O SUPLÍCIO DOS TÁVORAS
Camilo Castelo Branco chamou ao Marquês de
Pombal “crudelíssimo verdugo”. Sem deixar de ser verdade, trata-se de uma
expressão extremamente redutora da figura de Sebastião José de Carvalho e Melo,
um dos políticos mais visionários que esteve à frente dos destinos de Portugal.
Depois do terramoto que arrasou Lisboa no
dia de Todos-os-Santos de 1755 e destruiu o palácio real, a corte instalou-se
num enorme conjunto de tendas e barracas montadas na Ajuda, no limite da
cidade. O rei receava que o chão voltasse a tremer. Se caíssem, as tendas
representariam pouco perigo para os seus ocupantes. O acampamento, com recheio
luxuoso, alojava o governo e centrava a vida social do Reino.
O pretexto para o Processo dos Távoras foi
a suposta tentativa de assassinato do rei D. José. Nunca ficou provada a
existência de um atentado contra o rei. Houve quem dissesse que os disparos se
dirigiam a um certo capitão Pedro Teixeira que andava desaguisado com o Duque
de Aveiro.
D. José casara com uma princesa espanhola,
Mariana Vitória de Bourbon, e gerara quatro filhas. Tinha também uma amante,
Teresa Leonor, esposa de Luís Bernardo de Távora.
Na noite de 3 de setembro de 1758, D. José
regressava incógnito de um encontro com a amante. A sua carruagem foi atacada
por três homens que fizeram vários disparos sobre os seus ocupantes. O rei foi
ferido num braço e o cocheiro foi atingido com alguma gravidade.
O Marquês de Pombal aproveitou-se
rapidamente da situação. Os Távoras eram uma das famílias mais poderosas de
Portugal, com ligações às casas de Aveiro, Alorna, Cadaval e S. Vicente. A
marquesa Leonor de Távora detestava Sebastião José que, a seu ver, não passava
de um novo-rico sem educação. O seu marido, Francisco de Assis, era conde de
Alvor e antigo vice-rei da Índia.
A alta nobreza e o rei davam-se mal. Muitos
fidalgos culpavam o soberano pela confiança depositada no seu valido. Por outro
lado, como José não tinha um filho varão, o Duque de Aveiro, primeiro fidalgo
do Reino, poderia eventualmente suceder-lhe. Contudo, a rivalidade entre as
casas de Aveiro e de Bragança era antiga.
Nenhum elemento da família Távora tentou
fugir de Portugal nos dias que se seguiram ao atentado. Não adivinharam a
desgraça que ali vinha. Ou estavam inocentes, ou eram incautos.
Alguns dias após o tiroteio, dois suspeitos foram presos e sujeitos a tratos. Confessaram a culpa. Teriam sido contratados pelos Távoras, que pretendiam colocar no trono José de Mascarenhas, duque de Aveiro. Foram enforcados no dia seguinte. Por essa altura, a possível tentativa de regicídio ainda não fora tornada pública. A notícia seria guardada em segredo durante mais de dois meses.
Tomemos conhecimento da carta (traduzida)
que a rainha de Portugal dirigiu à mãe, Isabel de Farnésio, a 17 de dezembro de
1758.
Minha
muito querida mãe, enganaram-me e eu vos enganei, há três ou quatro dias que
sei a verdade daquilo que vos vou dar parte. Na noite de 3 de setembro,
regressando o rei da casa de um dos outros senhores que é tão próxima daqui que
eu a vejo perfeitamente das minhas janelas, atiraram sobre a sua carruagem dois
golpes de fogo quase à queima-roupa. A ferida do braço direito foi terrível
porque toda a carne do interior do braço ficou exposta. Eu vi a cicatriz e é
verdadeiramente grande. Deve prender-se uma família quase inteira e algumas
outras pessoas, todas de primeira qualidade, que são aquelas das quais mais se
suspeita, porque com certeza nada se sabe.
Ao longo das semanas seguintes, a marquesa
Leonor de Távora, o seu marido, conde de Alvor, e todos os seus filhos, filhas
e netos foram presos. Também o duque de Aveiro e os genros dos Távoras, o
marquês de Alorna e o conde de Atouguia foram encarcerados, com as suas famílias.
Até o jesuíta Gabriel Malagrida, confessor de Leonor de Távora, foi
enclausurado.
Os presos foram todos acusados dos crimes
de regicídio e de alta traição. O tribunal teve em conta as confissões dos
assassinos executados, o facto de uma das armas do crime pertencer ao duque de
Aveiro e a circunstância de apenas a família dos Távoras saber da deslocação do
rei, naquela noite. Teresa Leonor, a amante do rei, não escapou à prisão.
Os acusados foram sujeitos a tortura, para
que confessassem. Chamavam aos tormentos “tratos” (maus tratos). A dada altura,
cada um confessava tudo o que o inquisidor pretendesse saber. Admira que não
tenham encontrado o responsável pelo terramoto de 1755.
Sebastião José de Carvalho e Melo assistiu
à maioria dos interrogatórios. Terá sido ele, na prática, quem dirigiu o
processo.
O duque de Aveiro parece ter-se mostrado o
mais pusilâmine de todos os acusados.
Os Távoras negaram as acusações, o
que de nada lhes serviu. Foram condenados à morte.
Em complemento da sentença, os bens dos
réus foram sequestrados. O nome dos Távoras foi apagado dos registos da
nobreza.
Paralelamente, dezenas de pessoas, ligadas
à família foram condenadas a penas de prisão. Seriam libertadas, anos mais
tarde, por D. Maria I, que sempre acreditara na inocência dos Távoras.
A cerimónia pública da execução coletiva
teve lugar em Belém e constituiu uma exibição anacrónica de crueldade. As
gravuras da época representam um patíbulo elevado de madeira, a que se tinha
acesso por uma escada com mais de uma dúzia de degraus. No cimo, tinham sido
colocadas 9 rodas e sobre elas os corpos dos supliciados.
As execuções ocorreram a 13 de janeiro de
1759.
A primeira a ser vitimada foi a marquesa de
Távora, Dona Leonor. Tinha pedido que a matassem depressa e foi decapitada de
um só golpe. A seguir, foram torturados e queimados o marquês de Távora D.
Francisco de Assis e os seus dois filhos José Maria e Luís Bernardo, D.
Jerónimo de Ataíde, genro dos marqueses e José Mascarenhas, duque de Aveiro. Quebraram-lhes os ossos com marretas, ainda em vida e degolaram-nos ou estrangularam-nos.
Amigos, e até criados dos fidalgos foram também supliciados. O plebeu António
Alvares Ferreira foi queimado vivo.
Quando tudo acabou, as cinzas e os restos
dos corpos foram lançados ao rio Tejo.
O rei assistiu às execuções, juntamente com
a corte.
Poucos dias após a tragédia, a rainha
Mariana Vitória voltou a escrever à mãe. Pormenorizou as sentenças e informou
que dez padres da companhia de Jesus tinham sido presos. A rainha ficara
consternada com a condenação de D. Leonor:
“essa mesma marquesa de Távora que vós
vereis pela sentença dever ser decapitada, como de facto aconteceu, é essa
mesma senhora do meu conhecimento e por quem tinha amizade”.
Os juízes tinham ordenado também a execução
de mulheres e crianças. Foram salvas pelas intervenções da Rainha Mariana
Vitória e de sua filha Maria Francisca, a futura Dona Maria I. As mulheres da
família Alorna e as filhas do duque de Aveiro foram condenadas a internamento
perpétuo em conventos.
Colher as vidas de grandes nobres do Reino
não chegou para contentar Sebastião José. Era preciso impressionar a fidalguia
e fazê-la temer o poder do rei. O palácio do duque de Aveiro em Lisboa foi
demolido. O terreno foi salgado. Tratava-se de um simbolismo: em chão salgado
nada voltava a vicejar.
Foi proibido citar o nome “Távora”. Os
brasões com as armas da família foram picados.
No conjunto, foram acusadas mais de quatro
centenas de pessoas. Umas tantas escaparam para o Brasil.
A crueldade das execuções e a importância
das vítimas tiveram ecos Europa fora. Até Voltaire criticou a violência dos
suplícios, no livro “Resumo do século de Luís XV”.
Devido à eficiência com que geriu a crise,
Sebastião José de Carvalho e Melo foi feito Conde de Oeiras ainda nesse ano.
Uma década mais tarde, seria agraciado com o título de Marquês de Pombal.
O jesuíta Gabriel Malagrida, confessor da
Marquesa de Távora, não foi esquecido, tendo sido enforcado e queimado a 21 de
setembro de 1761. As propriedades da Companhia de Jesus foram confiscadas e os
jesuítas expulsos do território português, tanto na Europa como no ultramar.
D. Maria I detestava o valido de seu pai.
Quando subiu ao trono, afastou-o de todos os cargos públicos e expulsou-o da
capital. A presença do marquês de Pombal deixou de ser tolerada a menos de 20
milhas de Lisboa.
Após a queda de Pombal, o processo dos
Távoras foi revisto. Os marqueses de Távora, os seus filhos e o Conde de
Atouguia foram inocentados. O mesmo não aconteceu ao Duque de Aveiro, que
continuou a ser considerado culpado.
Será interessante passar em revista alguns
depoimentos.
O padre José da Costa, antigo vigário
corretor do convento de São Francisco de Paula e amigo de um dos magistrados
que intervieram no processo, José Pacheco Pereira, revelou que ele lhe
confidenciara que o medo que tinha ao Secretário de Estado o obrigara a assinar
a sentença sem conhecer o seu conteúdo.
Joaquim Jansen Muller, do conselho de Sua
Majestade e prelado da Santa Igreja Patriarcal, amigo íntimo do desembargador
José Simões Barbosa contou que o mesmo lhe dissera que diversos juízes
responsáveis pelo caso tinham assinado a sentença sem tomarem conhecimento dos
autos.
A “preta livre” Lourença da Cruz, criada da
duquesa de Aveiro, testemunhou que, na noite do atentado, o filho mais velho
dos marqueses de Távora, Luís Bernardo, permanecera em casa da família dos
patrões até depois da meia-noite, não podendo ter participado no atentado
contra o rei. É óbvio que tal o não impossibilitaria de ser o mandante da
tentativa de regicídio.
Foram muitos os rumores que circularam em
Lisboa por ocasião do atentado. Um dos mais curiosos responsabiliza a rainha,
que teria agido por ciúmes. Pretenderia matar a amante de seu marido, Teresa
Leonor, esposa de Luís Bernardo de Távora. Acreditaria que o alcoviteiro Pedro
Teixeira a iria conduzir nessa noite ao palácio para se
encontrar com D. José. Alegadamente, o marido ter-lhe-ia dito que ia reunir com
os secretários de Estado. A rainha não saberia que el-Rei seguia na carruagem.
A poderosa família Távora constituía um
empecilho para o projeto de centralização política do país que Sebastião José
tinha em mente.
O primeiro-ministro era filho de um fidalgo
de província, olhado de lado pelos titulares da velha nobreza. Autocrata e
confiante na proteção do rei, estava disposto a remover qualquer obstáculo que
se interpusesse entre ele e o seu programa de modernização de Portugal. D. José
de Mascarenhas, duque de Aveiro, era o fidalgo mais poderoso do país, a seguir ao rei. Francisco de Assis, marquês
de Távora, era general e diretor-geral da Cavalaria. Jerónimo de Ataíde, conde
de Atouguia e genro dos marqueses de Távora, era o chefe da guarda do palácio
do rei.
Não se sabe ao certo se o rei D. José acreditou
na suposta conspiração. O soberano não ficou especialmente conhecido na
História pela inteligência, mas tal aconteceu com vários dos seus antecessores
e sucessores. O facto de a sua amante ter sido incluída entre os supliciados
leva a crer que acreditou piamente na teoria de conspiração arquitetada pelo
seu valido.
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