AMÍLCAR
CABRAL
XLI
A
ADJACÊNCIA
No
final do século XIX, Cabo Verde dispunha de instrumentos culturais superiores
aos das restantes possessões ultramarinas portuguesas. O Seminário-liceu de S.
Nicolau tinha uma frequência apreciável. Funcionavam diversas associações
recreativas e existia uma imprensa virada para os problemas regionais. Tinha
sido criada uma elite intelectual que se sentia diferente do conjunto dos cidadãos das
outras colónias portuguesas.
O
projeto da adjacência, que advogava para Cabo Verde um estatuto semelhante aos
dos Açores e da Madeira foi defendido, com intermitências, por diversos
pensadores do arquipélago. Se, de vez em quando, sobretudo por altura das
secas, se levantavam vozes a defender a independência, pouco eco despertavam
numa opinião pública inclinada a lutar pela autonomia administrativa e
económica dentro do império português. Houve quem defendesse a ideia de que, em
Cabo Verde, a mestiçagem atenuava a intensidade dos conflitos entre colonos e
colonizadores
Não
existia, em Cabo Verde, uma tradição de pura crítica anticolonial. A literatura
do começo do século XX ligava frequentemente as noções de “nativismo” e de
“adjacência”. Nativismo era um processo de busca de individualidade da
terra-mãe. Muitos cabo-verdianos achavam que tinham duas pátrias. Uma vinha do
nascimento, enquanto a outra era fabricada na escola pela aprendizagem da
língua e da cultura portuguesas.
Em
1937, o governo português fez sair duas leis que iriam ter consequências desastrosas
para as teses da portugalidade repartida por vários continentes. Uma impedia o
acesso à oficialidade das Forças Armadas Portuguesas aos naturais das colónias.
Outra proibia o casamento de oficiais portugueses com raparigas nascidas no
Ultramar. Nove anos mais tarde, foi publicado um decreto-lei que reforçava os
privilégios dos funcionários públicos de raça branca. Os negros e mestiços não
podiam ganhar tanto como os seus colegas de pele clara e deixavam de ter acesso
aos lugares de chefia. A lei aplicava-se a todos os territórios sob
administração portuguesa mas era particularmente lesiva dos interesses doa quadros
cabo-verdianos. Seria revogada cinco anos depois. A revisão constitucional de
1951 mudou o nome às colónias, que passaram a chamar-se “províncias
ultramarinas”. A cosmética valeu de pouco. Os ventos da independência tinham já
começado a soprar.
É
provável que até perto do final da década de 50, Amílcar Cabral, como outros
intelectuais africanos, tenha tido de lutar consigo mesmo para se livrar do
sentimento de pertença a Portugal que lhe foi inculcado durante a aprendizagem
escolar.
Curiosamente, quase trinta anos após a
independência, a questão da adjacência continua a suscitar discussões
inflamadas na República de Cabo Verde.
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