DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017


TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO


XII



O Freitas Capuíta dizia:

   “ Quando Deus me vier ajudar, já devo ter a vida toda lixada “


O meu tio, padeiro da vila, deve ter sido sempre Freitas desde que nasceu mas, um dia, os negros começaram a chamar-lhe Freitas Capuíta e, mais tarde ainda, Capuíta chegava.
Os negros da vila tinham necessidade de apelidar os brancos de acordo com alguma ocorrência, porque traziam de Portugal nomes muito estranhos que eles depressa esqueciam.
Por exemplo: o meu irmão Fernando passou a Tchunguerra porque nasceu em plena 2ª Guerra Mundial.
Assim que o branco era alcunhado, perdia o direito à senhoria. Sr. Freitas passava a ser apenas Capuíta.
Nenhuma alcunha podia ser atribuída ao branco sem o conhecimento do Tamegão. O assunto era discutido numa assembleia, debaixo de uma mulemba, mesmo atrás do meu quintal. A última palavra era sempre do Tamegão.
O meu tio passou a “Capuíta” porquê?
Certo dia, veio um grupo de gente de um quimbo vizinho pedir-lhe ajuda para matar um jimbo que lhes andava a estragar as colheitas. À noite, o meu tio agarrou na caçadeira e lá foi. Apareceu um vulto negro e disparou. Apenas feriu o animal. Aterrorizado, viu à sua frente uma onça que, quando ferida, era implacável. No frente a frente, meu tio ficou em situação de inferioridade, porque tinha tanta certeza na sua pontaria que só levou um cartucho.
Vendo o buraco de um jimbo, atirou-se de cabeça lá para dentro, ficando apenas com as pernas de fora, a partir dos joelhos. Agitava-as no ar e gritava por socorro, só que os seus companheiros de caçada já tinham fugido todos. Lá se safou, não sei como!!
Ora, os habitantes negros da vila construíam um instrumento musical, a puíta, escavando o interior de um tronco, deixando apenas no centro um cilindro com cerca de três centímetros de diâmetro. Untavam o cilindro com sebo e, friccionando com as mãos secas, arrancavam uns sons de alguma musicalidade.
O meu tio, dentro do buraco do jimbo, fazia lembrar o cilindro da puíta.
Tamegão aceitou a comparação e decretou:
− Fica mesmo Freitas Capuíta.
Em dias de missa na vila, o que acontecia por intervalos de um mês, ou mais, dependendo da disponibilidade dos padres da cidade vizinha, toda a gente quebrava a rotina.
Capuíta, que benzia sempre a fornada de pão, não proibia que a mulher fosse à missa, mas fazia comentários, quase sempre desagradáveis.
− Tu vais à missa desse Padre Carlos que reza em quimbundo, tu não percebes nada dessa língua, o que é que vais lá fazer?
− É a fé.
− Então é melhor levares um frasco de boca larga, pedes ao padre que ponha lá dentro isso de Fé, guarda-o cá em casa e quando precisares tiras umas colheradas e pronto!
Minha tia não comentava. Para quê?
A segunda filha deste casal iniciou a catequese. Durante um almoço, o meu tio perguntou-lhe:
− Já alguma vez viste esse Deus que te falam na catequese?
− Não – Respondeu a minha prima.
− Então onde é que ele está?
− No Céu, na Terra e em toda a parte.
− Então espreita aí para debaixo da mesa e vê se o encontras.
Minha prima, com coragem, respondeu:

− O meu Deus não se esconde debaixo da mesa como o outro que se escondeu dentro do buraco do jimbo.

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