AMÍLCAR CABRAL
LVIII
AMÍLCAR CABRAL – A ALMA E AS CONTRADIÇÕES
Para alguns escritores e jornalistas, Amílcar Cabral foi o maior pensador político africano do seu tempo.
Muitos
intelectuais vindos das colónias interiorizaram o marxismo, muito em voga nas
universidades europeias que frequentavam. Ora, Karl Marx elaborara as suas
teorias a partir do conhecimento da história, da sociologia e da economia das
sociedades europeias industrializadas. A África não entrara nas suas contas.
Compreende-se que os pensadores negros tenham sentido a necessidade de adaptar o
marxismo ao continente africano, em que tanto o proletariado como a burguesia
constituíam minorias sociais.
Cabral
propôs modificações a aspetos fundamentais da teoria marxista-leninista e houve
quem lhe chamasse neomarxista.
A
mais importante das suas reflexões diz respeito à luta de classes como motor da história. Na inexistência desse motor, quase todos os povos africanos eram excluídos dela.
«Será
que a história só começa a partir do momento em que se desencadeia o fenómeno
classe e, consequentemente, a luta de classes?
Responder
pela afirmativa seria situar fora da história todo o período da vida dos
agrupamentos humanos, que vai da descoberta da caça e, posteriormente, da
agricultura nómada e sedentária à criação do gado e à apropriação privada da
terra. Mas seria também — o que nos recusamos a aceitar — considerar que vários
agrupamentos humanos da África, Ásia e América Latina viviam sem história ou
fora da história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo.»
A intrusão colonial em
África interrompera o processo de desenvolvimento natural dos povos indígenas. Nem
Amílcar, nem qualquer teórico da Negritude, se preocupou em quantificar o tempo
de evolução que o esperava: séculos ou milénios.
«O nível das forças
produtivas, determinante essencial do conteúdo e da forma da luta de classes, é
a verdadeira e a permanente força motora da história.»
As
trocas culturais tiveram muitas vezes custos sangrentos, mas conduziram a
Humanidade para diante. Os países colocados nas charneiras das civilizações
chocaram culturas novas. Portugal estava no extremo da Europa. As ideias
levavam anos a atravessar a Ibéria, quase sempre transportadas por povos que a história
tornara nómadas. Ao contrário, o norte de África entrou cedo na rota das
civilizações. A sul, ficavam, primeiro, o deserto e, depois, a inóspita zona
equatorial. Durante muitos séculos, uma parte importante da Península Ibérica
foi colonizada por africanos.
Depois,
a história seguiu o seu curso. Acabaram por ser os portugueses, que não tinham
outro horizonte além do mar, os primeiros europeus a fazer chegar ao continente
negro novas ideias e novos grilhões.
O
colonialismo erodiu as culturas étnicas, mas só o fez muito devagar, começando
pela população urbanizada. Os camponeses, mais distantes do colono e menos
influenciados por ele, continuaram a ser os guardiões da tradição e do saber
antigo. Os indígenas urbanos, muitas vezes descendentes de escravos que não
chegaram a ser exportados e ficaram ao serviço dos patrões, assimilaram mais
cedo a cultura europeia.
Um
negro “assimilado” nem era de cá nem de lá e, às tantas, já não sabia se
pertencia ao lado dos brancos ou o ao dos pretos. O apelo do modo de vida dos
brancos era forte, mas os patrões não o aceitavam plenamente entre eles. Tratavam
melhor a minoria que sabia falar a língua europeia e adotara o modo de vestir e
o comportamento dos brancos, mas a cor da pele continuava bem à vista. Os
outros negros desconfiavam dessa gente desenraizada.
Cabral
não escreveu isso mas terá entendido que, a dada altura, todos, ou quase todos
os negros assimilados desejaram ser brancos. Foi uma realidade que Frantz Fanon
denunciou como intimamente fraturante.
Em
termos históricos, esse fenómeno só atingiu um número importante de negros durante
menos de um século. Antes da Conferência de Berlim e da ocupação efetiva do
interior dos territórios, os contactos entre as raças davam-se apenas nas
feitorias africanas do litoral, sendo muito mais limitados.
Alguns dos filhos das classes médias que iam nascendo nas colónias prosseguiam os estudos na antiga Metrópole. Conheceram o movimento da Negritude. A Negritude permitiu aos intelectuais negros o reforço
do amor-próprio através da reafricanização das mentalidades.
Foi
a essa pequena burguesia, a este grupo de assimilados, que coube o papel histórico
de liderar as lutas de independência das colónias europeias em África. Boa
parte dos quadros dirigentes do PAIGC, incluindo o próprio secretário-geral,
provinha dela. O
peso do pensamento teórico não deixava de assustar Amílcar Cabral. Os vícios da
pequena burguesia tinham sido proclamados bem alto pela literatura marxista. A conclusão de Amílcar foi radical:
«Os
pequenos burgueses que construíram a sociedade nova devem suicidar-se como
classe política para se integrarem verdadeiramente no meio do povo.»
A
elite colonial que assumia a luta revolucionária devia renunciar aos seus
privilégios de classe e à cultura assimilada à portugalidade. Era a utopia no
seu melhor. Cabral não tinha razão. Até ver, o marxismo falhou em África.
Se
alguém tiver necessidade de catalogar a ideologia de Cabral deverá fazê-lo de
forma abrangente. O pensamento de Cabral tem tonalidades marxista, democrática
e africana negra. Para Amílcar Cabral, a libertação nacional era também um ato de
cultura.
Amílcar
Cabral foi um homem afável, um teórico com sentido prático que completou a
formação intelectual vivendo. Defendeu, mais do que outros, que a guerra de
libertação só tinha valor se a provação infligida ao povo servisse para lançar
os alicerces de uma nova nacionalidade.
O
problema era que, mais do que outros, precisava dela. Cabral renegou a Portugalidade, que se opunha à Negritude. A
questão é que as opções dum homem criam uma realidade nova, mas não apagam de
todo a anterior. Não é possível amputar um membro nem lançar for metade do
coração. Amílcar Cabral combateu o colonialismo. Fê-lo denodadamente, durante uma década, sem nunca deixar de todo de ser português.
Sem comentários:
Enviar um comentário