DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 19 de abril de 2020



II

OS PENSADORES E A   LIBERDADE


Nos textos filosóficos, a liberdade é muitas vezes discutida em termos de livre-arbítrio e vontade própria, em equilíbrio com a responsabilidade moral. 
Os defensores do livre-arbítrio consideram a liberdade de pensamento como uma característica inerente à nossa mente, enquanto os deterministas olham a mente como o funcionamento do cérebro ditado pelas circunstâncias. 
Os pensadores que vou referir e tentar perceber escreveram entre a segunda metade do século XVI e o século XX. Poderia, naturalmente, ter feito outras escolhas. 


ÉTIENNE DE LA BOÉTIE (1530-1563)



Na sua obra “Discurso sobre a servidão voluntária”, de la Boétie ocupa-se da liberdade política e considera naturais tanto a existência da liberdade como a vontade de a defender.
Presume que os homens são livres e iguais e que qualquer divisão da sociedade em classes conduz à servidão. O filósofo associa a divisão em classes ao nascimento do Estado e procura explicar as razões que levam os homens a aceitar a obediência ao Poder.
Aponta o hábito como primeira causa. As pessoas nasceram em servidão e lembram mal a liberdade. Virá a seguir o encantamento determinado pelo espetáculo que rodeia o Poder e o faz parecer atraente. Alimenta-se da estrutura hierárquica do Poder e da distribuição das benesses. Esses fatores conduzem à transigência. O povo abdica da liberdade e aceita o poder do tirano.

BARUCH SPINOZA (1632-1677)


Para Spinoza, a liberdade identifica-se, em parte, com a natureza do “ser”. Livre será aquele que agir de acordo com a própria natureza.
Um homem realiza-se plenamente através do exercício da liberdade.
A liberdade é irmã da responsabilidade. Ser livre implica ser responsável pelos próprios atos.  

GOTTFRIED LEIBNITZ (1646-1716)


Segundo Leibnitz, as ações humanas são livres, a despeito do princípio de causalidade que rege os objetos do mundo material.
São também contingentes, espontâneas e refletidas.
Contingentes porque poderiam assumir formas diversas.
Espontâneas porque quem decide poderia abster-se de o fazer.
Refletidas porque o homem procura entender as razões que o movem.

ARTHUR SCHOPENHAUER (1788-1860)


O pensamento de Schopenhauer desenvolve-se a partir da filosofia kantiana. Immanuel Kant (1724-1804) estabeleceu a distinção entre o que existe em si mesmo (a coisa-em-si, a que chamou noumenon) e o que parece ser (fenomeno).
A coisa-em-si não poderia ser objeto de conhecimento científico. A ciência ocupar-se-ia do mundo dos fenómenos.
Schopenhauer identifica a coisa-em-si kantiana como vontade pura. Para ele, a ação humana não é totalmente livre. Todos os atos humanos e todos os fenómenos da natureza são níveis de objetivação dessa vontade pura.
O homem – passo a citar – “objeto entre objetos, coisa entre coisas, não possui liberdade de ação porque não é livre para deliberar sobre a própria vontade; não escolhe o que deseja, o que quer; logo, não é livre; é absolutamente determinado a agir segundo a sua vontade particular, objetivação da vontade metafísica por detrás de todos os eventos naturais; o que parece ser deliberação é uma ilusão ocasionada pela mera consciência sobre os próprios desejos.

STUART MILL (1806-1873)


Para Stuart Mill, liberdade é a capacidade de se fazer o que se deseja e se tem poder, ou capacidade, de fazer. O exercício da liberdade tem em consideração os direitos de todos os envolvidos e é limitado pelos direitos de terceiros.
Stuar Mill estabelece a distinção entre dois vocábulos ingleses que nós traduzimos apenas pela palavra liberdade. Freedom significa essencialmente a capacidade e o poder de pôr em prática a própria vontade, enquanto Liberty se refere à ausência de constrangimentos externos e tem em conta os direitos de terceiros. 

MIKHAIL BAKUNIN (1814-1876)


Bakunin foi um dos mais importantes teóricos e militantes anarquistas.
Em 1848 publicou o Apelo aos Eslavos, pedindo aos revolucionários eslavos que se juntassem aos revolucionários húngaros, italianos e alemães para derrubar as três maiores autocracias da Europa: o Império Russo, o Império Austro-húngaro e o reino da Prússia.
Para Bakunin, liberdade não é um conceito abstrato, mas uma realidade concreta baseada na interação com a liberdade de outros. A liberdade consistirá no "desenvolvimento pleno de todas as faculdades e poderes de cada ser humano, pela educação, pelo treinamento científico, e pela prosperidade material."
Tal conceção de liberdade é "eminentemente social, porque só pode ser concretizada em sociedade," não em isolamento. Num sentido negativo, liberdade é "a revolta do indivíduo contra todo tipo de autoridade, divina, coletiva ou individual."

KARL MARX (1818-1883)


Marx critica as conceções metafísicas da liberdade. No seu modo de ver, a liberdade não existe fora do mundo material e são os indivíduos que a exercem na prática ao transformarem as condições materiais em que vivem.
Nas sociedades capitalistas, a atividade produtiva transforma-se coercivamente no trabalho assalariado enquanto as capacidades humanas se reduzem a força de trabalho, negociada no mercado de trabalho. Nessas condições, a vida humana reduz-se à sobrevivência.
Mesmos as liberdades parciais comuns no capitalismo, como a liberdade económica, que permite vender e comprar mercadorias, a liberdade de expressão e a liberdade política, que consiste em escolher quem governa, supõem que os homens se confinem às suas classes sociais. Se a luta dos proletários tivesse êxito e permitisse abolir a propriedade privada, seria instaurado o comunismo, que Marx entende como a associação livre dos produtores.


CARLOS PECOTCHE (1901-1963)


Para o argentino Pecotche, o homem nasce livre. Mesmo que não dê conta dela, e a liberdade é um dos seus atributos naturais. Os excessos de liberdade serão evitados pela ligação ao sentimento do dever e à responsabilidade individual. O conhecimento aumenta o espaço da consciência, tornando o homem ainda mais livre.

JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)


Para Sartre, a liberdade faz parte da condição humana. Ou é absoluta, ou não existe. O filósofo francês recusa o determinismo materialista. Se tudo fosse matéria, não existiria consciência nem liberdade. Nada antecede ou justifica o ato livre. É o próprio ato que justifica tudo. O fundamento da liberdade é o indeterminismo absoluto, o nada.
O homem angustia-se por estar condenado a fazer escolhas.




Sem comentários:

Enviar um comentário