DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

 

O SUPLÍCIO DOS TÁVORAS




Camilo Castelo Branco chamou ao Marquês de Pombal “crudelíssimo verdugo”. Sem deixar de ser verdade, trata-se de uma expressão extremamente redutora da figura de Sebastião José de Carvalho e Melo, um dos políticos mais visionários que esteve à frente dos destinos de Portugal.

Depois do terramoto que arrasou Lisboa no dia de Todos-os-Santos de 1755 e destruiu o palácio real, a corte instalou-se num enorme conjunto de tendas e barracas montadas na Ajuda, no limite da cidade. O rei receava que o chão voltasse a tremer. Se caíssem, as tendas representariam pouco perigo para os seus ocupantes. O acampamento, com recheio luxuoso, alojava o governo e centrava a vida social do Reino. 

O pretexto para o Processo dos Távoras foi a suposta tentativa de assassinato do rei D. José. Nunca ficou provada a existência de um atentado contra o rei. Houve quem dissesse que os disparos se dirigiam a um certo capitão Pedro Teixeira que andava desaguisado com o Duque de Aveiro.

D. José casara com uma princesa espanhola, Mariana Vitória de Bourbon, e gerara quatro filhas. Tinha também uma amante, Teresa Leonor, esposa de Luís Bernardo de Távora.

Na noite de 3 de setembro de 1758, D. José regressava incógnito de um encontro com a amante. A sua carruagem foi atacada por três homens que fizeram vários disparos sobre os seus ocupantes. O rei foi ferido num braço e o cocheiro foi atingido com alguma gravidade.

O Marquês de Pombal aproveitou-se rapidamente da situação. Os Távoras eram uma das famílias mais poderosas de Portugal, com ligações às casas de Aveiro, Alorna, Cadaval e S. Vicente. A marquesa Leonor de Távora detestava Sebastião José que, a seu ver, não passava de um novo-rico sem educação. O seu marido, Francisco de Assis, era conde de Alvor e antigo vice-rei da Índia.

A alta nobreza e o rei davam-se mal. Muitos fidalgos culpavam o soberano pela confiança depositada no seu valido. Por outro lado, como José não tinha um filho varão, o Duque de Aveiro, primeiro fidalgo do Reino, poderia eventualmente suceder-lhe. Contudo, a rivalidade entre as casas de Aveiro e de Bragança era antiga.

Nenhum elemento da família Távora tentou fugir de Portugal nos dias que se seguiram ao atentado. Não adivinharam a desgraça que ali vinha. Ou estavam inocentes, ou eram incautos.

Alguns dias após o tiroteio, dois suspeitos foram presos e sujeitos a tratos. Confessaram a culpa. Teriam sido contratados pelos Távoras, que pretendiam colocar no trono José de Mascarenhas, duque de Aveiro. Foram enforcados no dia seguinte. Por essa altura, a possível tentativa de regicídio ainda não fora tornada pública. A notícia seria guardada em segredo durante mais de dois meses.

Tomemos conhecimento da carta (traduzida) que a rainha de Portugal dirigiu à mãe, Isabel de Farnésio, a 17 de dezembro de 1758.

Minha muito querida mãe, enganaram-me e eu vos enganei, há três ou quatro dias que sei a verdade daquilo que vos vou dar parte. Na noite de 3 de setembro, regressando o rei da casa de um dos outros senhores que é tão próxima daqui que eu a vejo perfeitamente das minhas janelas, atiraram sobre a sua carruagem dois golpes de fogo quase à queima-roupa. A ferida do braço direito foi terrível porque toda a carne do interior do braço ficou exposta. Eu vi a cicatriz e é verdadeiramente grande. Deve prender-se uma família quase inteira e algumas outras pessoas, todas de primeira qualidade, que são aquelas das quais mais se suspeita, porque com certeza nada se sabe.

Ao longo das semanas seguintes, a marquesa Leonor de Távora, o seu marido, conde de Alvor, e todos os seus filhos, filhas e netos foram presos. Também o duque de Aveiro e os genros dos Távoras, o marquês de Alorna e o conde de Atouguia foram encarcerados, com as suas famílias. Até o jesuíta Gabriel Malagrida, confessor de Leonor de Távora, foi enclausurado.

Os presos foram todos acusados dos crimes de regicídio e de alta traição. O tribunal teve em conta as confissões dos assassinos executados, o facto de uma das armas do crime pertencer ao duque de Aveiro e a circunstância de apenas a família dos Távoras saber da deslocação do rei, naquela noite. Teresa Leonor, a amante do rei, não escapou à prisão.

Os acusados foram sujeitos a tortura, para que confessassem. Chamavam aos tormentos “tratos” (maus tratos). A dada altura, cada um confessava tudo o que o inquisidor pretendesse saber. Admira que não tenham encontrado o responsável pelo terramoto de 1755.

Sebastião José de Carvalho e Melo assistiu à maioria dos interrogatórios. Terá sido ele, na prática, quem dirigiu o processo.

O duque de Aveiro parece ter-se mostrado o mais pusilâmine de todos os acusados.

Os Távoras negaram as acusações, o que de nada lhes serviu. Foram condenados à morte.

Em complemento da sentença, os bens dos réus foram sequestrados. O nome dos Távoras foi apagado dos registos da nobreza.

Paralelamente, dezenas de pessoas, ligadas à família foram condenadas a penas de prisão. Seriam libertadas, anos mais tarde, por D. Maria I, que sempre acreditara na inocência dos Távoras.

A cerimónia pública da execução coletiva teve lugar em Belém e constituiu uma exibição anacrónica de crueldade. As gravuras da época representam um patíbulo elevado de madeira, a que se tinha acesso por uma escada com mais de uma dúzia de degraus. No cimo, tinham sido colocadas 9 rodas e sobre elas os corpos dos supliciados.

As execuções ocorreram a 13 de janeiro de 1759.

A primeira a ser vitimada foi a marquesa de Távora, Dona Leonor. Tinha pedido que a matassem depressa e foi decapitada de um só golpe. A seguir, foram torturados e queimados o marquês de Távora D. Francisco de Assis e os seus dois filhos José Maria e Luís Bernardo, D. Jerónimo de Ataíde, genro dos marqueses e José Mascarenhas, duque de Aveiro. Quebraram-lhes os ossos com marretas, ainda em vida e degolaram-nos ou estrangularam-nos. Amigos, e até criados dos fidalgos foram também supliciados. O plebeu António Alvares Ferreira foi queimado vivo.

Quando tudo acabou, as cinzas e os restos dos corpos foram lançados ao rio Tejo.

O rei assistiu às execuções, juntamente com a corte.

Poucos dias após a tragédia, a rainha Mariana Vitória voltou a escrever à mãe. Pormenorizou as sentenças e informou que dez padres da companhia de Jesus tinham sido presos. A rainha ficara consternada com a condenação de D. Leonor:

 “essa mesma marquesa de Távora que vós vereis pela sentença dever ser decapitada, como de facto aconteceu, é essa mesma senhora do meu conhecimento e por quem tinha amizade”.

Os juízes tinham ordenado também a execução de mulheres e crianças. Foram salvas pelas intervenções da Rainha Mariana Vitória e de sua filha Maria Francisca, a futura Dona Maria I. As mulheres da família Alorna e as filhas do duque de Aveiro foram condenadas a internamento perpétuo em conventos.

Colher as vidas de grandes nobres do Reino não chegou para contentar Sebastião José. Era preciso impressionar a fidalguia e fazê-la temer o poder do rei. O palácio do duque de Aveiro em Lisboa foi demolido. O terreno foi salgado. Tratava-se de um simbolismo: em chão salgado nada voltava a vicejar.

Foi proibido citar o nome “Távora”. Os brasões com as armas da família foram picados.

No conjunto, foram acusadas mais de quatro centenas de pessoas. Umas tantas escaparam para o Brasil.

A crueldade das execuções e a importância das vítimas tiveram ecos Europa fora. Até Voltaire criticou a violência dos suplícios, no livro “Resumo do século de Luís XV”.

Devido à eficiência com que geriu a crise, Sebastião José de Carvalho e Melo foi feito Conde de Oeiras ainda nesse ano. Uma década mais tarde, seria agraciado com o título de Marquês de Pombal.

O jesuíta Gabriel Malagrida, confessor da Marquesa de Távora, não foi esquecido, tendo sido enforcado e queimado a 21 de setembro de 1761. As propriedades da Companhia de Jesus foram confiscadas e os jesuítas expulsos do território português, tanto na Europa como no ultramar.

D. Maria I detestava o valido de seu pai. Quando subiu ao trono, afastou-o de todos os cargos públicos e expulsou-o da capital. A presença do marquês de Pombal deixou de ser tolerada a menos de 20 milhas de Lisboa.

Após a queda de Pombal, o processo dos Távoras foi revisto. Os marqueses de Távora, os seus filhos e o Conde de Atouguia foram inocentados. O mesmo não aconteceu ao Duque de Aveiro, que continuou a ser considerado culpado.

Será interessante passar em revista alguns depoimentos.

O padre José da Costa, antigo vigário corretor do convento de São Francisco de Paula e amigo de um dos magistrados que intervieram no processo, José Pacheco Pereira, revelou que ele lhe confidenciara que o medo que tinha ao Secretário de Estado o obrigara a assinar a sentença sem conhecer o seu conteúdo.

Joaquim Jansen Muller, do conselho de Sua Majestade e prelado da Santa Igreja Patriarcal, amigo íntimo do desembargador José Simões Barbosa contou que o mesmo lhe dissera que diversos juízes responsáveis pelo caso tinham assinado a sentença sem tomarem conhecimento dos autos.

A “preta livre” Lourença da Cruz, criada da duquesa de Aveiro, testemunhou que, na noite do atentado, o filho mais velho dos marqueses de Távora, Luís Bernardo, permanecera em casa da família dos patrões até depois da meia-noite, não podendo ter participado no atentado contra o rei. É óbvio que tal o não impossibilitaria de ser o mandante da tentativa de regicídio.

Foram muitos os rumores que circularam em Lisboa por ocasião do atentado. Um dos mais curiosos responsabiliza a rainha, que teria agido por ciúmes. Pretenderia matar a amante de seu marido, Teresa Leonor, esposa de Luís Bernardo de Távora. Acreditaria que o alcoviteiro Pedro Teixeira a iria conduzir nessa noite ao palácio para se encontrar com D. José. Alegadamente, o marido ter-lhe-ia dito que ia reunir com os secretários de Estado. A rainha não saberia que el-Rei seguia na carruagem.

A poderosa família Távora constituía um empecilho para o projeto de centralização política do país que Sebastião José tinha em mente.

O primeiro-ministro era filho de um fidalgo de província, olhado de lado pelos titulares da velha nobreza. Autocrata e confiante na proteção do rei, estava disposto a remover qualquer obstáculo que se interpusesse entre ele e o seu programa de modernização de Portugal. D. José de Mascarenhas, duque de Aveiro, era o fidalgo mais poderoso do país,  a seguir ao rei. Francisco de Assis, marquês de Távora, era general e diretor-geral da Cavalaria. Jerónimo de Ataíde, conde de Atouguia e genro dos marqueses de Távora, era o chefe da guarda do palácio do rei.

Não se sabe ao certo se o rei D. José acreditou na suposta conspiração. O soberano não ficou especialmente conhecido na História pela inteligência, mas tal aconteceu com vários dos seus antecessores e sucessores. O facto de a sua amante ter sido incluída entre os supliciados leva a crer que acreditou piamente na teoria de conspiração arquitetada pelo seu valido.

 

 

 

 


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