AMÍLCAR CABRAL
XXV
QUEM TEM MEDO MORRE DEPRESSA
(MARCELINO
DA MATA)
A sorte protege mais os prudentes que os
audazes e o lema dos "comandos" não corresponde à realidade. Marcelino da Mata é claramente uma exceção. Participou em inúmeras
operações militares tendo sido raramente ferido pelo adversário. Em contrapartida, foi atingido por
fogo amigo pelo menos quatro vezes e sofreu ainda dois acidentes de viação de
certa gravidade.
Nunca fui ferido em
combate, mas fui ferido várias vezes dentro dos quartéis. Apanhei um tiro numa
perna quando ia a atravessar uma parada, dado por um tipo que estava sentado à
porta da caserna a limpar a arma: fiquei dois dias no quartel; e apanhei três tiros
de rajada no ombro, dados por um amigo meu que, na brincadeira, visou baixo de
mais. Os grupos que tive foram “Os Roncos” que eram 15 pretos e 15 brancos e
davam-se todos como irmãos; comigo tinha que ser assim. Parti a cabeça em Farim
em 68, numa noite em que estava num destacamento e havia outro a dois quilómetros que
estava a ser atacado. Metemo-nos numa viatura e, num cruzamento, ao virar, o
inimigo emboscado deu uma bazucada na roda do jipe: dei seis cambalhotas, bati com
a cabeça e parti um braço que ficou com o osso todo esmigalhado; levantei-me e
eles começaram a gritar “agarra!”, disparei com o outro braço e fiz dois mortos;
eles fugiram e a seguir desmaiei. Puseram-me um bocado de metal. Uns tempos
depois um condutor despistou o Unimog, demos várias cambalhotas e o metal
entortou; puseram-me outro e noutra operação caí mal ao saltar dum helicóptero, o ferro voltou a entortar e tiveram que me meter outro.
Marcelino
da Mata é de etnia papel, tal como Nino Vieira. Nasceu em Tite, em 1940 e teve
acesso a uma educação melhor do que a média dos seus conterrâneos. Diz ter
feito o sétimo ano, embora não se entenda se incluiu na conta a escolaridade
primária.
A sua
incorporação no exército é, pelo menos, curiosa. Conta ter entrado para a
tropa, em Bolama, em lugar do irmão mais velho e com o nome dele. Tornou-se
soldado condutor. Ouçamo-lo:
Fui
para a escola de cabos mas como falo muitos dialetos (balanta, mandinga, fula,
mandeco, mancai, um pouco de nalu e de beafada), qualquer tropa que ia para o
mato em operações me levava como intérprete.
Comecei a perceber o que estava em causa,
quando a guerra começou: eu tinha de lutar de um lado; e esse lado era, e é, Portugal.
A princípio não percebia nada de política, mas como não gostava de cabo-verdianos
e eles estavam à frente do PAIGC, eu estava contra eles; depois, comecei a não
gostar do comunismo. Quando se apanhava alguém no mato, ele ou ela dizia logo
que não falava português e então eu perguntava de que etnia era, e interpretava
para o oficial comandante. Foi nessas operações em que servia de intérprete que
me habituei a estar debaixo de fogo, que comecei a ganhar prática. Apareceu um
alferes chamado Maurício Saraiva a pedir voluntários para formar um grupo de
“comandos” e eu ofereci-me.
Mal terminou o curso de
“comandos”, foi enviado para um navio de guerra e desembarcado na ilha de Como.
Começara a operação “Tridente”.
Havia operações de noite e
de dia, bombardeamentos de noite e de dia. A ilha estava ocupada pelo PAIGC. Tinha
árvores muito cerradas, com mais de 100 metros de altura: isso causava
problemas com os bombardeamentos, porque as bombas rebentavam nas copas. De
dia, a um metro, não se via ninguém: só dávamos pelo inimigo quando ele abria
fogo; a ilha é toda cheia de pântanos. Tínhamos lodo até aos joelhos e água até
à cintura.
É
provável que as árvores parecessem mais altas vistas de baixo. Por outro lado,
Marcelino da Mata sempre gostou de exagerar. Não
se pode acreditar em tudo o que contam guerreiros, pescadores e caçadores.
Estivemos lá 75 dias com o meu grupo a trabalhar com o Batalhão de
Cavalaria 490 e outras forças. Tivemos algumas baixas, mas limpámos a ilha
toda. Houve uma dezena de evacuados por causa da matacanha, um bicho que se
mete debaixo das unhas. Eles sofreram 3 ou 4 vezes mais mortos. Deixámos lá
ficar uma companhia de caçadores. Conheci lá o comandante Calvão.
O
que dava cabo dos brancos era o clima e a água, que não prestava. A maior parte
dos brancos que fizeram a tropa na Guiné vieram com o estômago rebentado; a
água não prestava, o clima era húmido, havia um calor enorme. Mas, pior do que
isso, é que os brancos iam daqui sem conhecer o terreno, sem instrução nenhuma.
A
guerra na Guiné fazia-se assim: destruíamos os acampamentos, apanhávamos os
gajos e o material.
Saí
dos “comandos”. Fui para Farim, no norte, falei com o comandante,
tenente-coronel Agostinho Ferreira, do Batalhão 1887. Pedi-lhe para me deixar
formar um grupo especial (“Os Roncos”). Na altura a aviação não ia a Farim, a
coluna não se fazia, os barcos também não iam lá. Estava tudo bloqueado e o
povo tinha fome. Eu formei o grupo, instruí os homens e começámos a atuar.
Consegui abrir a estrada para Mansabá, afastei o inimigo e os barcos começaram
a atirar. Quando chegou a época do cultivo, abrimos o outro lado do rio, o povo
atravessou o rio e começou a cultivar. Na altura o PAIGC estava a dois quilómetros
de Farim. Afastei os gajos todos.
O brigadeiro Sá Carneiro
deu-me uma Cruz de Guerra de primeira classe e outra de segunda, e vim
recebê-las em 1967 ao Terreiro do Paço. Quem me condecorou foi Salazar, que me
disse que eu era um herói nacional e que, por aquilo que tinha lido de mim, eu
merecia a medalha que tinha no peito. Foi a primeira vez que vim ao
Continente e não cheguei a ver Lisboa – foi desembarcar no aeroporto, dormir,
ir à parada e voltar a apanhar o avião – porque estava em preparação uma
operação de envergadura no Cumbamorie, no norte, com três companhias de tropa e
o meu grupo “Os Roncos”. No aeroporto de Bissau estavam à minha espera, vesti o
camuflado e meti-me numa avioneta diretamente para Farim. Quando lá cheguei
estavam a arrancar para o mato e eu fui com eles. Esta operação era 40 quilómetros
dentro do Senegal. O meu grupo empurrava o inimigo para uma clareira, e quando
ele chegasse à mata do outro lado deviam estar lá as outras companhias para o
limpar. Tinha havido muito tiro, vários tipos atingidos; eles a correr para a
mata e nós a deixarmo-nos ficar para trás, para não sermos apanhados pelo fogo
da emboscada dos nossos.
Marcelino da Mata diz ter
participado em diversas operações militares nos países limítrofes da Guiné-Bissau:
Senegal e Guiné-Conacry. As autoridades portuguesas sempre o negaram, receando as
repercussões internacionais. De facto, os guerrilheiros do PAIGC atacavam muitas
vezes a partir de santuários existentes no exterior da colónia e a lógica da guerra
tornava natural que os adversários os perseguissem. Os quarenta quilómetros é que
parecem um exagero.
Atuava no máximo com 8
homens. Quando não sabia onde eram os acampamentos, ia até à fronteira do
Senegal com uma farda do PAIGC e uma bolsa de enfermeiro, entrava numa povoação
e dizia: “Venho do Senegal, sou enfermeiro e fui mandado para a zona tal”. E
eles encaminhavam-me até ao acampamento, ficava por lá 2 ou 3 dias, tratava dos
homens, dava injeções. Às 5 ou 7 horas da noite ia-me embora e apanhava o meu
grupo. Às 5 da manhã já estávamos em cima deles.
Não sabe quantos inimigos
abateu. Se fosse um daqueles cobóis do cinema que faziam um risco no cano por
cada adversário derrubado, precisaria de uma espingarda bem comprida para
caberem lá todos.
De medalha em medalha e de
louvor em louvor, a reputação de Marcelino da Mata foi crescendo. A lenda
também. Os inimigos receavam-no e os camaradas de armas olhavam-no com
respeito. A verdade é que Marcelino ajudou a construir a própria fama. Nunca se
coibiu de acrescentar zeros às perdas inimigas.
Foi sendo promovido por
valor. Em 1972, era alferes com a especialidade comando. Passa a ser o
responsável pelo IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) dos cursos de
comandos. Era a última fase de treino, feita no mato em missões reais.
Em
21 de abril de 1971, por proposta do general António de Spínola, Marcelino da Mata
foi agraciado outra Cruz de Guerra de 1ª Classe.
«No decorrer de uma operação (Mar Verde) excecionalmente difícil e em que,
face ao aparecimento de situações imprevisíveis, pôs à prova as suas invulgares
qualidades de decisão, de desembaraço e de inultrapassável espírito de missão. Tendo
morrido em combate, pouco depois do assalto a um aquartelamento inimigo, o
comandante do Grupo que desencadeara a ação, foi o Sargento Marcelino quem
assumiu o comando das forças executantes. Face à resistência que o inimigo
ofereceu em diversas ocasiões, o Sargento Marcelino, pessoalmente, causou ao
inimigo elevado número de baixas, atuando com uma coragem e decisão
verdadeiramente notáveis, sendo-lhe devido o êxito total da ação, que decorreu
sempre com iminente risco de vida».
Dois
dias depois do 25 de Abril de 1974, foi ferido numa explosão e evacuado para o
Hospital Militar Principal, em Lisboa.
Hoje,
Marcelino da Mata é tenente-coronel graduado, na situação de reforma
extraordinária. Julga-se que é o oficial
do Exército Português que mais condecorações recebeu por valor excecional em
combate. Aos louvores, perdeu a conta − «uns dizem que foram 47, outros 52».
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