DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017



CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


                             XVII 



     Tamegão me ensinou: 

“ Quando a gente sabe, não precisa dizer. Quando a gente não sabe, também não precisa “


O Administrador pediu que o comerciante Lauro Gonçalves, um dos mais evoluídos da Vila, se deslocasse à Administração.
− O assunto é este, Sr. Lauro: no próximo dia 26 temos cá a visita do Sr. Governador do Distrito. Preciso que o senhor leia um discurso na sessão solene.
− Sr. Administrador, quem é que escreve o discurso?
− Vou pedir ao Sr. Secretário. Ele escreve bem e, como o que interessa é falar dos problemas da região, com certeza que o fará com gosto. O Sr. Lauro só tem que o ler várias vezes em casa e tudo vai correr bem.
− Sim senhor.
Outra coisa não podia dizer o Sr. Lauro.
O Administrador mandou que chamassem o Seculo Colomboloca José e pediu-lhe o mesmo.
Era dos poucos negros que sabia ler. Ficou inchado.
− Sim, senhor, Sr. Administrador.
Quando ia para casa, lembrou-se de qualquer coisa que o fez tremer.
− Eu vai ler o quê?!
Não dormiu toda a noite. De manhã cedo, foi ter com Tamegão, sua única safa.
Tamegão ouviu-o atentamente e depois perguntou:
− Mas você tem de falar de quê?
− Também não sei.
Tamegão foi a uma gaveta e retirou vários papéis lá de dentro. Fingiu que os lia. Finalmente, disse:
− Você vai ler este.
− Obrigado, me salvou!
Na sessão solene, o aspirante administrativo anunciou o discurso do Sr. Lauro Gonçalves
− Excelentíssimo Senhor Governador do Distrito, Excelentíssima Esposa, meus senhores, minhas senhoras….
No final, ouviram-se bastantes palmas.
O aspirante anunciou:
− Agora, o discurso de uma autoridade tradicional, o Seculo Colomboloca José.
Cumprindo com o que lhe tinham dito, Colomboloca José ofereceu o seu discurso a:
− Excelentíssima Senhora Esposa do Sr. Governador  

                                       “Mulher”
                                        
                                         Mulher
                                         É como cerveja
                                         A gente só bebe
                                         Quando deseja

A mulher do Administrador mudou a posição do rabo na cadeira.

                                         Mulher
                                         Não precisa ter nome
                                         Mulher
                                         É produto que se consome

O Administrador apertou a mão da mulher com muita força.
Dona Bia se voltou a agitar na cadeira − parecia ter bicho-carpinteiro.
                             
                                         Mulher
                                         Não precisa de afecto
                                         Mulher
                                         Para mim é só objecto

O Administrador olhou para o Governador para pedir desculpas, ou até mesmo para mandar retirar dali o Colomboloca. Reparou que o Governador tinha um ligeiro sorriso nos lábios.

                                         Mulher
                                         Se torce na cama
                                         Mulher minha
                                         Nunca reclama

Ouviu-se um grito no salão.
− Ah!,grande Colomboloca !
Tinha sido o Artur, rapaz que começava a beber muito cedo.

                                         Camisa passada
                                         Comida já pronta
                                         Doença curada
                                         É isso que conta

− Estás a ouvir, Júlia? Aprende com esta! – Disse-lhe o marido.
                                        
                                         Mulher inteligente
                                         Não tem que se mostrar
                                         Mulher da gente
                                         Se sabe comportar

− Ouviste, Maria Antónia? Parece que até os pretos já te conhecem! – Outro marido falou  
                                        
                                         Se mulher tem alma
                                         Não sei que isso é
                                         Mulher para mim
                                         É aquilo que é

Todos perceberam que o discurso tinha acabado porque Colomboloca baixou a cabeça em jeito de vénia, como lhe disseram que tinha de fazer.
Ninguém bateu palmas. Colomboloca se agitou. Olhou  para a porta de saída e apeteceu-lhe fugir.
A esposa do Governador, percebendo a intenção, levantou-se com distinção, subiu os degraus do palco e abraçou efusivamente Colomboloca.
Disse-lhe ao ouvido:
−Todos os poetas são assim. A sua alma é diferente da nossa.
Deu-lhe um beijo na face que o deixou a pensar:
− Foi primeira vez que recebo beijo de mulher branca. Só você, Tamegão, sabe fazer estes feitiços.
Romperam no salão palmas que se espalharam pela África inteira.


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