DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

                                     
                                                AMÍLCAR CABRAL

                                                              LII

                                                           

   EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO


A minha geração aprendeu, na escola primária, a conhecer os nomes, os cognomes e os feitos de três dinastias de reis. O povo que fazia realmente a história ficava na sombra. D. Henrique, “O Navegador”, era filho de rei. Dos mareantes que iniciaram as descobertas, conhecem-se os nomes de alguns capitães. Dos comerciantes empreendedores que armaram as caravelas, pouco se sabe. Alguns historiadores levaram tão longe a revolta contra a interpretação personalizada dos acontecimentos que caíram no extremo oposto, menorizando sistematicamente o papel das lideranças. A verdade é que existiram homens que desenvolveram ao longo das suas vidas conjuntos de ações capazes de acelerar ou de retardar o processo histórico. Amílcar Cabral foi um deles.
Ninguém nasce ensinado. Cabral teve de apreender as ideias dominantes do ambiente que o rodeava. Na sua juventude, poderá ter sido partidário da adjacência. Alguns dos seus primeiros escritos sugerem a possibilidade de evolução de Cabo Verde à sombra da bandeira portuguesa.
Durante a guerra, enquanto Amílcar Cabral frequentava o liceu, permaneceu no Mindelo um destacamento de militares portugueses. Integrava oficiais milicianos que tinham interrompido os cursos. Os ideais marxistas começavam a expandir-se entre os estudantes universitários. É possível que Amílcar Cabral tenha feito os primeiros contactos com a literatura marxista-leninista ainda em Cabo Verde, no final da adolescência, mas não se conhecem dados que confirmem ou infirmem tal suposição.
Em Portugal, durante alguns anos, muitos estudantes africanos alinharam com a Esquerda portuguesa no combate comum contra a ditadura salazarista. O jovem Amílcar Cabral participou na luta política antifascista, em que os comunistas assumiam papéis de vanguarda. Agostinho Neto foi militante do Partido Comunista Português. Amílcar Cabral foi comunista, embora não tenha estado filiado no PCP.
Aos poucos, a interiorização dos movimentos do pan-africanismo e da negritude levou os universitários oriundos das colónias a mudar de estratégia. Chegava a “africanização dos espíritos”, a necessidade de conhecer a história e a cultura de África. Com ela, a questão das independências passou a ser encarada de modo diferente. Poderia (e talvez devesse) separar-se da luta pela democracia.
O pan-africanismo precedeu a formação das consciências nacionais africanas. Ajudou a resolver o conflito interno de quem se sentia, ao mesmo tempo, negro e português.
      Quaisquer dúvidas existentes quanto ao modo de pensar de Amílcar Cabral, ao menos em determinada fase da sua vida, serão desfeitas pela leitura do texto que apresentamos no capítulo seguinte. O líder do PAIGC não se limita a reproduzir ideias marxistas. Enriquece-as com as suas reflexões.
Uma das preocupações teóricas dos intelectuais africanos era adaptar o marxismo, que nascera em cidades europeias industrializadas, à África camponesa, em que os proletários tinham expressão demográfica reduzida.
    Outro tema de reflexão de Amílcar Cabral dizia respeito à ideologia pequeno-burguesa de boa parte dos quadros dirigentes do PAIGC, incluindo o próprio secretário-geral. A elite colonial que assumia a luta revolucionária devia renunciar aos seus privilégios de classe e à cultura assimilada à portugalidade. “Para se identificar com o seu povo em luta, teria de suicidar-se simbolicamente. Para existir, teria de aceitar morrer”.
Aos olhos de Amílcar Cabral e de muita gente, o mundo, antes da Segunda Grande Guerra, estava dividido em dois blocos inconciliáveis. De um lado, perfilavam-se o fascismo e o colonialismo. Do outro, a democracia e o socialismo. Esperava-se que o fim do conflito pusesse termo à exploração do homem pelo homem e permitisse o estabelecimento de uma nova ordem mundial. Os regimes totalitários foram derrotados, mas os vencedores logo se desentenderam. Apressaram-se a dividir a Europa ao meio e a desencadear uma guerra “fria” pelo controlo do planeta. Estavam, contudo, criadas as condições para o começo da dignificação de raças humanas até então menorizadas.
No final da década de 50, as ideias universalistas de Amílcar Cabral foram ganhando formas mais concretas. Para libertar a Humanidade era necessário começar por libertar o Homem Negro. A libertação teria de se fazer nas vertentes psicológica e territorial. Também Cabral procurou conhecer as suas raízes. Passou a olhar a cabo-verdianidade de um ponto de vista africano. Dedicou muitas páginas dos seus textos a reinstalar Cabo Verde em África.
Os líderes das independências das colónias portuguesas, com a possível exceção de Eduardo Mondlane, que se mudou cedo para a América, aprenderam a conhecer a realidade africana em Lisboa.
A personalidade de Amílcar Cabral destacava-se do conjunto dos estudantes da Guiné e de Cabo Verde. Era inteligente, sensato e bom comunicador. Possuía aquele conjunto mal definido de qualidades que se costuma designar por “carisma”.  Era o líder dos intelectuais do seu povo e sabia disso. Tinha uma missão histórica a cumprir. Terá hesitado algum tempo antes de a assumir na totalidade.
O pan-africanismo entendia a África como um todo. “Era um patriotismo sem pátria definida”. Por outro lado, espalhara-se a ideia da conveniência de modificar as fronteiras coloniais, tantas vezes desenhadas a régua e esquadro em gabinetes europeus, para as substituir por outras mais conformes com as realidades étnicas e geográficas, eventualmente integradas em federações regionais. Nasceram diversas iniciativas federais, mas não resistiram ao tempo. Ficou apenas a Tanzânia.
Cabo-verdiano nascido na Guiné, Cabral sonhou reunir numa única nação os territórios e as gentes das colónias portuguesas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. A Guiné era um destino tradicional da emigração cabo-verdiana. Na década de 50, viviam ali cerca de 1.700 cabo-verdianos. Uns tantos ocupavam cargos administrativos.
As características geográficas tornavam quase impossível começar e desenvolver uma guerra de guerrilha numa das ilhas do arquipélago de Cabo Verde.  A vegetação, com zonas de mata cerrada, o tarrafo, os múltiplos braços de mar e a proximidade das fronteiras com países já independentes e dispostos a servir de refúgio aos combatentes ditou a escolha da Guiné para berço da luta armada de libertação.
Embora reconhecesse a necessidade da disciplina no PAIGC, dentro e fora da luta armada, Amílcar Cabral foi sempre um democrata e um homem de diálogo. Afirmava: “A opressão não é e nunca será uma escola de virtudes e de aptidões”.

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