TAMEGÃO
CARLOS NUNES PINTO
X
“ Nem sempre a gente pode ter, mas quando a
gente quer com muita força, a gente tem “
Em Vila Arriaga nada
acontecia.
Dias quentes, noites
quentes, que duravam o dobro do tempo que o tempo das cidades vizinhas.
Ainda por cima, as
autoridades sanitárias debelaram a biliosa. Essas sim, de vez em quando, e não
eram poucas as vezes, davam-nos um funeralzito, onde se bebiam uns copos, se
contavam umas anedotas e se falava de negócios.
Ainda me lembro da D.
Deolinda, mulher do Adolfo e mãe do Armando.
Enquanto velávamos o corpo
da velhota, contaram-se tantas anedotas e bebeu-se tanto vinho, que, cerca das
quatro da manhã, o Armando teve um ataque de riso tão grande, que disse:
− Quem me dera ter outra
mãe para morrer já amanhã!
Certo dia apareceu por ali
um homem de aspecto exótico, tanto no vestir como nos gestos. Usava um casaco
branco de duas grandes rachas atrás, chapéu branco e alto, laço bastante
colorido ao pescoço. Ainda por cima sapatos de tacão alto, para disfarce - pensava ele - da sua baixa estatura. Anunciou que andava por ali para comprar cobras.
Espanto geral na vila.
Comprar cobras? O homem deve estar maluco! Ainda disse mais: que pagaria 100$00
por cada uma!!
Num grupo de três
comerciantes teve de aparecer a conversa.
O meu pai disse:
− O homem deve ser do
circo.
Outro, que era daqueles
que tinha muito respeito pela mulher, senão medo, disse:
− Se calhar são para a
mulher, deve fazer colecção de animais raros.
Oliveira Caluca, que era
um bronco de primeira, disse:
− Cá para mim, o homem
engole é cobras vivas!
− Lá está você! − retorquiu
o meu pai
O Oliveira Caluca só não
asneirava quando escrevia ou lia, porque não sabia fazer nem uma coisa nem
outra.
A verdade é que a notícia
se espalhou depressa.
Os negros logo imaginaram
que bebedeiras apanhariam com o dinheiro das cobras. Só que nunca vi ninguém
com tanto medo delas! Andavam sempre de catana nas mãos para as abaterem assim
que as avistassem. Não era para menos, porque a picada de algumas era mortal.
O assunto estava
complicado.
Posto o problema ao
feiticeiro Tamegão, este ficou em silêncio, cinco, dez, quinze minutos, e por
fim disse:
− Cobras não se compram
nem se vendem, se matam.
- Mas, Tamegão, o homem
precisa de cobras, mas é vivas!
Tamegão reflectiu mais um
pouco e decidiu:
− Pronto, vou arranjar
cobras, vou pedir à cobra-que-fala que vive no buraco da serra.
Sentiu-se um relaxamento
geral.
Agarrou numa mochila feita
de paus que se entrelaçavam, amarrados por cordas tecidas de cascas de árvores
e propunha-se arrancar, quando Tchipiquita o alertou:
− Sem tampa as cobras
fogem.
- Comigo, cobra não foge.
A cobra-que-fala não estranhou o pedido, ainda por cima vindo do Tamegão. Arranjou-lhe uma ninhada.
Todos aguardavam com
ansiedade.
Chegado, Tamegão agarrou
numa cobra de cada vez e foi entregando uma a cada um. As cobras, de tão
quietinhas, pareciam hipnotizadas, ou até enfeitiçadas. O medo e a repulsa de
eram notórios, mas o dinheiro falou mais alto.
Tamegão fez uma
recomendação que caiu que nem uma bomba:
− Todo o dinheiro é para
comprar roupas para as mulheres e para os miúdos.
Ninguém gostou.
Lá se foram as bebedeiras,
mas quando Tamegão falava, falava mesmo.
Já com o dinheiro,
dirigiram-se à primeira loja e compraram, de facto, roupas, como Tamegão ordenara,
só que, como não há bela sem senão, ainda sobraram uns troquitos, que, num
segredo bem guardado, ainda deu para todos se embebedarem.
Tchipiquita, quando chegou
a casa, teve uma surpresa. Viu que a mulher estava feliz. Muito risonha,
anunciou:
− Tchipiquita, eu está
grávida outra vez.
Tchipiquita estancou.
− E agora? Não comprei
roupa para esse miúdo. Tamegão me vai castigar.
Todos os dias definhava.
As febres apareceram, a consciência ficou pesada, o medo tomou conta dele.
Entrou em depressão e optou pelo suicídio. Beijou a mulher, o que não era
hábito, os filhos, e partiu.
Partiu triste até ao
precipício mais alto da serra. A areia branca do fundo tinha-se tornado azul,
de tão fundo que era. Aproximou-se, rezou qualquer coisa rapidamente e, já tinha
dado dois passos, faltando apenas um, quando entre ele e o abismo apareceu o
vulto de um bebé que lhe sorria, nu como o Menino Jesus nas palhinhas. Recuou,
pensando: se o anjo pode andar nu, se o Menino Jesus pode, o meu filho pode
também. Que se lixe o Tamegão!
Tamegão ouviu e calou-se.
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