DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 11 de fevereiro de 2017


XI

TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO



   “Quando mais alto é o galho, maior é o trambolhão”




Já quase batiam as doze badaladas da noite, quando a corda do gramofone que abrilhantava o baile se partiu.
− Bolas, logo no melhor momento!
Eu estava a dançar com Luana.
À pressa ligou-se o rádio para a Emissora Oficial. Ouviu-se o Hino Nacional na introdução do noticiário da meia-noite. Todos o dançaram! O ritmo parecia o de uma marchinha. Até dava!
A D. Deolinda disse:
− Ainda vos hei-de ver dançar o noticiário!
− Porque não? Faz-se de contas que é o fado falado!
Com alguns cuidados, o António Cacique me chamou para um canto do salão e disse-me:
− Menino, Tamegão lhe quer falar. Está doente.
Estava-me a saber bem (talvez bem demais…)
Deixei a miúda e corri direitinho para a cubata dele.
− O que é tens, Tamegão?
− Se me pôs uma dor no dente que eu não aguenta mais.
− Vamos já ao Hospital.
− É melhor, Menino, é melhor.
Calcorreámos o trilho estreito até à Vila. Tentei conversar, mas as respostas se esqueceram de aparecer.
Encontrámos o Enfermeiro em casa. Era um rapaz negro com grandes vontades de se aportuguesar, especialmente quando falava. Tentou sempre aproximar-se mais dos brancos do que os da sua raça. Até no nome exagerou na diferenciação: “ Agostinho do Vale e Castro”!
− Sr. Enfermeiro, trago-lhe o Tamegão aflito com uma grande dor de dentes. Nem sequer consegue dormir…
− Então está como eu, renegando sonolências.
− Estamos os três ao cabo e ao fim – disse Tamegão.
− Certo – respondi eu.
− Então qual dente lhe está a retirar a nocturna paz?
− Não sei muito bem, é um no qualquer desse fundo.
− Assim não, tem que referenciar a exactidão do sítio.
− É ali, se procurar pode encontrar – abriu a boca em excesso de demasias.
Agostinho do Vale e Castro, se refinando no português, retorquiu:
− Como me posso permitir lhe descalcificar se você não relaciona o dito com o cujo?
− Desclassificar?
− Não, Tamegão, no excesso o Sr. Enfermeiro quer dizer que lhe vai retirar um pouco de cálcio do seu corpo. Você sabe que nas palavras compridas ele, às vezes, troca as letras ainda vai no meio delas. Outras vezes, deixa cair algumas. Se lembra quando o PIDE o prendeu por causa da revolta? Ele queria dizer “reviravolta”. Ele, na desculpa, se explicou: “É revolta, mas de reviravolta. Perdi as letras do vira”.
“Que és um grande músico já nós sabemos” – disse o PIDE.
Toda a boca do Tamegão foi examinada com a ajuda de uma lanterna de três pilhas
− Se assume boquiaberto, Tamegão.
− Mais tempo não consigo! Já me dói quase a chegar ao peito, na primeira metade!
− Se pacienta, falta restos de pouco.
Agostinho, por fim, declarou:
− Não constatei a existência, nem ténue, de um dente em processo de cariamento. Vejo sanidade total na totalidade da boca. Você agora é que decide, qual dente é que vai entrar na verdadeira extracção?
− Parece nenhum, só sente a dor quem tem dor. Agora me escapei em milagre! Vamos embora, Menino.
− Acordaram-me para nenhuma solvência? Se você tivesse que subsidiar a sua indigência, isto não acontecia.
Fizemos o caminho de regresso calados. Cá para mim, estava ali outra coisa. Embora indeciso, perguntei:
− Tamegão, o teu dente doía mesmo de verdade?
− Nada.
− Então, porquê tudo isto? Foi só porque eu dancei o Hino Nacional?

− Não, foi por causa do respeito que faltou. Luana também é Hino!

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