AMÍLCAR CABRAL
LII
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO
A
minha geração aprendeu, na escola primária, a conhecer os nomes, os cognomes e
os feitos de três dinastias de reis. O povo que fazia realmente a história
ficava na sombra. D. Henrique, “O Navegador”, era filho de rei. Dos
mareantes que iniciaram as descobertas, conhecem-se os nomes de alguns capitães.
Dos comerciantes empreendedores que armaram as caravelas, pouco se sabe. Alguns historiadores levaram tão longe a revolta contra a interpretação personalizada dos
acontecimentos que caíram no extremo oposto, menorizando
sistematicamente o papel das lideranças. A verdade é que existiram homens que
desenvolveram ao longo das suas vidas conjuntos de ações capazes de acelerar ou
de retardar o processo histórico. Amílcar Cabral foi um deles.
Ninguém
nasce ensinado. Cabral teve de apreender as ideias dominantes do ambiente que o
rodeava. Na sua juventude, poderá ter sido partidário da adjacência.
Alguns dos seus primeiros escritos sugerem a possibilidade de evolução de Cabo Verde à sombra da bandeira portuguesa.
Durante
a guerra, enquanto Amílcar Cabral frequentava o liceu, permaneceu no Mindelo um
destacamento de militares portugueses. Integrava oficiais milicianos que
tinham interrompido os cursos. Os ideais marxistas começavam a
expandir-se entre os estudantes universitários. É possível que Amílcar Cabral
tenha feito os primeiros contactos com a literatura marxista-leninista ainda em
Cabo Verde, no final da adolescência, mas não se conhecem dados que confirmem
ou infirmem tal suposição.
Em
Portugal, durante alguns anos, muitos estudantes africanos alinharam com a
Esquerda portuguesa no combate comum contra a ditadura salazarista. O jovem
Amílcar Cabral participou na luta política antifascista, em que os comunistas
assumiam papéis de vanguarda. Agostinho Neto foi militante do Partido Comunista
Português. Amílcar Cabral foi comunista, embora não tenha estado filiado no
PCP.
Aos poucos, a interiorização dos movimentos do
pan-africanismo e da negritude levou os universitários oriundos das colónias a
mudar de estratégia. Chegava a “africanização dos espíritos”, a necessidade de
conhecer a história e a cultura de África. Com ela, a questão das independências passou a ser encarada de modo diferente. Poderia (e talvez devesse) separar-se da
luta pela democracia.
O
pan-africanismo precedeu a formação das consciências nacionais africanas. Ajudou
a resolver o conflito interno de quem se sentia, ao mesmo tempo, negro e
português.
Quaisquer dúvidas existentes quanto ao
modo de pensar de Amílcar Cabral, ao menos em determinada fase da sua vida, serão
desfeitas pela leitura do texto que apresentamos no capítulo seguinte. O líder
do PAIGC não se limita a reproduzir ideias marxistas. Enriquece-as com as suas
reflexões.
Uma
das preocupações teóricas dos intelectuais africanos era adaptar o marxismo,
que nascera em cidades europeias industrializadas, à África camponesa, em que
os proletários tinham expressão demográfica reduzida.
Outro
tema de reflexão de Amílcar Cabral dizia respeito à ideologia pequeno-burguesa
de boa parte dos quadros dirigentes do PAIGC, incluindo o próprio secretário-geral.
A elite colonial que assumia a luta revolucionária devia renunciar aos seus
privilégios de classe e à cultura assimilada à portugalidade. “Para se identificar
com o seu povo em luta, teria de suicidar-se simbolicamente. Para existir,
teria de aceitar morrer”.
Aos olhos de Amílcar Cabral e de muita gente, o mundo, antes da Segunda Grande Guerra, estava dividido em dois blocos inconciliáveis. De um lado, perfilavam-se
o fascismo e o colonialismo. Do outro, a democracia e o socialismo. Esperava-se
que o fim do conflito pusesse termo à exploração do homem pelo homem e permitisse
o estabelecimento de uma nova ordem mundial. Os regimes totalitários foram
derrotados, mas os vencedores logo se desentenderam. Apressaram-se a dividir a
Europa ao meio e a desencadear uma guerra “fria” pelo controlo do planeta. Estavam,
contudo, criadas as condições para o começo da dignificação de raças humanas até
então menorizadas.
No
final da década de 50, as ideias universalistas de Amílcar Cabral foram
ganhando formas mais concretas. Para libertar a Humanidade era necessário
começar por libertar o Homem Negro. A libertação teria de se fazer nas
vertentes psicológica e territorial. Também Cabral procurou conhecer as suas raízes.
Passou a olhar a cabo-verdianidade de um ponto de vista africano. Dedicou
muitas páginas dos seus textos a reinstalar Cabo Verde em África.
Os
líderes das independências das colónias portuguesas, com a possível exceção de Eduardo Mondlane, que se mudou cedo para a América, aprenderam a
conhecer a realidade africana em Lisboa.
A
personalidade de Amílcar Cabral destacava-se do conjunto dos estudantes da Guiné
e de Cabo Verde. Era inteligente, sensato e bom comunicador. Possuía aquele conjunto mal definido de qualidades que se costuma designar por “carisma”.
Era o líder dos intelectuais do seu povo
e sabia disso. Tinha uma missão histórica a cumprir. Terá hesitado algum tempo
antes de a assumir na totalidade.
O
pan-africanismo entendia a África como um todo. “Era um patriotismo sem pátria definida”. Por outro lado, espalhara-se
a ideia da conveniência de modificar as fronteiras coloniais, tantas vezes
desenhadas a régua e esquadro em gabinetes europeus, para as substituir por outras
mais conformes com as realidades étnicas e geográficas, eventualmente integradas em federações
regionais. Nasceram diversas iniciativas federais, mas não resistiram ao tempo.
Ficou apenas a Tanzânia.
Cabo-verdiano
nascido na Guiné, Cabral sonhou reunir numa única nação os territórios e as
gentes das colónias portuguesas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. A Guiné era um
destino tradicional da emigração cabo-verdiana. Na década de 50, viviam ali
cerca de 1.700 cabo-verdianos. Uns tantos ocupavam cargos administrativos.
As
características geográficas tornavam quase impossível começar e desenvolver uma
guerra de guerrilha numa das ilhas do arquipélago de Cabo Verde. A vegetação, com zonas de mata cerrada, o
tarrafo, os múltiplos braços de mar e a proximidade das fronteiras com países já
independentes e dispostos a servir de refúgio aos combatentes ditou a escolha
da Guiné para berço da luta armada de libertação.
Embora
reconhecesse a necessidade da disciplina no PAIGC, dentro e fora da luta
armada, Amílcar Cabral foi sempre um democrata e um homem de diálogo. Afirmava:
“A opressão não é e nunca será uma escola de virtudes e de aptidões”.
Sem comentários:
Enviar um comentário