TAMEGÃO
CARLOS NUNES PINTO
XII
O Freitas Capuíta
dizia:
“
Quando Deus me vier ajudar, já devo ter a vida toda lixada “
O meu tio, padeiro da
vila, deve ter sido sempre Freitas desde que nasceu mas, um dia, os negros
começaram a chamar-lhe Freitas Capuíta e, mais tarde ainda, Capuíta chegava.
Os negros da vila tinham
necessidade de apelidar os brancos de acordo com alguma ocorrência, porque
traziam de Portugal nomes muito estranhos que eles depressa esqueciam.
Por exemplo: o meu irmão
Fernando passou a Tchunguerra porque nasceu em plena 2ª Guerra Mundial.
Assim que o branco era
alcunhado, perdia o direito à senhoria. Sr. Freitas passava a ser apenas
Capuíta.
Nenhuma alcunha podia ser
atribuída ao branco sem o conhecimento do Tamegão. O assunto era discutido numa
assembleia, debaixo de uma mulemba, mesmo atrás do meu quintal. A última
palavra era sempre do Tamegão.
O meu tio passou a
“Capuíta” porquê?
Certo dia, veio um grupo
de gente de um quimbo vizinho pedir-lhe ajuda para matar um jimbo que lhes
andava a estragar as colheitas. À noite, o meu tio agarrou na caçadeira e lá
foi. Apareceu um vulto negro e disparou. Apenas feriu o animal. Aterrorizado,
viu à sua frente uma onça que, quando ferida, era implacável. No frente a
frente, meu tio ficou em situação de inferioridade, porque tinha tanta certeza
na sua pontaria que só levou um cartucho.
Vendo o buraco de um
jimbo, atirou-se de cabeça lá para dentro, ficando apenas com as pernas de
fora, a partir dos joelhos. Agitava-as no ar e gritava por socorro, só que os
seus companheiros de caçada já tinham fugido todos. Lá se safou, não sei como!!
Ora, os habitantes negros
da vila construíam um instrumento musical, a puíta, escavando o interior de um
tronco, deixando apenas no centro um cilindro com cerca de três centímetros de
diâmetro. Untavam o cilindro com sebo e, friccionando com as mãos secas,
arrancavam uns sons de alguma musicalidade.
O meu tio, dentro do
buraco do jimbo, fazia lembrar o cilindro da puíta.
Tamegão aceitou a
comparação e decretou:
− Fica mesmo Freitas
Capuíta.
Em dias de missa na vila,
o que acontecia por intervalos de um mês, ou mais, dependendo da
disponibilidade dos padres da cidade vizinha, toda a gente quebrava a rotina.
Capuíta, que benzia sempre
a fornada de pão, não proibia que a mulher fosse à missa, mas fazia
comentários, quase sempre desagradáveis.
− Tu vais à missa desse
Padre Carlos que reza em quimbundo, tu não percebes nada dessa língua, o que é
que vais lá fazer?
− É a fé.
− Então é melhor levares
um frasco de boca larga, pedes ao padre que ponha lá dentro isso de Fé,
guarda-o cá em casa e quando precisares tiras umas colheradas e pronto!
Minha tia não comentava.
Para quê?
A segunda filha deste
casal iniciou a catequese. Durante um almoço, o meu tio perguntou-lhe:
− Já alguma vez viste esse
Deus que te falam na catequese?
− Não – Respondeu a minha
prima.
− Então onde é que ele
está?
− No Céu, na Terra e em
toda a parte.
− Então espreita aí para
debaixo da mesa e vê se o encontras.
Minha prima, com coragem,
respondeu:
− O meu Deus não se
esconde debaixo da mesa como o outro que se escondeu dentro do buraco do jimbo.
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