DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 19 de maio de 2013


                        
               AMÍLCAR CABRAL




                     XXXVI

                  A POESIA

Amílcar Cabral dava às palavras escritas mais valor do que elas tinham. Ao longo da guerra, não se cansou de escrever relatórios, cartas, comunicados e ensaios. Era como se passar a escrito uma preocupação a aliviasse, ou traçar no papel os contornos dum problema fosse já começar a resolvê-lo. 
Diz Corsino Tolentino que Cabral foi um político que queria ser poeta. O líder do PAIGC começou a escrever versos na adolescência. A maior parte deles, contudo, viria a ser publicada apenas depois da sua morte.
       Não foi a poesia que notabilizou Amílcar, embora os seus versos se leiam com curiosidade e certo agrado.

                      ROSA NEGRA

          Rosa,
          Chamam-te Rosa, minha preta formosa
          E na tua negrura
          Teus dentes se mostram sorrindo.

          Teu corpo baloiça, caminhas dançando,
          Minha preta formosa, lasciva e ridente
          Vais cheia de vida, vais cheia de esperanças
          Em teu corpo correndo a seiva da vida
          Tuas carnes gritando
          E teus lábios sorrindo...

          Mas temo tua sorte na vida que vives,
          Na vida que temos...
          Amanhã terás filhos, minha preta formosa
          E varizes nas pernas e dores no corpo;
          Minha preta formosa já não serás Rosa,
          Serás uma negra sem vida e sofrente
          Serás uma negra
          E eu temo a tua sorte!

          Minha preta formosa não temo a tua sorte,
          Que a vida que vives não tarda findar...
          Minha preta formosa, amanhã terás filhos
          Mas também amanhã...
          ... amanhã terás vida!

O autor não renegou os poemas líricos que escreveu, mas evoluiu e amadureceu. A revista Présence Africaine, fundada por Alioune Diop em 1947, influenciou todos os intelectuais negros que a puderam acompanhar. A Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, a cargo de Leopold Shengor, com prefácio de Jean-Paul Sartre, foi editada em 1948. Os temas eram a escravatura, o racismo, o culto dos antepassados e o homem negro.
Sartre era, ao tempo, uma das estrelas intelectuais da Esquerda europeia. Não se limitou a escrever um prefácio: enveredou pela teorização da negritude. A seu ver, era necessário passar-se por um racismo anti-racista para se chegar à eliminação do conceito de raça. Tal racismo deveria afirmar-se na luta pelas independências. Todos os meios para as alcançar seriam justificados.
     “Este livro ensinou-me muitas coisas – escreveu mais tarde Amílcar Cabral. A certeza de que o Negro estava em vias de despertar no mundo inteiro. Tratava-se de um despertar universal, de braços abertos a todos os homens de boa vontade.”  
       O poema que registo a seguir ilustra a evolução do pensamento do autor.

                                         NÃO, POESIA

                   Não, Poesia:
                   Não te escondas nas grutas do meu ser,
                   Não fujas à Vida.
                   Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
                   Abre de par em par as portas do meus ser

                    - sai...
                    Sai para a luta (a vida é luta)
                    Os homens lá fora chamam por ti,
                    E tu, Poesia, és também um Homem.
                    Ama as poesias de todo o Mundo,

                   - ama os Homens
                   solta teus poemas para todas as raças,
                   para todas as coisas.
                   Confunde-te comigo...

                   Vai, Poesia:
                   Toma os meus braços para abraçares o Mundo,
                   Dá-me os teus braços para que abrace a Vida.
                   A minha Poesia sou eu.

        A partir dessas leituras, Cabral passou a defender, como Agostinho Neto, que o papel do poeta devia ser o de “formador de consciência”. Em 1952, escreveu: A evolução da poesia cabo-verdiana não deverá parar. Ela deve transcender a “resignação” e a “esperança”. A insularidade total e a seca não são suficientes para justificar uma estagnação perpétua. As mensagens da Claridade e da Certeza devem ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de “querer partir”, não pode ser eternizado. O sonho deve ser outro.
         Apontava assim o rumo que, no seu entender, deveria ser seguido pela literatura cabo-verdiana. Perderam os movimentos da Claridade e da Certeza, que não tinham contribuído para a tomada de consciência das realidades africanas por parte dos negros. Foram excluídas de algumas antologias.
         Em 1953 foi publicado o primeiro Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, organizado por dois intelectuais africanos: Francisco José Tenreiro, de São Tomé e Príncipe, e Mário de Andrade, de Angola;
A meu ver, não é certo que a subordinação da poesia às necessidades do processo histórico a tenha enriquecido. Embora haja existam excelentes poetas militantes, o engajamento político direciona a imaginação e pode limitá-la. É fácil tropeçar no caminho que vai do lirismo à poesia de combate.
         Eis um poema emblemático de Amílcar Cabral em que as caravelas são as dez ilhas de Cabo Verde:

NAUS SEM RUMO

Dispersas,
emersas,
sozinhas sobre o Oceano …
Sequiosas,
rochosas,
pedaços do Africano,
do negro continente,
as enjeitadas filhas,
nossas ilhas,
navegam tristemente …
Qual naus da antiguidade,
qual naus
do velho Portugal,
aquelas que as entradas
do imenso mar abriram …
As naus
que as nossas descobriram.
Ao vento, à tempestade,
navegam
de Cabo Verde as ilhas,
as filhas
do ingente
e negro continente …
São dez as caravelas
em busca do Infinito …
São dez as caravelas,
sem velas,
em busca do Infinito …
A tempestade e ao vento,
caminham …
navegam mansamente
as ilhas,
as filhas
do negro continente …
- Onde ides naus da Fome,
da Morna,
do Sonho,
e da Desgraça? …
- Onde ides? …
Sem rumo e sem ter fito,
Sozinhas,
dispersas,
emersas,
nós vamos,
sonhando,
sofrendo,
em busca do Infinito! …



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