CARLOS NUNES PINTO
TAMEGÃO
XXVII
“No tempo em que os animais já não
falavam no resto do mundo, ainda se ouviam em Angola”.
O Tio Cardoso bebia uns
copitos a mais, é verdade. Só incomodavam a Tia Angelina, que se fartava, em vão,
de ralhar. Para nós era fixe. Quando estava com o grão na asa era divertido,
brincava connosco como um garoto.
Trabalhava nos Caminhos de
Ferro, era revisor. Dava a ordem de marcha, controlava as cargas e as
descargas, os passageiros, etc.
Antes de chegar a Moçâmedes,
a última paragem importante era o quilómetro 78, Caracul. Como já não tinha
mais nada a fazer dali para diante, enfiava-se no bagaço. Quando lhe
perguntavam por que bebia aquilo numa
zona onde o calor era demais, ele respondia:
− A mordedura dum cão
cura-se com o pelo do próprio cão.
Era sempre o chefe da
estação que o ia acordar no fim da viagem, dizendo-lhe:
− Acorda, Cardoso. A linha
acabou aqui.
Acordava, barbeava-se ali
mesmo na carruagem e chegava a casa fresquinho, como convinha.
O mano Nando, numa das férias
grandes, domesticou um periquito, daqueles verdes com a cabeça vermelha, os
republicanos, por culpa das cores. Foi uma oferta do Tamegão que estava muito
agradecido por lhe ter ensinado a escrever o nome. O periquito foi apanhado com
o visgo da mulemba que o próprio Tamegão sangrou.
Acabadas as férias, o
Nando regressou a Moçâmedes mas esqueceu-se de levar o periquito. Em todas as
cartas que escrevia à mãe pedia-lhe que o mandasse o mais depressa possível.
Mas como?
Minha mãe decidiu:
− Carlitos, vais a Moçâmedes
no comboio da quinta-feira, que o revisor é o tio Cardoso, e levas o periquito ao
teu irmão.
Fiquei radiante, ia dar um
passeio e, melhor do que isso, faltava dois dias às aulas.
Lá fui com o bichinho ao
ombro também.
Quilómetros depois, não
sei como, voou e foi pousar na cobertura da carruagem.
Via-o a tremer, talvez
pela deslocação do ar ou, não sei, com medo de cair. Devia ser pela segunda hipótese,
porque estávamos em zona desértica e ele devia pressentir que a única comida que
havia ali era areia.
− Tio, o periquito fugiu,
está em cima da carruagem.
− Tu consegues vê-lo?
− Consigo.
− Então mostra lá.
Examinou a situação e
disse:
− Não há nada a fazer, se
ele se quiser safar que se agarre.
− Mas, tio, o periquito é
do Fernando.
Joguei forte porque sabia
que ele tinha um fraquinho por ele e, ainda por cima, era seu afilhado. Ficou
calado. Momentos depois, como que falando para si próprio:
− Ai, tens que te agarrar,
tens.
Veio-me uma ideia
luminosa:
− Tio, tu podes mandar
parar o comboio.
− Boa, nem tinha pensado nisso.
Pegou na bandeira vermelha,
colocou-a fora da janela e o comboio parou.
Em Angola, até os periquitos faziam parar os comboios.
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