AMÍLCAR CABRAL
XIX
REALIDADE
(Excertos de um texto de Amílcar Cabral)
Uma coisa muito importante numa luta
de libertação nacional é que aqueles que dirigem a luta nunca devem confundir
aquilo que têm na cabeça com a realidade. Pelo contrário, quem dirige uma luta
de libertação nacional deve ter muitas coisas na cabeça, cada dia mais, tanto a
partir da própria realidade da sua terra, como da realidade doutras terras, mas
ele deve medir, fazer planos, respeitando a realidade e não aquilo que tem na
cabeça. Isso é muito importante, e o facto de não o respeitar tem criado muitos
problemas na luta de libertação dos povos, principalmente em África. Eu posso
ter a minha opinião sobre vários assuntos, sobre a forma de organizar a luta,
de organizar um Partido, opinião que aprendi, por exemplo, na Europa, na Ásia,
até mesmo talvez noutros países de África, nos livros, em documentos que li,
com alguém que me influenciou. Mas não posso pretender organizar um Partido,
organizar uma luta de acordo com aquilo que tenho na cabeça. Tem que ser de
acordo com a realidade concreta da terra.
A nossa realidade geográfica, ainda, é que
a Guiné na sua quase maioria, não tem nenhuma montanha, nenhuma elevação, (só
para os lados do Boé é que tem algumas colinas, com o máximo de 300 metros de
altura) e Cabo Verde são ilhas vulcânicas e montanhosas. Mesmo nesse aspeto
vemos que um completa o outro. Uma terra não tem nenhuma montanha e a outra é
toda de montanhas.
Isso também tem grande importância,
não só na sua economia, como na vida social, cultural etc., que podemos
encontrar na vida do nosso povo.
Na
Guiné, terra cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas que no fundo
não são rios: Farim só é rio para lá de Candjambari; o Geba só é rio de
Bambadinca para cima e por vezes mesmo para lá de Bambadinca há água salgada;
Mansoa só é rio depois de Mansoa para cima, já a caminho de Sara, perto de
Caroalo; Buba, esse não é rio de lado nenhum, porque até chegarmos a terra
seca, é só água salgada; Cumbidjã, Tombali, são todos braços de mar, a não ser
na parte superior com um bocadinho de água doce na época das chuvas, sobretudo
o rio de Bedanda, que vem a Balama buscar água doce. O único rio de fato a
sério, na nossa terra, é o Corubal. Esta é uma realidade muito importante para
nós, porque se, por um lado, temos muitos portos para entrar na nossa terra,
com barcos, por outro lado podem ver o perigo que isso representa para nós.
Se a nossa economia fosse desenvolvida,
quer dizer que o nosso povo seria também culturalmente mais forte do ponto de
vista moderno, com mais escolas, mais liceus, capaz de trabalhar com morteiros,
canhões e até com aviões. Os comandantes seriam mais capazes de entender todos
os problemas de estratégia, de tática e poderiam todos trabalhar com mapas.
A realidade cultural da nossa terra,
em Cabo Verde, (pondo agora a questão dos colonialistas que não nos deixaram
avançar muito) é o resultado do fato de os colonialistas terem deixado estudar
os cabo-verdianos, na medida em que precisavam de gente para fazer agentes do
colonialismo, como utilizaram os indianos. Como os ingleses também utilizavam
os indianos na colonização, e os franceses utilizavam os daomeanos, assim
também os portugueses utilizaram os cabo-verdianos, instruindo um certo número.
Na Guiné, a cultura do nosso povo é o
produto de muitas culturas da África: cada etnia tem a sua cultura própria, mas
todas têm um fundo igual de cultura, a sua interpretação do mundo e as suas
relações na sociedade. E sabemos que embora haja populações muçulmanas, no
fundo eles também são animistas, como os balantas e os outros. Acreditam em
Ala, mas também acreditam nos «irãs» e nos «djambacos ses». Têm Alcorão, mas
também têm o seu «gri-gri» no braço e outras coisas. E o sucesso do Islamismo
na nossa terra, como na África em geral, é que o Islão é capaz de compreender
isso, de aceitar a cultura dos outros, enquanto os católicos querem acabar com
isso tudo rapidamente só para crerem na Virgem Maria, na Nossa Senhora de
Fátima e em Deus Nosso Senhor Jesus Cristo.
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