AMÍLCAR CABRAL
LII
PEDRO PIRES, UM AFRICANO PREOCUPADO
LIBERTOU A NAÇÃO CONSTRUIU O ESTADO CONSOLIDOU A
DEMOCRACIA
Pedro
Pires foi galardoado com o Prémio Mo Ibrahim, uma distinção pela boa governação
de Cabo Verde, que ele desenvolveu, como primeiro-ministro entre 1975 e 1991 e
como Presidente da República de 2001 a 2011.
" O
Comité do Prémio ficou impressionado pela visão do Presidente Pedro Pires em
transformar Cabo Verde num modelo de democracia, estabilidade e crescente
prosperidade", considerou o presidente do júri, Salim Ahmed Salim.
Tenho a
honra de me afirmar amigo deste homem notável e não posso deixar de me sentir
orgulhoso por, finalmente, a comunidade internacional reconhecer os seus
méritos excepcionais. Este reconhecimento a nível internacional deve tam bém
ter enchido de orgulho os cabo-verdianos, mesmo aqueles que durante muito tempo
o acusaram de coisas incríveis.
Pessoalmente
acrescento a este contentamente o facto de ter produzido este texto muito tempo
antes da atribuição do prémio e por constatar que as suas linhas gerais
coincidem com as que foram adoptadas pelo júri do prémio Mo Ibrahim.
Leston Bandeira
Pedro
Pires, cujo segundo e último mandato como presidente da República de Cabo Verde
terminou em Setembro de 2011, anunciou em Agosto desse ano a intenção de iniciar de imediato a
redacção das suas memórias . Citando o historiador Joseph Ki-Zerbo (1922-2006)
, “enquanto os leões não tiverem os seus próprios historiadores, as histórias
de caça continuarão a glorificar os caçadores”, o agora ex-presidente, em
entrevista à Agência Lusa, explicou o seu respeito pela História e a
necessidade de não haver apenas uma versão, permitindo, desse modo, aos
historiadores uma informação que contemple todos os lados da intervenção
histórica.
Este
ano, na passagem do 36º aniversário da Independência do país, a cujas
comemorações presidiu pela última vez, recordou “o valor da obra que realizámos
de 5 de Julho de 1975 até aos dias de hoje. Este percurso de esperança, de
perseverança e de autoconfiança deve continuar a inspirar-nos e a ser o suporte
moral que nos assiste na concepção e na execução das pesadas e complexas
tarefas que o futuro nos reserva”
Há
uma tentativa de “ofuscar o gesto histórico” que foi o dos jovens africanos que
fizeram a luta pela libertação da África Lusófona. “Se nós não tivéssemos
lutado, se Angola e Moçambique, especialmente, não tivessem resistido, a África
do Sul seria o que é hoje? Nelson Mandela seria tão elogiado, tão cantado hoje,
se nós não tivéssemos lutado?” perguntou Pedro Pires, de quem se fica agora à
espera de revelações importantes acerca dos processos históricos em que
participou desde a sua juventude. Para os africanos será uma oportunidade de
aprendizagem com um homem considerado hoje um verdadeiro SÁBIO.
Ao Encontro de Cabral e da Luta
PEDRO de Verona Rodrigues PIRES nasceu a
29 de Abril de 1934, no Concelho de S. Filipe, Ilha do Fogo, Cabo Verde, numa
família de proprietários. Assistiu ao eclodir das grandes fomes de Cabo Verde,
na década de 40 do século XX, provocadas pelas prolongadas secas no Arquipélago
e pela pouca ou nenhuma atenção que as autoridades coloniais portuguesas
prestavam à então mais pobre colónia do império.
Pedro
Pires terminou os estudos secundário no Liceu de Gil Eanes, na Cidade do
Mindelo, Ilha de S. Vicente, e seguiu, em 1956, para Lisboa onde se matriculou
na Faculdade de Ciências.
Tendo
sido chamado a prestar o serviço militar obrigatório na Força Aérea Portuguesa,
em 29 de Junho de 1961, juntou-se a um grupo de jovens nacionalistas africanos
e fugiu do país. Este grupo foi detido em Espanha, mas pressões políticas
exercidas pelos países que já naquela data apoiavam a luta anti-colonial, foram
libertos e conseguiram chegar a Paris. Daí segue para o Ghana onde se encontra
com Amílcar Cabral , em seguida vai para a Guiné-Conakry, sede do Secretariado
Geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Com a fundação da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias
Portuguesas (CONCP), em Marrocos, parte para aquela capital para representar o
PAIGC junto do secretariado da organização.
De
1962 a 1965 trabalha no Senegal e em França em acções de mobilização de
combatentes e, a partir deste último ano até 1968, integra o primeiro núcleo de
combatentes cabo-verdianos a receber formação militar em Cuba e na ex-URSS, com
o objectivo de iniciarem a luta armada em território cabo-verdiano.
Este
projecto não chegou a ser concretizado por razões que, seguramente, Pedro Pires
explicitará melhor do que tem sido habitual, nas suas memórias. Nesse texto,
aguardado com grande expectativa, não deixará de dar a sua versão da morte de Amílcar
Cabral, ocorrida a 20 de Janeiro de 1973, ano em que Pires é escolhido para
presidir à Comissão Nacional para Cabo Verde, como membro do Comité Executivo
da Luta e do Concelho de Guerra.
Negociador hábil e primeiro chefe de Governo
Além
destas funções políticas, no campo militar foi nomeado Comandante de Região
Militar, qualidade que detinha em 1974, quando em Portugal ocorre o 25 de
Abril, na sequência do qual o governo de Lisboa reconhece a Independência da
Guiné Bissau, declarada unilateralmente em 24 de Setembro de 1973, ao mesmo
tempo que aceita negociar a concessão da Independência a Cabo Verde. Estas
negociações são chefiadas, pela parte cabo-verdiana, por Pedro Pires, que
consegue um acordo, assinado em Londres a 19 Dezembro de 1974, segundo o qual a
Independência de Cabo Verde teria lugar a 5 de Julho de 1975. Um mês antes é
eleito deputado e escolhido para chefiar o Primeiro Governo Independente de
Cabo Verde.
Durante
mais de 15 anos (Julho de 1975 a Dezembro de 1991) Pedro Pires desenvolveu um
plano de governação moderado com o fito de “garantir futuras parcerias no
âmbito internacional”. Para que tal pensamento ficasse claro entre os membros
dirigentes do PAIGC, dois dias antes do 5 de Julho de 1975 reuniu-se com a
direcção do partido para defender que “este não podia ser um partido
marxista-leninista”.
Todavia,
as dificuldades para transformar o sonho de um país independente numa realidade
que concretizasse as necessidades de um Povo no interior do qual ainda se
morria de fome, eram muito maiores do que as imaginadas pelos homens que
assumiram o peso de governar um país “impossível”, nos termos do relatório dos
técnicos do Banco Mundial que visitaram Cabo Verde pela primeira vez em
1975/76.
Pires
não aceitou a sentença do Banco Mundial com cuja delegação debateu calorosa e
habilidosamente as conclusões, acabando por sugerir um relatório diferente:
“digam pelo menos que há alguma possibilidade de reabilitação deste país”.
Com
esta meia sentença de morte, Pedro Pires lançou o seu governo em direcção à
cooperação internacional, aproveitando o grande prestígio granjeado pelo PAIGC
durante a guerra anti-colonial na Guiné Bissau, junto das Nações Unidas e de
países como a Holanda e a Suécia. Foram “as relações internacionais do PAIGC
que permitem a afirmação de Cabo Verde como país independente” e, quando os
seus ministros chegavam das suas viagens ao estrangeiro e se queixavam de que
ninguém os conhecia, Pedro Pires explicava as razões e vaticinava: “um dia nós
seremos um exemplo”.
Ruptura Com Bissau – PAICV
Entretanto,
os dirigentes do PAIGC estavam divididos pela governação de dois países, a
Guiné Bissau e Cabo Verde e, quando, em 14 de Novembro de 1980, Nino Vieira,
então Comissário Principal do governo de Bissau deu um golpe de estado contra o
primeiro presidente, Luís Cabral, irmão de Amílcar, os cabo-verdianos tiveram
que abandonar a Guiné – muitos deles fugindo mesmo a uma perseguição racista
que resultou do golpe de estado.
Na
sequência destes acontecimentos, o braço cabo-verdiano do PAIGC fundou o PAICV,
uma ruptura considerada pelo próprio Pedro Pires, em Julho de 2005 como uma
decisão acertada, porque também deu “satisfação a alguns cabo-verdianos que não
viam com bons olhos a unidade com Bissau sob o lema um partido dois estados”.
Foi,
de resto, “ a partir desse momento que se começou a pensar no desenvolvimento
de Cabo Verde através da liberalização da sua economia e abertura ao Mundo” –
acrescentou Pires na mesma oportunidade (comemoração dos trinta anos de
Independência).
Foi
também a partir desta ruptura que os dirigentes cabo-verdianos começaram
verdadeiramente a mobilizar o Povo das Ilhas para a recuperação do seu próprio
ambiente. O programa de reflorestação atingiu mais de vinte milhões de árvores
nos primeiros dez anos de Independência e as obras de engenharia agrícola
levaram à construção de quilómetros e quilómetros de socalcos, destinados a
segurar as águas das chuvas e impedir, dessa maneira, que as terras aráveis
fossem para o mar.
Neste
período, apesar de uma seca prolongada, foi possível multiplicar por mais de
três as áreas agrícolas de regadio.
Estes
projectos foram interrompidos durante os dois mandatos do MpD (Movimento para a
Democracia), o que o PAICV de Pedro Pires viu com enorme desagrado, já que o
país abandonou o seu grande projecto de “ser verde”, como queria Cabral.
Não às Alianças, Sim à Diplomacia
Esta
abertura ao Mundo, todavia, foi sendo desenvolvida com algumas condições. Por
exemplo, o governo de Pedro Pires não aceitava a distribuição gratuita da ajuda
alimentar internacional pelas populações. Os géneros eram introduzidos no
circuito comercial e o produto da sua venda constituía-se num “Fundo de
Reconstrução Nacional” que pagava as obras públicas estruturantes da vida do
país, tal como estradas por todas as Ilhas, utilizando mão de obra intensiva.
Cada “frente de trabalho” devia ter emprego para pelo menos um membro de cada
família da região onde se realizava a obra. E assim, alem de se reconstruir o
país, evitava-se a criação de mais um povo assistido e dependente.
Esta
política foi concretizada e avalizada, inclusivé pelos USA, que faziam muita
questão na gratuitidade da ajuda alimentar, durante os trabalhos da Primeira
Mesa Redonda dos Parceiros do Desenvolvimento de Cabo Verde, designação que
substituiu a consagrada expressão “doadores”.
Esta
reunião, realizada de 21 a 23 de Junho de 1982, contou com a presença de
representantes de 22 países, 23 organizações internacionais e oito organizações
não governamentais (ONG).
Pedro
Pires aproveitou a oportunidade para defender a necessidade do apoio ao
desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo e, “particularmente daqueles que
tinham alcançado recentemente a Independência”. Considerou, na altura, tal
apoio como “condição primordial ao exercício da soberania”.
No
discurso de abertura, salientou que a via de desenvolvimento escolhida pelo seu
país implicava igualmente “o respeito pelas tradições e pelas aspirações do
povo cabo-verdiano, a favor da independência, da dignidade, da paz e da justiça
social”.
É
por isso – enfatizou - que “a despeito de todas as dificuldades que Cabo Verde
possa encontrar para concretizar as suas metas de desenvolvimento económico, o
governo manterá sem falta a sua recusa em implicar Cabo Verde nos antagonismos
militares que dividem o Mundo”.
Na
primeira grande reunião de carácter internacional, o chefe do governo da Praia
aproveitava para se definir como um país neutro acerca das disputas Leste/Oeste
e nessa linha, embora criticasse o regime do apartheid sul-africano, nunca
impediu que os aviões da South African Airways escalassem a Ilha do Sal, onde,
de resto, as tripulações faziam os descansos e respectivas rendições. A Pousada
“Morabeza” era o hotel da SAA.
Abertura do Regime, a Caminho da Democracia
Enquanto,
no plano externo Pedro Pires se distanciava de alianças manietadoras, no plano
interno faltava-lhe cumprir a sua intenção de abrir a política à participação
popular e foi definindo o partido por forma a contrariar os militantes que o
viam não como um partido marxista-leninista, mas lá próximo. Será curioso ler
as memórias de Pedro Pires a este propósito, já que a luta interna se acicatou
com um seu discurso, na abertura do segundo encontro dos ministro da Justiça de
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, em Novembro
de 1983 e em que preveniu que “o exercício absoluto do poder ameaça o futuro
dos regimes”.
Perante
uma assembleia mais ou menos surpreendida, Pires disse que “ a História recente
de África tem-nos mostrado que o exercício absoluto do poder, traduzido na
imposição de modelos não alicerçados no consenso social não garantem nem a paz
social, nem a sobrevivência dos regimes”. Para o então primeiro-ministro o
Direito era “um motor de transformação social”.
“A
África dos golpes de estado, das permanentes convulsões sociais, não terá como
fraqueza primeira a inexistência de estados institucionalizados, de um poder
realmente enraizado no povo e de um sistema de normas e garantias assumidas
conscientemente pela nação?”- perguntou.
Ao
mesmo tempo que, claramente, indicava o caminho da abertura política como o
próximo passo, Pedro Pires levou a diplomacia do seu pequeno país ao
“atrevimento” de organizar encontros entre Sul-africanos e Angolanos com o
objectivo de promover a paz na África Austral. A estes interlocutores
juntaram-se, depois, americanos e representantes da SWAPO.
Foi
em Cabo Verde, primeiro na Ilha do Sal e posteriormente em S. Vicente
(Mindelo), com a sua orientação “discreta” – segundo fontes diplomáticas da
época (1982/83) – que se construíram os primeiros passos para a solução da
guerra que envolvia Angola a República da África do Sul e Cuba.
Cabo
Verde desempenhou este papel, primeiro em segredo total e, posteriormente, com
a discrição possível, admitindo, pela primeira vez, em Janeiro de 1983 “ a
disposição de tudo fazer para propiciar condições ao desenvolvimento do diálogo
que resolva conflitos abertos no Continente Africano”.
Esta
disposição foi mal entendida mesmo por Cuba, cujo vice-presidente, Juan de
Almeida Bosque, esteve na Cidade da Praia pressionando o governo de Pedro
Pires, logo a seguir ao primeiro encontro entre angolanos e americanos, no
sentido de desistir da iniciativa.
Ainda
em 1983, durante um período de férias em Cuba, durante o qual se encontrou
muitas vezes, informalmente, com Fidel de Castro, Pires disse ao líder cubano
que “o sistema de partido único não fazia sentido em África”.
Os
Estados Unidos, por sua vez, exerceram pressão sobre a República da África do
Sul com a mesma intenção: recusa de negociações directas com Angola.
O
Mundo, todavia, não deixou de reconhecer o papel de Cabo Verde, que daí para a
frente, ficou conhecido como um “pequeno país com uma grande diplomacia”, ainda
que tal ideia não agradasse aos países considerados como “grandes potências
internacionais”.
Em
simultâneo com esta movimentação diplomática e muitos anos antes da divulgação
da Perestroika na URSS, era visível, por parte de Pedro Pires, a intenção de
abrir o regime com o objectivo de terminar com o partido único. O discurso de Pedro
Pires naquele Novembro de 1983 deu origem a um movimento de discussões
interessantes acerca dos direitos humanos. Numa dessas discussões, transmitida
em directo pela Rádio participou Carlos Veiga, que mais tarde viria a fundar o
MpD e, por essa via, chegar ao poder em 1991.
Antes
destes sinais de abertura, a oposição cabo-verdiana, primeiro ao PAIGC e depois
ao PAICV passava sobretudo pela Igreja Católica, que patrocinava um jornal, o
“Terra Nova”, cuja publicação era tolerada pelo regime, e pelos proprietários
rurais absentistas, que pretendiam continuar com o sistema de rendeiros. Estes
organizaram a 31 de Agosto de 1981, em Santo Antão, um protesto de que se falou
durante muito tempo, mas que acabou com a condenação de um individuo por um
Tribunal Militar, outra razão para que grupos de intelectuais, nomeadamente
juristas, manifestassem o seu desacordo.
Primeiras Eleições Livres – a Derrota
O
descontentamento dizia sobretudo respeito ao facto de a comunicação social ser
tutelada pelo Estado, que, por sua vez, recebia indicações do partido. Pedro
Pires fez algumas tentativas para abrir o jornal “Voz di Povo” à sociedade, bem
como a Rádio oficial, mas a estrutura criada era insusceptível de mudanças. Só
a ruptura seria eficaz.
A
oposição, que entretanto se foi organizando, passou a recorrer a uma espécie de
comunicação social clandestina, produzindo panfletos anónimos em que caluniava
os ministros, os principais dirigentes políticos e a população começou a
impacientar-se e a desejar a tal abertura política que só acontece em Fevereiro
de 1990, quando, no IV Congresso do PAICV, Pedro Pires, ao mesmo tempo que é
eleito à liderança, substituindo Aristides Pereira, anuncia a abertura do país
ao pluralismo político.
Em
Janeiro de 1991 realizam-se as primeiras eleições livres em Cabo Verde e o
PAICV é derrotado pelo MpD.
O
então primeiro-ministro, a quem os panfletos anónimos acusavam da corrupção
mais ignominiosa, tem que ir viver para casa da mãe – não tinha casa própria,
nem carro – .Os seus conterrâneos do Fogo, emigrados nos USA, ofereceram-lhe
um.
Pedro
Pires é eleito deputado pelo círculo eleitoral da Praia e, ainda nesse ano, no
V Congresso do PAICV volta a ser eleito Secretário Geral, cargo que perde para
José Maria Neves, actual Primeiro-ministro, em 1993. Todavia em Setembro de
1997 volta à liderança do partido e leva a peito a sua recuperação. Volta a
viajar pela Europa; passa por Lisboa, sozinho, e hospeda-se em hotéis modestos;
mobiliza os apoios necessários para que o PAICV ganhe as eleições autárquicas
em 2000.
O Regresso Vitorioso
Nesse
ano decide afastar-se da vida partidária activa e em Setembro anuncia a
intenção de se candidatar à Presidência da República nas eleições de Fevereiro
de 2001, onde vence Carlos Veiga, na segunda volta, com uma diferença de apenas
12 votos. O partido do seu adversário já havia perdido a maioria parlamentar e,
por conseguinte, o poder, nas eleições legislativas de Janeiro desse mesmo ano.
Pedro
Pires ganha as eleições e tem um governo do PAICV, chefiado pelo jovem que o
havia derrotado na disputa partidária em 1993, José Maria Neves. As diferenças
entre os dois são, todavia, apenas geracionais. José Maria é um produto do
PAICV, enquanto construtor da sociedade cabo-verdiana, que o Banco Mundial
considerou em 1975/76 como um “país impossível”. José Maria Neves foi adjunto
de Renato Cardoso, o homem que iniciou a reestruturação da administração
pública de Cabo Verde para a transformar num motor de progresso.
As
relações entre os dois homens não terão sido as mais amistosas, mas, do ponto
de vista institucional, José Maria teve sempre o apoio de Pedro Pires. Por
exemplo, quando em Março de 2002 o Presidente da República promulgou o
Orçamento Geral do Estado (OGE) contra toda a oposição parlamentar que
argumentava com a necessidade de uma maioria qualificada para a sua aprovação
na Assembleia Nacional (AN). Ora o PAICV tinha apenas uma maioria simples.
Pedro Pires não hesitou, “mesmo correndo o risco de ser mal compreendido”.
Para
ele, o essencial era que o Governo pudesse cumprir os seus compromissos e,
entretanto, defendia alterações na Constituição que resolvessem, no futuro,
aquele paradoxo constitucional.
Apesar
desta colaboração, que irritou a oposição, já que perdeu uma oportunidade de
colocar o Governo contra o Presidente da República, Pedro Pires não se demitiu
das suas funções e, no mesmo mês, em que promulgou o OGE (Março de 2002) fez
uma análise às Forças Armadas e defendeu a sua reforma, “tendo em conta os
novos conteúdos que conceitos como a defesa e segurança adquiriram nos tempos
modernos”.
Nesse
mesmo mês dá posse ao governo remodelado elogiando a actuação do anterior, por
ter sabido “conter a tentação da busca da popularidade fácil, enveredando por
medidas nem sempre populares, mas que se impunham”.
Outro Sonho : a Nação Global
Ainda
nesse ano (Abril) durante a realização do III Congresso de Quadros
Cabo-verdianos na Diáspora, não deixou de teorizar sobre a natureza da condição
da nacionalidade cabo-verdiana: “ a nação cabo-verdiana tem de encarar de
frente a sua natureza «diasporizada» e assumir a dispersão pelos quatro cantos
do Mundo como a sua verdadeira arquitectura. Nesse mesmo dia propôs o
levantamento de um monumento ao “emigrante anónimo” e chamou a atenção dos
quadros presentes no Congresso para a necessidade de não perder para a
caboverdianidade os membros da segunda geração de emigrantes.
A
5 de Julho desse mesmo ano concretiza de forma objectiva a sua preocupação com
a diáspora e vai comemorar a data da Independência Nacional aos Estados Unidos,
com um programa especialmente dedicado às comunidades cabo-verdianas, embora –
como sempre fez – não deixasse de aproveitar a oportunidade para se encontrar
com individualidades norte-americanas, sobretudo ligadas aos apoios económicos
a países como Cabo Verde.
Notoriamente
houve uma estratégia concertada entre o Governo e a Presidência da República,
já que José Maria Neves passou o 5 de Julho em Lisboa, junto das comunidades
cabo-verdianas emigradas em Portugal.
À
partida para os Estados Unidos, Pedro Pires disse aos jornalistas que ia “levar
uma mensagem de caboverdianidade e homenagear e incentivar aqueles que sempre contribuíram
para o desenvolvimento do país e para o bem estar de milhares dos seus
familiares e amigos”. É a ideia na “Nação Glogal” que vai fazendo o seu
caminho.
E,
por isso, não pode deixar de cuidar dos interesses do Estado- Arquipélago e em
Junho de 2002 discute com o presidente da Mauritânia, Maaouia Ould Sid Ahmed
Taya, as fronteiras marítimas comuns. Na mesma altura assina um acordo aéreo
que permite “às companhias de ambos os países voarem nos respectivos espaços
aéreos sem muitas restrições e, além disso, transportar passageiros e carga
para o espaço de uma e de outra e daí para países terceiros”.
Ainda
em Junho, durante as comemorações do “Dia do Ambiente” volta a lembrar Amílcar
Cabral, “agrónomo de profissão” e que sempre foi guiado pela “utopia de
restaurar ecologicamente o Arquipélago e de o fazer verdadeiramente verde,
honrando-lhe o nome”.
Ora
dentro, ora fora, Pedro Pires não deixa de acompanhar o Mundo e no ano de 2002,
no dia de África saúda a restauração da paz em Angola, para a qual tinha
contribuído na década de oitenta do sec. XX. Nessa saudação não se esquece de
recomendar que Angola “tem necessidade de um período de transição para a
resolução dos problemas humanitários e a criação de um clima de confiança entre
os vários actores políticos”.
Antes,
em Abril, durante a sua primeira visita como chefe de estado a Portugal,
defende, em Lisboa a introdução de currículos escolares sobre a cultura e
história dos estados membros da CPLP, “para que a CPLP ande mais depressa”.
Um Africano Optimista mas Preocupado
O
seu olhar não se fica, contudo, apenas pelos seus parceiros de língua e em
Agosto de 2003 acha “prematura” a realização de eleições na Libéria “já em
Outubro”, explicando que os liberianos precisam, “de um período de transição de
pelo menos de dois anos”.
O
exemplo da Libéria e outros dão-lhe força para no dia da comemoração do 28º
aniversário da Independência do seu país afirmar que “em 28 anos mudámos
completamente a face do nosso país” e assinala a “forma cívica” como se fizeram
“as transições políticas em 1991 e em 2001.
Antes,
em S. Tomé, já tinha chamado a atenção dos seus “irmãos” para o facto de “a
estabilidade governativa e coesão social, bem como a governação capaz,
constituem variáveis cruciais da equação da consolidação do regime
democrático”.
Todavia,
não se ficava pelos conselhos aos outros. Na sua terra, a 1 de Março desse
terceiro ano como presidente, convocou extraordinariamente a Assembleia
Nacional para apelar “à contenção dos principais partidos políticos”,
envolvidos em acusações mútuas de comportamentos fraudulentos em eleições
passadas, na expectativa das autárquicas que se avizinhavam.
Em
Dezembro, na saudação de fim de ano, lembra que “ a consolidação do regime
democrático” implica “ a tradição de que as instituições realizem os seus fins
e cumpram integralmente os mandatos para os quais foram eleitos”.
“A
virtude dos cidadãos é o fundamento de uma boa Republica” – acrescentou - e
nesta altura alguém se lembrou das suas preocupações de Outubro de 2002 acerca
da qualidade da democracia: “tem sido mais de partidos e menos de cidadãos”.
Diplomacia para o Futuro
Em
2004 dois acontecimentos internacionais marcam a presidência de Pedro Pires:
pela primeira vez, depois de muitos anos de recusas, aceita participar na
Cimeira da Organização da Francofonia (OIF) em Ouagadougou, capital do Burkina
Faso.
Em
Abril faz uma viagem relâmpago à Guiné Bissau para se inteirar da situação e no
regresso faz a afirmação que há muito quereria proferir: ”não sou só amigo da
Guiné Bissau, sinto-me guineense também. A Guiné é a minha segunda pátria”.
Em
Janeiro de 2005, Pedro Pires volta a insistir na “garantia de uma maior
eficiência das instituições do Estado de Direito, dotá-las de normas que
garantam estabilidade, melhor governabilidade e removam factores geradores de
bloqueios”.
Em
Fevereiro defende a participação do Zimbabué na Cimeira União Europeia-África,
a realizar em Lisboa. ”Por princípio” é contra o isolamento.
O
Pedro Pires diplomata reaparece em força em Abril deste ano e, em Washington
volta a discutir cooperação militar com os USA e a NATO, ao mesmo tempo que
joga para a mesa das negociações a ajuda norte-americana através da “Conta do
Depósito Milénio”, ao abrigo da qual Cabo Verde passa de “PMA” (País Menos
Avançado) para País de Desenvolvimento Médio (PDM), o que determina mais
dificuldades na obtenção de ajuda externa.
Nessa
mesma altura – Abril de 2005 – discute o Exercício Naval da NATO, marcado para
2006 nas águas territoriais de Cabo Verde e o treino de forças especiais
cabo-verdianas por unidades de fuzileiros navais dos USA.
Em
Julho, no habitual discurso de comemoração da Independência – os 30 anos –
Pedro Pires condenou “a negligência face ao trabalho e a indiferença face ao
bem público”, mas não deixa de apelar ao orgulho cabo-verdiano: “Cabo Verde
ganhou a Independência e afirmou-se como estado credível” (estaria a pensar no
primeiro relatório do Banco Mundial…).
Estado de Direito, Um Apelo Permanente
Entretanto,
o desenvolvimento do país em sectores importantes começa a levantar problemas
novos e o Presidente Pires, durante uma visita à Universidade de Coimbra
(Portugal), em Setembro, onde vai solicitar ajuda para a instalação da
Universidade Pública de Cabo Verde, é confrontado com uma série de
reivindicações de estudantes cabo-verdianos ligadas às dificuldades de
sobrevivência sem apoios e à incerteza de trabalho no país aonde desejam
regressar.
“É
muito mais fácil formar pessoas do que criar emprego”, desabafa, acrescentando
que “o Estado Cabo-verdiano tem reforçado a aposta na educação a uma velocidade
que não é acompanhada pelo desenvolvimento económico”.
Recandidatura e Nova Vitória
Já
na Cidade da Praia, na abertura da X Conferência dos Ministros da Justiça da
Comunidade de Países de Língua Ofial Portuguesa (CPLP), diz que “os tribunais
independentes são o aliado moral dos Estados de Direito”. Esta é a sua última
intervenção pública antes de anunciar a sua recandidatura ao cargo de
Presidente da República. Em Dezembro de 2005 faz o anúncio, afirmando que o seu
nome “projecta uma imagem de honestidade” para um projecto de “credibilidade e
desenvolvimento”, iniciado em 2001. Evoca igualmente a sua condição de
“combatente anti-colonial”, a sua experiência como primeiro–ministro durante 16
anos e o seu contributo durante os últimos cinco anos como Presidente da
República. Classifica-se a si próprio como “um homem de bom senso e construtor
de consensos”.
A
sua recandidatura, de novo contra Carlos Veiga, sai vitoriosa, desta vez por
mais 3.500 votos e a sua missão de presidente defensor do estado de direito, da
necessidade de África se entender sem necessitar de terceiros, bem como a
construção de uma noção de caboverdianidade que abarque o Mundo tem mais cinco
anos à frente. Esquece as habituais acusações de fraudes eleitorais e em Maio
de 2006 está presente na IV Conferência de Tóquio sobre o Desenvolvimento em
África.
Para
ele, esta preocupação do Mundo com o desenvolvimento africano significa que
África “está a ganhar visibilidade e interesse no plano internacional”, um
continente “até há pouco tempo condenado”.
Todavia,
não perde de vista outras realidades, outros possíveis aliados e no mês
anterior recebe o Presidente do Governo Regional dos Açores, Carlos César, que
visitou Cabo Verde acompanhado de uma comitiva de empresários e a quem diz que
é necessário “desenvolver as relações com os Açores para uma vertente
económica”.
Movimentos Migratórios Ilegais, Outra Preocupação
Ainda
em Abril volta-se, de novo para a diáspora, cujos quadros se reúnem no seu IV
Congresso. Mais uma vez apela ao orgulho da caboverdianidade, explicando que o
PIB per capita, em três anos multiplicou por sete, passando de 200 dólares para
cerca de 1.500. Todavia, para ele, a “cultura é o primeiro factor de união dos
cabo-verdianos espalhados pelo Mundo, a manutenção do cimento unificador dos
cabo-verdianos” e exprime o seu “grande apreço pela forma empenhada como as
comunidades cabo-verdianas exercem o seu direito de cidadania nas eleições, um
dos actos de maior significado na vida de um país”.
Em
Junho recusa participar na reunião Cimeira da Comunidade Económica de Estados
da África Ocidental (CEDEAO) porque as propostas de Cabo Verde para incluir na
agenda a discussão da emigração ilegal não foi considerada.
Mas,
em Julho, na VII Cimeira da União Africana (UA), realizada em Banjul, na
Gâmbia, é criado um Centro de Estudos e Pesquisa sobre Migrações em África, o
que, segundo Pedro Pires permitirá “um conhecimento mais profundo do fenómeno”,
que preocupa particularmente Cabo Verde, já que o seu território, mercê das
suas extensas fronteiras marítimas, funciona como plataforma para os movimentos
migratórios clandestinos.
O
mesmo tema é abordado com o Presidente da Região Autónoma das Canárias, Adam
Martin, em visita à Cidade da Praia, em Setembro. Ambos reconhecem ser
“necessária uma gestão dos fluxos migratórios e não permitir que se façam de
forma caótica, descontrolada. Devemos discutir, negociar e estabelecer as
regras”, concluíram.
Testamento Político
Ainda
neste mesmo mês, Pedro Pires como que faz um testamento político e diz que
“gostaria de deixar no espírito das pessoas uma vontade convergente de um país
que ultrapasse as suas fronteiras e criar um futuro comum com todos os
cabo-verdianos que se encontram espalhados pelo Mundo – uma Nação Global “. Faz
esta declaração em Lisboa, quando perguntado sobre o que gostaria de deixar ao
seu país.
No
ano seguinte – 2007 - , em Maio visita a China, “um parceiro importante de Cabo
Verde e de toda a região africana”, reúne-se com o primeiro-ministro chinês,
Wen Jiabao e visita, em Xangai, o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD).
Ao
mesmo tempo que vai tentando abrir mais caminhos para o desenvolvimento de Cabo
Verde não deixa de olhar para o grande espaço africano. A 25 de Maio, no dia de
África, que assinala a fundação, em Adis-Abeba, em 1963, da OUA (Organização de
Unidade Africana) Pedro Pires regozija-se com o “crescimento do investimento
directo estrangeiro” em África, que “cresceu 200 por cento entre 2000 e 2005.
Além disso era possível nesse ano afirmar que o peso da dívida externa africana
tinha diminuído: “A Nigéria, principal devedor africano, pagou toda a sua
dívida”.
O
crescimento “das exportações africanas em 25 por cento, em média, nos últimos
três anos”, foi outra razão de contentamento para Pedro Pires.
Em
Novembro, Pedro Pires defende na 34ª Conferência da FAO a produção de
biocombustíveis, “desde que não concorram com a produção agrícola para a
alimentação humana, não ponha em causa a segurança alimentar para todos, sem
contribuir para a destruição das florestas primárias e se faça com as devidas
precauções sociais e ambientais”.
Angola e França, Defesa da Emigração Cabo-verdiana
Em
2008 faz duas visitas importantes: a França, onde se encontra com Sarkozy, que
salienta as “relações privilegiadas entre os dois países” e sugere a divulgação
da língua francesa nas escolas cabo-verdianas. Quanto ao “avanço das relações
de Cabo Verde com a Europa, falou da necessidade de se “criarem condições para
que haja uma emigração cabo-verdiana legal”.
Em
Dezembro, visita Angola, acompanhado de uma grande comitiva de empresários. Em
Luanda considerou que os cabo-verdianos a viver em Angola “são angolanos de
ascendência cabo-verdiana” e assina um primeiro acordo de Segurança Social com
as autoridades de Luanda, que beneficia os trabalhadores cabo-verdianos a
trabalhar em Angola.
No
plano externo junta-se a Angola e defende a “necessidade de reformas” nas
organizações de que ambos os países fazem parte: CPLP, ONU e UA
Em
plena crise, dentro do país, vira-se para a questão energética e defende a
ideia de que o Sol e o Vento devem ser utilizados na produção de energia para
que o país “fuja à dependência do petróleo”, ao mesmo tempo que, perante a
crise que assola o Mundo considera que “não são possíveis soluções
improvisadas, individualistas ou de um grupo de pessoas ou interesses” e aponta
as “revoltas contra a vida cara” e os “prenúncios de fome” como avisos. “Não
podemos correr o risco de ver perder-se o que foi conseguido ao longo de três
décadas”- afirma Pedro Pires aquando da visita à maior central do Mundo de
energia fotovoltaica, na Amareleja, Alentejo, Portugal.
Reforma da ONU e Cooperação Inter-Africana
Em
Setembro, na Assembleia Geral da ONU, tinha exigido a “modernização e aumento
da produção e produtividade agrícolas” com o “envolvimento dos países ricos e
tecnologicamente avançados” e requer o “apoio dos organismos internacionais”.
Sugere ainda formas de “compensação financeira” aos países “mais lesados” com a
subida do preço dos combustíveis. “estou a pensar no meu país e no Continente
Africano”, esclareceu.
As
suas preocupações com África tinham voltado a manifestar-se em Maio deste mesmo
ano, sobretudo com a Somália, “um país que há vinte anos não tem Estado” e que,
por isso “é o caso que merece as maiores preocupações no Continente”, que,
segundo disse, “está melhor do que muitos pensam”.
É
ainda a preocupação da defesa de uma África capaz de se entender que o leva a
defender em Moçambique, durante uma visita de estado que ali realizou em
Novembro de 2010, “um aprofundamento da relação Sul-Sul” e uma “cooperação
inter-africana reforçada. É com certeza a mesma preocupação que o leva a
insistir na necessidade de reformas das Nações Unidas e do seu Conselho de
Segurança, “para que todos os países se sintam representados nesse órgão”.
Principais distinções recebidas por Pedro Pires:
De Cabo Verde – Ordem Amílcar Cabral
Da Guiné Bissau – Medalha Amílcar Cabral
Do Senegal – Ordem Nacional do Leão
De Portugal – Ordem Infante D. Henrique
Do Reino de Espanha – Colar da Ordem das Ilhas Canárias
Da Gambia – Rank of
Grand Commander of the National Order
Da República de Timor Leste - Grande Colar da Ordem de
Timor-Leste.
O
agora ex-presidente de Cabo Verde também foi distinguido com os seguintes
títulos académicos:
DOUTOR
HONORIS CAUSA pelas Universidades do Ceará, no Brasil, Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e Universidade Lusófona.
Leston Bandeira
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