AMÍLCAR CABRAL
VI
A UTOPIA
Falar de Amílcar Cabral é falar de Cabo
Verde e da Guiné, dos sonhos de toda uma época e da sensação de ver deslizar a
História enquanto se procura influenciá-la. Será também falar do heroísmo e da
morte, da persistência na luta, das frustrações e da vitória, de generosidade e
de traição. Há ainda quem julgue que é falar também de sonhos mal sonhados.
Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na
Guiné então portuguesa, em 1924. Amílcar era filho de cabo-verdianos emigrados.
As origens marcaram-lhe o destino. Nasceu na Guiné, mas nunca foi guineense. O
PAIGCV que fundou, juntamente com o seu irmão Luís Cabral e com Fernando
Fortes, Júlio de Almeida e Elisèe Turpin, procurava congregar duas realidades
diferentes. Para além do anseio de liberdade, pouco ligava os ilhéus de Cabo
Verde, culturalmente ligados ao esforço de Portugal para produzir quadros
destinados a administrar o Império, aos camponeses culturalmente menos
avançados da continental Guiné.
Nos finais dos anos cinquenta do século
passado, o ideal do pan-africanismo ganhou força e sobrepôs-se aos
nacionalismos incipientes. Nasceram múltiplos projetos de uniões regionais e
sub-regionais de várias antigas colónias europeias. Assentavam em razões
históricas e na aleatoriedade das fronteiras estabelecidas pelas potências
coloniais. Em julho de 1958, num congresso realizado em Cotonou (Benim) foi
mesmo proposta a criação dos Estados
Unidos de África.
Os exemplos de tentativas federalistas
são numerosos e poucas nações africanas lhes terão ficado indiferentes. Ainda
em 1958, a Guiné-Conakry e o Gana elaboraram um plano de união. No ano
seguinte, o Daomé (atual Benim), o Sudão (atual Mali), o Alto Volta (atual
Burkina Faso) e o Senegal integraram-se na chamada Federação do Mail, com Modibo Keita como presidente e Dakar como
capital federal. A febre das uniões não terminou aí. Em 1959, foi projetada uma
União do Benim, que integraria o
Togo, o Níger e o Daomé, e sonhada a criação dos Estados Unidos da África Latina, que deveria agrupar o
Congo-Leopoldeville, o Congo-Brazaville, o Chade, a República Centro-Africana,
os Camarões, o Gabão e Angola. No mesmo
ano nasceu o projeto duns Estados Unidos da África Central, que juntaria a
Libéria, o Gana, a Guiné-Conakry, a Serra Leoa, o Senegal e a Gâmbia.
O único destes devaneios que ganhou
raízes e perdurou até aos nossos dias foi a Tanzânia, que resultou da união
levada a cabo em 1964 entre o Tanganica e Zanzibar.
Ao procurar unificar Cabo Verde e a
Guiné, Amílcar Cabral não estava a inventar nada. Seguia a moda corrente entre
os dirigentes independentistas africanos. O seu projeto nasceu provavelmente em
1959, depois da conferência que teve lugar em Accra em dezembro do ano
anterior. Em setembro de 59, nasceu o Partido Africano da Independência e União
dos Povos da Guiné e Cabo Verde, com a divisa UNIDADE E LUTA. Em junho de 1960,
Amílcar Cabral assumiu a coordenação dos diversos movimentos que pretendiam a
libertação da Guiné e de Cabo Verde e se encontravam sediados em países vizinhos. A luta contra
o colonialismo português tornou-se então eficaz. Começaram os
contactos com elementos que habitavam o interior da Guiné e tiveram início as
ações de propaganda.
Para tal, foi necessário convencer boa
parte dos ilhéus de Cabo Verde de que eram genuinamente africanos. Alguns já
pensavam assim. Outros ainda não estarão certos disso, mesmo nos dias de hoje.
Foi preciso também persuadir os guineenses de que os cabo-verdianos eram aliados e
não adversários.
Os argumentos de Cabral eram fortes. A língua (o creoulo) era semelhante.
Os habitantes das duas colónias portuguesas partilhavam a mesma raiz ancestral
(leia-se rácica) e eram dominados pela mesma potência colonial. Os escravos
transportados para as ilhas desertas encontradas pelos portugueses a oeste da
costa africana seriam maioritariamente originários da Guiné, o que não é fácil de
demonstrar, uma vez que os
portugueses comerciavam escravos ao longo do vasto litoral africano ocidental e não
existiam fronteiras claras com o Senegal e a Guiné-Conakry.
Nem todos concordavam com Amílcar Cabral. Havia
quem pensasse que a Guiné-Bissau estava mais próxima da Guiné-Conakry e do
Senegal, com quem partilhava mais laços históricos, que do arquipélago
cabo-verdiano. Antes de
1879, a Guiné dependia administrativamente de Cabo Verde, sede do Governo-geral. Foi
necessário combater os preconceitos que atribuíam aos cabo-verdianos uma
atitude geralmente paternalista para com os guineenses e o ódio com que estes
retribuíam a colaboração dos ilhéus com as autoridades administrativas portuguesas.
Por
outro lado, o crioulo da Guiné era diferente do de Cabo Verde. Na Guiné funcionava como
língua franca e em Cabo Verde era uma língua nacional.
As
preocupações com a Unidade começaram cedo e foram objeto de debates
sucessivos. Já em 1961, os dirigentes do PAIGCV escreviam (documento traduzido
do francês):
É
loucura pensar que os cabo-verdianos poderiam mandar na Guiné após a
independência. Há cerca de 2.000 cabo-verdianos na Guiné, sendo de cerca de
600.000 o número dos guineenses. Será o povo da Guiné que decidirá após a
independência quem vai dirigir o país. É evidente que a Guiné será governada
pelos seus filhos.
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