DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 25 de fevereiro de 2017


CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


XVIII

 “ Quando o coração fala, a gente não precisa dizer mais nada “ 


− Só tenho pena de não ver o mar.
− Nunca viste mesmo?
− Só vi nos olhos de Luana.
− Tamegão, você gosta muito de Luana, não é?
− Menino fica calado, Luana está a chegar.
− Então, Luana, bonita como sempre!
− Eu só não gosta dessa blusa que se vê tudo.
− Porquê, Tamegão?
− Por causa dos outros.
− Luana, tu já viste o mar?
− Nunca.
Fiquei a pensar como havia de conseguir mostrar o mar àquelas criaturas.
Falei com o Tio Cardoso. Se ele quisesse, até nos podia levar no comboio, de borla. Afinal, era o revisor.
Consegui. Bendito Tio Cardoso!
Marcámos o dia − sexta-feira próxima.
Lembrei-me: coitada da Luana, nem um fato de banho tem.
− Eu precisa disso para quê?
− Todas as pessoas precisam, se querem nadar no mar.
− Eu aqui nada na cachoeira, mas é nua.
− Eu sei − disse Tamegão − eu já espreitou.
− Já?!
− Muitas vezes!
Telefonei à Júlia.
− Preciso que emprestes um fato de banho para uma amiga minha usar. É só por um dia.
Chegámos a Moçâmedes perto das onze horas da manhã. Lá estava a Júlia à nossa espera, com um fato de banho na sacola.
Vi que estranhou que a minha amiga fosse negra, mas não disse nada, nada mesmo. Levou Luana para casa, para trocar os panos garridos que vestia por um fato de banho branco.
− Meu Deus ! − agora fui eu quem ficou admirado
Tamegão estava sereno.
Na praia, Luana se atirou para a água e nadou, nadou, nadou.
Tamegão tirou os sapatos, arregaçou as calças e instalou-se no rebentamento das ondas.
− Menino, parece que o mar me está a dar beijinhos!
− E está a dar mesmo, os deuses são sempre beijados nos pés.
− Menino, não fala isso alto para o mar não ouvir!
− Porquê?
− Pode descobrir que eu sou feiticeiro. Estes beijinhos me estão a fazer bem!
Luana nadou em nossa direcção. Parecia cansada. Quando encontrou pé, quis levantar-se mas não conseguiu. Nova tentativa e correu para o Tamegão. Abraçou-o, feliz. Afastei-me um pouco, não queria quebrar aquele encantamento.
Quando, disfarçadamente, olhei para eles, vi o sol espelhado nas gotas que Luana tinha trazido do mar, coladas no seu corpo moreno. Também Tamegão as viu.
De mãos dadas, levou-a para a água.
− Luana, essas gotas de Sol tem que se devolver.
Tamegão passou levezinho sua mão no corpo de Luana, arrastando, de cima para baixo, todas as gotas que se iam misturando com as águas do mar.
No comboio de regresso, Luana adormeceu no ombro do Tamegão. Quando acordou do sono, ou talvez ainda ensonada, disse:
− Luana está feliz porque tua mão acariciou o meu corpo inteiro.
Tamegão emudeceu. Só seu pensamento se libertou:

Ontem
Eu e Luana
Ficámos parados no centro da terra.

Dum lado
A maré cheia
quase a chegar ao fundo do infinito

No outro lado
a areia da praia se prolongou
se espalhando no deserto
de terra quente
que o Sol um dia queimou

E foi naquele mar
Que abraçava a areia
Que eu ouvi
Os estalinhos dos beijos

Que Luana mandou para mim.


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