CARLOS NUNES PINTO
TAMEGÃO
XXI
“ O
milagre não está apenas na cor das flores,
Está também nas mãos de quem as sabe
repartir”
Não era mágico aquele
Continente, a magia é que se vestia de negro.
Quando o som do batuque
ecoava nas noites quentes era ouvido a quilómetros de distância sempre ritmado
pelas vozes das mulheres e com o seu bater de pés no chão. A dança, pouco ou
nada mudava – batiam forte com o pé direito na terra dura, raspavam nela o pé
esquerdo e depois o direito e nova batida forte.
A letra, durante anos,
talvez séculos, repetia-se sempre
Quando batiam:
“Este chão é meu”
Quando raspavam:
“Quero afagar este chão”
Quando voltavam a bater:
“Este chão que sempre foi
meu”
Que afinal acabou por
ficar sempre deles.
Os brancos nunca deram
grande importância à letra.
Só tenho pena que a poeira
que foram levantando, durante infindáveis tempos, não os deixe ver agora com
toda a sua transparência.
Adormeci muitas vezes
ouvindo aqueles sons em cama de branco. Nas intermitências do meu sono
revoltava-me ter nascido com a cor errada. O que eu queria era estar lá
absorvendo o cheiro do pó que os pés delicados das raparigas, levantavam.
Queria estar lá, no meio delas, dando ritmo ao ritmo do batuque com o saltitar
dos seus seios, maestria de duas batutas. Nunca o batuque foi capaz de os
controlar.
Eu queria ser negro.
Tamegão queria ser jovem, ver Luana dançar para ele aquele ritmo que só o corpo
dela sabia despejar sobre a sua imaginação.
Deitado na sua tarimba,
cansado com só os velhos se sabem cansar, de olhos fechados sem sono, sentia o
brilho da Lua em Luana. Imaginava-a partindo-se em vários segmentos do corpo,
primeiro os pés, depois a cintura e por fim o busto, de onde pareciam saltar
dois seios no acompanhamento perfeito do som do batuque. O que ela cantarolava
não sabia, era longa a distância entre os seus corpos, tão longe que as
palavras se distorciam, restando apenas um iá, iá, iá, às vezes chorado.
Adormeceu e sonhou que
estava sentindo o cheiro de Luana, mirando os seus olhos e que, num impulso, se
agarrou a ela cantarolando:
“Se essa chuva não passar
Arrebita, Luana, arrebita,
Não deixa o teu corpo
esfriar”
Acordou e viu-se sentado
nos paus da sua tarimba.
− Estou a ficar maluco, ou
quê? Minha idade já não dá para essas brincadeiras.
Para despertar saiu da
cubata, sentou-se no tronco e pegou no livro – logo reparou que ainda era noite
– e, encontrando seus botões disse para eles:
“Velho só é velho quando
ouve voz de mulher sem se incomodar”.
Depois concluiu:
“Pior não é isso, é quando
esse corpo dá voz numa mulher”
Reviveu os anos em que,
com os outros rapazes, calcorreou caminhos que a negritude da África não
deixava ver, mas que existindo, eram pisados a reboque da melodia que as negras
emitiam, espalhando-se na transparência que a noite africana escurecia.
Já estou melhor, me vou deitar outra vez.
Bebeu água fria da sanga e
adormeceu. Pela madrugada acordou mais descansado do que nunca e estranhou não
ter sido visitado pelo ciúme de saber que Luana tinha estado toda a noite nos
braços, talvez, de outro qualquer.
Acabada a festa Luana
regressou a casa – vinha cansada e suada mas parecia feliz.
Passou pela casa de
Tamegão
− Bom dia Senhor Tamegão.
− Bom dia Luana, eu lhe vi
a dançar toda a noite.
− Eu sabe, respondeu com um
sorriso matreiro.
Depois partiu para a sua
cubata mantendo o sorriso, agora melhorado para malicioso.
Tamegão, num impulso,
gritou:
− Fica comigo Luana.
Luana fingiu não ter
ouvido continuando lentamente a caminhada e, uns passos mais à frente, voltou-se
graciosa e provocante e ia a dizer qualquer coisa quando reparou que Tamegão
estava sereno, olhando o Céu.
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