DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017


TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO


VII

Na brincadeira, Tamegão dizia:

   “ Fruta madura não precisa de açúcar, mulher bonita não precisa de roupa”



− Tamegão, tu conheceste bem o teu pai?
− Conheceu, já morreu muito tempo mas me lembro dele.
− Conta lá, como é que ele era?
− Assim do corpo já me esqueci, mas do recado que me deu, nunca.
− Que recado?
− Quando morreu, passaram cinco dias, eu fui no cemitério para matar minha saudade. Vi meu pai com os braços abertos, como aquele Deus dos brancos, mas não tinha pau nas costas. Era só para me abraçar. Choramos muito os dois.
Calou-se.
− Continua, Tamegão, essa história é bonita.
− O Menino acha mesmo? Então eu vai contar… Meu pai me pediu para não chorar mais, lhe estava a fazer mal.
− Pai, mesmo quando eu chorar não vai haver rio nos meus olhos.
E ele disse:
− É melhor, é melhor.
Quando eu ia embora, meu pai me falou:
− De agora e para sempre você não pode negar mais nos outros o sal que eu te deixei no poço.
Sal, coisa que fazia tanta falta a tanta gente e eu recusava dar.
Para reparar suas faltas, começou a oferecê-lo a quem passava.
Todos se admiraram.
Ora um, ora outro, foram aparecendo os clientes, até a Luana, mulher do Saparalo.
Luana era moça bonita, seus olhos pareciam da cor do mar, seu corpo franzino sustentava uma beleza que ninguém conseguia descrever, viesse quem viesse.
Luana aparecia dia sim, dia não.
− Senhor Tamegão, me dá mais um bocado de sal.
Tamegão não recusava.
Depois todos os dias. Um dia qualquer, de manhã e à tarde.
− Ainda de manhã levou sal e já quer outra vez?
− Comecei a dançar no caminho e o sal se derramou.
Noutro dia que isto se repetiu, Tamegão, antes de ir buscar o sal, ficou calado a olhá-la fixamente.
Ela perguntou:
− Você gosta da minha cara ou está a fazer o quê?
− Estou a rezar.
− Porquê?
− Por causa da tentação. É a carne…
− Carne eu sabe o que é, tentação não.
Tamegão explicou:
− Quando a gente começa a sentir uma coisa diferente no corpo, isso é tentação.
Percebendo, Luana se aproveitou, com maldade:
− Essa carne sou eu?
− Também pode ser você.
Luana apertou ainda mais com ele:
− Então carne já tem, só falta tentação.
− Luana, parece que ouvi o teu filho chorar.
Quando cheguei da escola, ainda Luana lá estava.
− Olá, Luana, estás muito bonita.
− Só teus olhos vêem isso.
− E o Saparalo não vê?
− Esse não precisa de ver, tem sempre carne…
Como não estava dentro da conversa, assustei-me. Seria aquela a palavra que ela queria utilizar?
Luana foi-se embora, bamboleando o seu corpo. Pensei que fazia aquilo para mim. Tamegão sabia que não.
No dia seguinte, Luana fez uma conversa de alto risco, que fez corar a cor negra do Tamegão:
− Hoje eu não vem pedir sal. Só amanhã…
Tamegão revelou alguma tristeza.
− Só amanhã porquê?
− Só amanhã, de noite, porque Saparalo vai trabalhar no comboio que está estragado na linha, até meia-noite.
− Meu Deus!
Tamegão se arrepiou.
Naquela noite Luana hesitou, não porque não desejasse, e muito, ir visitar o Tamegão. Hesitou, porque grandes relâmpagos e faíscas caíam do céu. A noite se transformava em dia.
Mesmo assim, Luana não desistiu. Chovia tudo o que Deus mandava. Colocou um pano grosso sobre as costas, percorreu aquele caminho enlameado e entrou à pressa pela porta da cubata do Tamegão e, nem sabendo porquê, abraçou-o fortemente. Tamegão fez o mesmo. Ficaram assim até se esquecerem do tempo.
Tamegão quebrou o silêncio.

− É este cheiro da chuva no teu corpo moreno que é tentação. Agora já sabe, não sabe Luana?

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