro de 1918 adiantado quando Amadeo de Sousa-Cardoso escreveu ao irmão
António a sua última carta conhecida. Deixo aqui excertos dela.
Meu caro António:
Algumas notícias nossas e são as
seguintes: a Gracita continua no mesmo estado. Não tem piorado, mas também as
melhoras não são para dar descanso. Na noite passada, o termómetro acusou
altíssima temperatura. Hoje, até à hora que escrevo, tem baixado: 39, 39 e
meio.
Eu ando constipadíssimo. De vez em
quando, sinto bastante opressão no peito. Tenho-me atirado ao vinho do Porto,
como prevenção.
Não sei quê que me diz que vae haver
grande mudança na vida da nossa família. Será pessimismo meu oxalá!
Abraça-te teu muito dedicado irmão
O pintor de Manhufe morreu cedo e o seu valor foi reconhecido tardiamente.
Ninguém
pode saber quanto teria ainda para dar à arte portuguesa e mundial. Embora seja
pouco útil conjeturar, alguns dos que o apreciam interrogam-se: teria Amadeo
acabado por se encostar a algum dos movimentos estéticos da época, ou viria a
criar uma escola própria?
EPÍLOGO
Recentemente,
voltei a ler o artigo “Revisitar a pneumónica de 1918-1919”, publicado em 2018
por Laurinda Abreu e José Vicente Simões. Dada a relevância do conteúdo, cito
aqui uma pequena parte, com a devida vénia aos autores.
Durante
a Pneumónica, Portugal terá registado uma das maiores taxas de mortalidade na
Europa (entre 9,8 e 22 por 1000 habitantes, consoante as diferentes
estimativas), sendo este um dos indicadores que, obviamente, deve suscitar mais
reflexão. A figura central do combate à epidemia de 1918 em Portugal foi, como
bem se sabe, o diretor-geral de Saúde, Ricardo Jorge. Sendo conhecido o seu
pensamento, não seria expectável que defendesse o encerramento das fronteiras e
a instalação de lazaretos para organização de quarentenas. Tal como já tinha
acontecido aquando do surto de peste que atingiu o Porto em 1899, Ricardo Jorge
optou pelo isolamento dos doentes e por recomendações higiénicas e dietéticas.
A questão fulcral é perceber porque terá sido tão grande o desaire demográfico
português quando comparado com outros países que aplicaram disposições
similares.
Quando
se compara a reação governamental à crise de 1918 com a atuação perante as
epidemias de cólera de 1884 e 1885, que fizeram pesadas baixas em Espanha e
noutros países europeus e deixaram praticamente incólume Portugal, verifica-se
uma mudança substancial de estratégia política. No primeiro caso, o governo de
Fontes Pereira de Melo, ciente da debilidade do país e das suas próprias
limitações em termos de saúde pública, agiu por antecipação e impôs um rígido
controlo das fronteiras, marítimas e terrestres, e da mobilidade de pessoas e
mercadorias, substituindo o saber médico pelo poder das armas dos militares. Em
1918, diferentemente, Portugal colocou-se ao lado dos países tidos como mais
desenvolvidos e, como eles, procurou agir em função dos mais recentes
conhecimentos médicos e preceitos higienistas – uma opção de política de saúde
pública que, a avaliar pelos resultados, não foi porventura a mais adequada às
circunstâncias do país.
BIBLIOGRAFIA
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Vários. Correio do Ribatejo
12/07/2018. Crónicas Memórias da Cidade “Da fome, da guerra e da pestilência
livrai-nos Senhor”
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