AMÍLCAR CABRAL
LIII
A LUTA DE CLASSES
(EXCERTO DE UM TEXTO DE AMÍLCAR CABRAL)
Aqueles que afirmam — e quanto a nós
com razão — que a força motora da história é a luta de classes, decerto
estariam de acordo em rever esta afirmação, para precisá-la e dar-lhe até maior
aplicabilidade, se conhecessem em maior profundidade as características
essenciais de alguns povos colonizados. Com efeito, na evolução geral da
humanidade e de cada um dos povos nos agrupamentos humanos que a constituem, as
classes não surgem nem como um fenómeno generalizado e simultâneo na totalidade
desses agrupamentos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo.
A definição das classes no seio dum agrupamento ou de agrupamentos humanos
resulta fundamentalmente do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e
das características da distribuição das riquezas produzidas por esse
agrupamento ou usurpadas a outros agrupamentos. Quer dizer: o fenómeno
socioeconómico da classe surge e desenvolve-se em função de pelo menos duas
variáveis essenciais e interdependentes: o nível das forças produtivas e o
regime de propriedade dos meios de produção.
Esse desenvolvimento opera-se lenta,
desigual e gradualmente, por acréscimos quantitativos, em geral impercetíveis,
das variáveis essenciais, os quais conduzem, a partir de certo momento de
acumulação, a transformações qualitativas que se traduzem no aparecimento da
classe, das classes e do conflito entre classes.
No plano estritamente interno, pode
variar o ritmo do processo, mas ele permanece contínuo e progressivo, sendo os
avanços bruscos só possíveis em função de aumentos ou alteração bruscas - mutações - no nível das forças produtivas ou no regime da propriedade. A estas
transformações bruscas operadas no interior do processo de desenvolvimento das
classes como resultado de mutações no nível das forças produtivas ou no regime
de propriedade, convencionou-se chamar, em linguagem económica e política, revoluções.
Vê-se, por outro lado, que as possibilidades
de esse processo ser influenciado significativamente por fatores externos, em
particular pela interação de conjuntos humanos, foi grandemente aumentada pelo
progresso dos meios de transporte e de comunicações que veio criar o mundo e a
humanidade, eliminando o isolamento entre os agrupamentos humanos duma mesma
região, entre regiões dum mesmo continente e entre os continentes. Progresso
que caracteriza uma longa fase da história que começou com a invenção do primeiro
meio de transporte, se evidenciou já nas viagens púnicas e na colonização grega
e se acentuou com as descobertas marítimas, a invenção das máquinas a vapor e a
descoberta da eletricidade. Será que a história só começa a partir do momento
em que se desencadeia o fenómeno classe e, consequentemente, a luta de classes?
Responder pela afirmativa seria
situar fora da história todo o período da vida dos agrupamentos humanos, que
vai da descoberta da caça e, posteriormente, da agricultura nómada e sedentária
à criação do gado e á apropriação privada da terra. Mas seria também — o que
nos recusamos a aceitar — considerar que vários agrupamentos humanos da África,
Ásia e América Latina viviam sem história ou fora da história no momento em que
foram submetidos ao jugo do imperialismo.
Seria considerar que populações dos
nossos países, como os Balantas da Guiné, os Cuanhamas de Angola e os Macondes
de Moçambique, vivem ainda hoje, se nos abstrairmos das muito ligeiras
influências do colonialismo a que foram submetidas, fora da história ou não têm
história. Esta recusa, aliás, baseada no conhecimento concreto da realidade socioeconómica
dos nossos países e na análise do processo de desenvolvimento do fenómeno
classe tal como foi feita acima, leva-nos a admitir que, se a luta de classes é
a força motora da história, ela é-o durante um certo período da história. Isto
quer dizer que antes da luta de classes (e, necessariamente, depois da luta de
classes, porque neste mundo não há antes sem depois) algum fator (ou alguns
fatores) foi e será o motor da história. Não nos repugna admitir que esse fator
da história de cada agrupamento humano é o modo de produção (o nível das forças
produtivas e o regime de propriedade) que caracteriza esse agrupamento. Mas,
como se viu, a definição da classe e a luta de classes são, elas mesmas, um
efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugado com o regime da
propriedade dos meios de produção. Parece-nos portanto lícito concluir que o
nível das forças produtivas, determinante essencial do conteúdo e da forma da
luta de classes, é a verdadeira e a permanente força motora da história e que o
imperialismo pode ser definido como a expressão mundial da procura gananciosa e
da obtenção de cada vez maiores mais-valias pelo capital monopolista e
financeiro, acumulado em duas regiões do mundo: primeiro na Europa e, mais
tarde, na América do Norte. E, se queremos situar o fato imperialista na
trajetória geral da evolução deste fator transcendente que modificou a face do
mundo - o capital e os processos da sua acumulação - poderíamos dizer que o
imperialismo é a pirataria transplantada dos mares para a terra firme,
reorganizada, consolidada e adaptada ao objetivo da espoliação dos recursos
materiais e humanos dos nossos povos. Mas se formos capazes de analisar com
serenidade o fenómeno imperialista, não escandalizaremos ninguém ao termos de
reconhecer que o imperialismo - que tudo mostra ser na realidade a fase última
da evolução do capitalismo - foi uma necessidade da história, uma consequência
do desenvolvimento das forças produtivas e das transformações do modo de
produção, no âmbito geral da humanidade, considerada como um todo em movimento.
Uma necessidade, como o são no presente a libertação nacional dos povos, a
destruição do capitalismo e o advento do socialismo.
O que importa aos nossos povos é
saber se o imperialismo, na sua condição de capital em ação, cumpriu ou não nos
nossos países a missão histórica reservada a este: aceleração do processo do
desenvolvimento das forças produtivas e transformação, no sentido da
complexidade, das características do modo de produção; aprofundamento da
diferenciação das classes com o desenvolvimento da burguesia e intensificação
da luta de classes; aumento significativo do standard geral médio do nível de
vida económica, social e cultural das populações. Interessa além disso
averiguar quais as influências ou efeitos da ação imperialista sobre as
estruturas sociais e o processo histórico dos nossos povos.
Não vamos fazer aqui o balanço
condenatório nem a elegia do imperialismo, mas diremos apenas que, quer no
plano económico, quer nos planos social e cultural, o capital imperialista
ficou longe de cumprir nos nossos países a missão histórica desempenhada pelo
capital nos países de acumulação. Isso implica que, se, por um lado, o capital
imperialista teve na grande maioria dos países dominados a simples função de
multiplicador de mais-valias, constata-se, por outro lado, que a capacidade
histórica do capital (como acelerador indestrutível do processo de
desenvolvimento das forças produtivas) está estritamente dependente da sua
liberdade, quer dizer, do grau de independência com que é utilizado. Devemos,
no entanto, reconhecer que em alguns casos o capital imperialista ou
capitalismo moribundo teve interesse, força e tempo bastante para, além de
edificar cidades, aumentar o nível das forças produtivas, permitir a uma
minoria da população nativa um standard de vida melhor ou até privilegiado,
contribuindo assim, em processo que alguns chamariam dialético, para o
aprofundamento das contradições no seio das sociedades em causa. Noutros casos
ainda, mais raros, houve a possibilidade de acumulação do capital, dando lugar
ao desenvolvimento duma burguesia local.
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