XI
TAMEGÃO
CARLOS NUNES PINTO
“Quando mais alto é o galho, maior é o
trambolhão”
Já quase batiam as doze
badaladas da noite, quando a corda do gramofone que abrilhantava o baile se
partiu.
− Bolas, logo no melhor
momento!
Eu estava a dançar com
Luana.
À pressa ligou-se o rádio
para a Emissora Oficial. Ouviu-se o Hino Nacional na introdução do noticiário
da meia-noite. Todos o dançaram! O ritmo parecia o de uma marchinha. Até dava!
A D. Deolinda disse:
− Ainda vos hei-de ver
dançar o noticiário!
− Porque não? Faz-se de
contas que é o fado falado!
Com alguns cuidados, o
António Cacique me chamou para um canto do salão e disse-me:
− Menino, Tamegão lhe quer
falar. Está doente.
Estava-me a saber bem
(talvez bem demais…)
Deixei a miúda e corri
direitinho para a cubata dele.
− O que é tens, Tamegão?
− Se me pôs uma dor no
dente que eu não aguenta mais.
− Vamos já ao Hospital.
− É melhor, Menino, é
melhor.
Calcorreámos o trilho
estreito até à Vila. Tentei conversar, mas as respostas se esqueceram de
aparecer.
Encontrámos o Enfermeiro
em casa. Era um rapaz negro com grandes vontades de se aportuguesar,
especialmente quando falava. Tentou sempre aproximar-se mais dos brancos do que
os da sua raça. Até no nome exagerou na diferenciação: “ Agostinho do Vale e
Castro”!
− Sr. Enfermeiro,
trago-lhe o Tamegão aflito com uma grande dor de dentes. Nem sequer consegue
dormir…
− Então está como eu,
renegando sonolências.
− Estamos os três ao cabo
e ao fim – disse Tamegão.
− Certo – respondi eu.
− Então qual dente lhe está
a retirar a nocturna paz?
− Não sei muito bem, é um
no qualquer desse fundo.
− Assim não, tem que
referenciar a exactidão do sítio.
− É ali, se procurar pode
encontrar – abriu a boca em excesso de demasias.
Agostinho do Vale e
Castro, se refinando no português, retorquiu:
− Como me posso permitir
lhe descalcificar se você não relaciona o dito com o cujo?
− Desclassificar?
− Não, Tamegão, no excesso
o Sr. Enfermeiro quer dizer que lhe vai retirar um pouco de cálcio do seu
corpo. Você sabe que nas palavras compridas ele, às vezes, troca as letras
ainda vai no meio delas. Outras vezes, deixa cair algumas. Se lembra quando o
PIDE o prendeu por causa da revolta? Ele queria dizer “reviravolta”. Ele, na
desculpa, se explicou: “É revolta, mas de reviravolta. Perdi as letras do
vira”.
“Que és um grande músico
já nós sabemos” – disse o PIDE.
Toda a boca do Tamegão foi
examinada com a ajuda de uma lanterna de três pilhas
− Se assume boquiaberto,
Tamegão.
− Mais tempo não consigo!
Já me dói quase a chegar ao peito, na primeira metade!
− Se pacienta, falta
restos de pouco.
Agostinho, por fim,
declarou:
− Não constatei a
existência, nem ténue, de um dente em processo de cariamento. Vejo sanidade
total na totalidade da boca. Você agora é que decide, qual dente é que vai
entrar na verdadeira extracção?
− Parece nenhum, só sente
a dor quem tem dor. Agora me escapei em milagre! Vamos embora, Menino.
− Acordaram-me para
nenhuma solvência? Se você tivesse que subsidiar a sua indigência, isto não
acontecia.
Fizemos o caminho de
regresso calados. Cá para mim, estava ali outra coisa. Embora indeciso,
perguntei:
− Tamegão, o teu dente
doía mesmo de verdade?
− Nada.
− Então, porquê tudo isto?
Foi só porque eu dancei o Hino Nacional?
− Não, foi por causa do
respeito que faltou. Luana também é Hino!
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