LIV
A
GUERRA ALÉM FRONTEIRAS
A guerra de libertação da Guiné foi,
desde o início, um conflito em parte internacional. Os guerrilheiros eram
vestidos, armados e (no começo) treinados por potências estrangeiras. Atacavam muitas vezes
as nossas posições a partir de santuários instalados nos países limítrofes e voltavam
para lá quando eram perseguidos. O PAIGC era apoiado pela China, por Cuba e
pelo bloco de leste. No entanto, na parte final na guerra, também os países nórdicos
forneceram aos guerrilheiros uma ajuda importante.
Os portugueses preparavam o próprio
exército, mas apenas fabricavam as espingardas semiautomáticas G3, as munições
para elas e o fardamento. Para todo o material mais pesado, incluindo as
metralhadoras ligeiras e pesadas, os lança-granadas-foguete, a artilharia, os
carros de combate, as lanchas armadas e os aviões de transporte e de combate dependiam
dos fornecimentos dos seus aliados da NATO.
Pelo
menos durante os primeiros anos de luta armada, o chão da Guiné-Bissau foi
palco de um dos múltiplos conflitos do confronto este-oeste. A chamada “guerra
fria” chegou com frequência a escaldar.
À luta
entre os rebeldes nacionalistas e as tropas coloniais portuguesas associou-se,
quase desde o início, um componente de guerra civil que atingiu o auge quando a
“africanização” das tropas que combatiam sob a bandeira portuguesa se
desenvolveu mais.
Portugal nunca esteve em guerra com a
República da Guiné. No entanto, beneficiando da conjuntura internacional, o
presidente Sekou Touré acolhia fraternalmente no seu território os
guerrilheiros que combatiam os portugueses. Ali tinham campos de treino e ali
encontravam abrigo sempre que necessário. Era pelo território da Guiné-Conakry
que entrava o armamento destinado ao PAIGC, ainda que as más-línguas dissessem
que os guineenses, quando podiam, ficavam com parte das remessas. Conakry era a
residência habitual de Amílcar Cabral. Funcionava na capital guineense uma
escola-piloto para quadros do partido. O facto provavelmente mais grave era a
existência, num país soberano oficialmente alheio ao conflito armado, de uma
prisão onde eram aferrolhados os prisioneiros de guerra portugueses.
Seriam
razões de sobra para Portugal levar a cabo ações militares contra a República
da Guiné e dos seus dirigentes, se fosse outro o panorama político
internacional.
Mais tarde, também o Senegal acoitou os guerrilheiros e deu
apoio logístico e militar a quem combatia uma Nação à qual não tinham declarado
guerra. O Direito Internacional estava feito em pedaços. Nenhum dos lados o
respeitava.
As grandes organizações internacionais favoreciam claramente os
guerrilheiros. O colonialismo era condenado repetidamente. Com o tempo, também
as opiniões públicas internacionais se inclinaram nitidamente para o lado dos que
defendiam as independências dos próprios países. Portugal era dos pouco países
no mundo que ainda conservava possessões ultramarinas, numa altura em que o
colonialismo se fizera já anacrónico. Os colonos eram os maus da fita. Tudo o que
se fizesse contra eles estava justificado pela História.
Essa questão ainda hoje não é pacífica na sociedade portuguesa.
Passaram quarenta anos sobre o 25 de abril e as independências das colónias e
estabeleceram-se relacionamentos normais e até laços de amizade com todos
os Estados Africanos anteriormente colonizados por Portugal, mas as feridas
subsistem. Os soldados portugueses que se bateram pelo que lhes tinham ensinado
ser a sua Pátria devem ser considerados heróis ou criminosos de guerra? A meu
ver, nem uma coisa nem outra. Foram simplesmente soldados de Portugal, embora houvesse
entre eles heróis e criminosos.
Cada época tem a sua moral.
Os militares portugueses começaram cedo a passar para o outro
lado das fronteiras na perseguição dos seus inimigos. Adiantavam-se geralmente
poucos quilómetros e voltavam a recuar. Essas operações eram habitualmente de pequena
envergadura. Com o tempo, a guerra transfronteiriça subiu de intensidade.
Entre 1969 e 1970, a situação militar deteriorou-se na
região norte da Guiné. A dada altura, tornou-se necessário desalojar um contingente importante
do PAIGC colocado numa base situada do lado de lá da fronteira com a
Guiné-Conakry. Coube a Carlos
Fabião fazer o primeiro ataque importante a instalações do PAIGC na República
da Guiné. Ouçamo-lo:
A operação foi
planeada a nível do comandante-chefe e, quando foi altura de reunir o comando
da unidade, Spínola disse: «Disseram-me que há aí um oficial que foi promovido
por distinção e que é muito conceituado. Vai esse.» Ele não me conhecia, foi
assim que me nomeou. Fui ao palácio, falei com o Spínola, que me deu
instruções. Comandei essa operação, que correu muitíssimo bem. Tivemos sorte.
Tinha três companhias de caçadores, uma bateria de artilharia e a aviação. Os
homens do PAIGC estavam na República da Guiné, tinham uma base encostada à
fronteira e eu, quando fui de avião, vi a base e pedi ao oficial de Artilharia
que ia comigo para fazer um plano de fogo. À tarde, quando estávamos na reunião,
eu disse a Spínola que tinha visto a base do lado de lá e ele ordenou-me que
bombardeasse. Fiquei indeciso e Spínola perguntou-me se eu estava com medo.
Depois deu-me a ordem por escrito. A artilharia acertou em cheio. Tivemos a
sorte daquilo cair nos paióis e incendiou-se tudo. Foi a primeira vez que
atacámos a República da Guiné. Foi talvez a operação em que eles tiveram mais
baixas. A partir daí criou-se o gosto de atacar bases na República da Guiné.
Ouçamos
também Pereira da Costa, outro dos “rapazes” de Spínola:
Na Guiné,
onde a ameaça antiaérea obrigou a reduzir substancialmente o apoio aéreo que
muitas vezes resolvia a situação tática que se vivia no terreno, o
"empréstimo" de artilharia de campanha por parte da República da
Guiné ao PAIGC, permitiu criar uma situação de superioridade pontual na
fronteira Sul.
A operação Mar Verde foi, de todas as intervenções além-fronteiras, a que dispôs de meios mais
importantes e de planeamento mais pormenorizado. Falhou, no essencial, por
incompetência da PIDE: ninguém sabia que Amílcar Cabral se ausentara de
Conakry, o que ainda se podia aceitar, nem que os MIG da Força Aérea da Guiné
haviam sido mudados para outro aeroporto, o que se mostrou determinante para o insucesso
parcial da aventura. O eventual apoio aos adversários de Sekou Touré com vista
a um golpe de estado foi obviamente sobre avaliado.
No rescaldo, Portugal foi enxovalhado na imprensa internacional,
que aceitava, com certo despudor, o apoio ativo a atos de guerra da parte dos
países fronteiriços (República da Guiné e Senegal). O maior perdedor da
Operação Mar Verde não foi, contudo, o governo português. Terá sido a NATO. A União
Soviética aproveitou a oportunidade para instalar a almejada base em Conakry. O
pretexto foi, naturalmente, obviar a outros ataques da marinha imperialista
portuguesa.
Fica no ar a suspeita de alguma loucura no imaginar da
expedição. Se as vantagens do derrube do regime de Sekou Touré e a sua
substituição por um governo mais favorável aos interesses portugueses são fáceis de entender, a captura ou assassinato de Amílcar Cabral iria servir-nos
de pouco. O PAIGC era já um partido em
movimento imparável e a perda do seu líder histórico não o iria abalar de forma
significativa. Isso viu-se em janeiro de 1973, quando os seus companheiros o
mataram. Pelo contrário, perdia-se um interlocutor. Spínola, quando autorizou a
operação, devia ter o monóculo embaciado.
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