DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 22 de abril de 2020





DEUSA COBRA





Adquiri há algum tempo e contra a opinião da minha mulher uma escultura em pedra  julgo que se trata de calcário  a um antiquário alentejano. Tem dois palmos de altura por três de largo e é bastante pesada. Foi com esforço que eu e o vendedor a introduzimos no porta-bagagem do automóvel.
Nunca tive uma peça tão bela e não voltarei a ter outra assim. É uma deusa serpente. Tem uma cabeça de mulher e outra de cobra. Raras pessoas terão tido o privilégio de admirar coisa parecida.
 Ao longo dos meses, conforme o tempo disponível, vasculhei a Internet à procura de informação. A bibliografia sobre deusas serpentes na Península Ibérica é abundante, mas não encontrei qualquer imagem de escultura igual ou semelhante.
Os gregos antigos chamavam à Península Ibérica Ofiusa, terra de serpentes. Em Portugal e em Espanha, abundam as lendas sobre cobras, dragões e mouras. Estas mouras (de que são bem conhecidas lendas em Mértola e em Palmela) têm muitas vezes formas híbridas, metade mulher e metade serpente e estão habitualmente relacionadas com a água (fontes e cavernas). Melusina é outra figura conhecida nas lendas europeias. Trata-se de um espírito feminino também híbrido que habita na vizinhança de rios e fontes sagradas.
Julga-se que aos habitantes originais da Península Ibérica se foram juntando, entre o oitavo e o sexto século antes de Cristo, povos indo-europeus de origem celta, conhecedores da metalurgia do ferro. Os celtas trouxeram para cá o seu panteão de deuses, incluindo nele o culto da serpente. No entanto, a serpente era já um mito pan-mediterrâneo. Tratou-se, assim, de uma reinoculação. O culto celta da serpente misturou-se provavelmente com outros rituais há muito estabelecidos na Península.
A serpente é olhada de modos diferentes nas lendas antigas. Representa, em alguns casos a evolução cíclica da Natureza. Trata-se de um animal que aparece e desaparece e que muda de pele. Oculta-se na terra durante o tempo frio, para regressar na primavera. Torna-se um símbolo da morte, antes de se associar à ideia de ressurreição. Será por isso a insígnia da Medicina.
É muitas vezes considerada um símbolo de fecundidade. Tanto é vista como uma figura benéfica (traduzindo eventualmente o culto residual da Deusa Mãe) como é apresentada como representação do diabo, na tradição judaico-cristã. Nas mitologias europeias chega a ocupar o lugar de um deus polivalente. Umas vezes reina sobre o mundo subterrâneo, o lugar dos mortos. Outras, superintende à música e à magia. Noutros locais, ajuda a cuidar do gado e a preservar a saúde.
                                                                         

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