DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 22 de abril de 2020




 LIBERDADE


V


 O MEU 25 DE ABRIL

      Volto aqui a apresentar um artigo que publiquei neste blogue em junho de 2011.


                        O MEU 25 DE ABRIL


A 25 de Abril de 1974, levantei-me cedo. A  minha mulher tinha uma visita de estudo marcada para Coimbra e tencionava levar com ela a nossa filha mais velha. A Cláudia, que era mais nova, foi comigo para S. José. 
Cheguei ao hospital por volta das oito e meia. Estranhei ver tantos carros de colegas estacionados junto ao Serviço 10. Quando entrei na sala dos médicos, já lá estava muita gente.
- Não sabes o que se está a passar? - perguntou-me o Ventura.
Eu não tinha ligado o rádio. Disse que não.
- Está a decorrer uma rebelião militar contra o governo. Os revoltosos intitulam-se Movimento das Forças Armadas. Dizem que estão a conseguir tomar conta dos pontos estratégicos de Lisboa.
Seguimos durante alguns minutos as notícias da rádio. A situação parecia indefinida. Eu e o Carlos Durão Maurício tínhamos operações marcadas para essa manhã. Resolvemos deixar uma das marquesas do bloco vaga para uma urgência eventual e fomos trabalhar na outra. A Cláudia ficou entregue às enfermeiras.
Quando acabámos de operar, eram horas do almoço. Ouvimos as notícias. O Movimento das Forças Armadas progredia no terreno. Não tinha dado entrada no Banco de S. José qualquer ferido de guerra.
Como não sabia como estava o caminho, aceitei o convite do Maurício para almoçar em casa dele.
Havia perto um quartel da Guarda Republicana e a situação continuava tensa. Enquanto o Maurício estacionava o automóvel, toquei à campainha. A Marilda perguntou, pelo intercomunicador:
- Quem é?
Perdi uma ocasião magnífica de parecer sensato. Respondi, com voz grossa:
- É a PIDE!
Quando subi ao terceiro andar, arrependi-me da piada. A esposa do meu colega e amigo tinha perdido o controlo dos nervos e estava lavada em lágrimas. Não teria grande coisa a recear da Polícia Política, mas aquele não era um dia como os outros e as pessoas andavam nervosas.


Tentei telefonar para casa, sem êxito. Não sabia da minha mulher e da minha filha mais velha, nem elas de nós. Após um almoço improvisado mas agradável, meti-me no carro e conduzi até perto da ponte sobre o Tejo, para me inteirar das condições de trânsito. O percurso estava livre. Fui buscar a Cláudia e regressei a casa. A viagem foi normal. Parecia nada estar a acontecer no País. 
A São e a Marisa nem tinham chegado a sair de Setúbal. Chegara a notícia do levantamento militar e a visita de estudo fora cancelada.
Acho que, para compensar a gaffe do fim da manhã, me portei bem durante o resto do dia. A perspectiva da queda do velho Estado Novo entusiasmava quase toda a gente. No entanto, em vez de ficar especado em frente à televisão, que era o que me apetecia, cumpri o meu dever e fui trabalhar.Tinha umas tantas visitas domiciliárias a doentes da Caixa de Previdência à minha espera. A festa foi adiada algumas horas.

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