DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

          

        A MORTE DE INÊS DE CASTRO


 

Demos agora um salto considerável na geografia e outro, muito maior, na contagem do tempo. Situemo-nos em Portugal, durante o reinado de D. Afonso IV. Falemos da morte de Inês de Castro e dos seus assassinos.

Inês Pires de Castro pertencia a uma família galega poderosa. Era filha bastarda de D. Pedro Fernández de Castro (a quem chamavam “o da guerra”), camareiro-mor de Afonso XI de Castela e primo-direito do príncipe D. Pedro, futuro rei de Portugal. Inês era, assim, prima segunda de Pedro. A sua mãe era portuguesa.

Inês chegou a Portugal como dama da companhia de Dona Constança Manuel, que se vinha casar com o herdeiro do trono.

Era uma jovem muito bela de pescoço longo, cabelos loiros e olhos verdes. Chamavam-lhe “o colo de garça”. Depressa seduziu o Infante. Esse Pedro arrebatado, gago, bruto e um pouco louco, perdeu-se de amores por ela.

Dona Constança Manuel teve seguramente culpas no cartório. Presumo que fosse feia. Esperta não era. Nenhuma mulher avisada traz para junto do noivo uma rapariga mais linda do que ela.

Ao tempo, não se esperava de uma dama ilustre consorciada com um monarca que lhe tivesse amor. Bastava que lhe desse filhos, de preferência varões. Da parte do marido, nem sequer se exigia fidelidade. 

A História de Pedro e de Inês tornou-se mito. “Aquela que, depois de morta, foi rainha” conta-se as mais conhecidas histórias de amor de todas as épocas. No entanto, o beija-mão do cadáver desenterrado parece ter sido acrescentado tardiamente à lenda. Faz lembrar o ultra-romantismo do século XIX.

De qualquer forma, Constança viria a desempenhar um papel relativamente breve nesta tragédia. Morreu em 1345, duas semanas depois de dar à luz o terceiro filho, o futuro rei D. Fernando.

Vale a pena esmiuçar um pouco a vida de D. Constança, de memória geralmente obscurecida pelo brilho da sua rival. Era filha de D. João Manuel, neto de Fernando III de Castela, duque de Penafiel, nobre de muito poder e ambição, que fora tutor e co-regente do Reino durante a mocidade de Afonso XI.

Logo ao chegar aos 14 anos, Afonso XI assumiu as rédeas do poder e afastou o duque, que ficou melindrado. 

As filhas dos poderosos desempenhavam com frequência papéis importantes nos jogos de alianças. O pai de Constança prometeu em casamento a filha de seis anos ao senhor de Biscaia, D. João, o Torto, que se dispunha a apoiar D. João Manuel numa projetada guerra contra o rei.

O jovem Afonso XI trocou-lhes as voltas. Fez as pazes com D. João Manuel, pedindo-lhe a filha em casamento. Deslumbrado, o duque aceitou e o senhor da Biscaia viu-se forçado a sair do país, para salvar a vida.

Assim, a pequena Constança viu o primeiro noivado desfeito. Depois, o casamento foi ratificado pelas Cortes de Valladolid e a menina foi levada para os paços reais, onde deveria permanecer até atingir a idade adequada para consumar a união nupcial.

Afonso XI revelou-se muito cedo um bom jogador no xadrez da política ibérica. Resolvida a ameaça de rebelião, o rei de Castela repudiou D. Constança, antes de o casamento ser consumado, e encarcerou-a no castelo de Toro. A menina foi devolvida à casa paterna aos doze anos de idade. Afonso casou, em 1328, com Maria de Portugal, filha de D. Afonso IV.

Podemos imaginar o acumular de frustrações e desenganos ao logo da curta vida da rapariguinha.

Por essa altura, Inês de Castro, sua prima afastada, foi para junto dela, como dama de companhia. Eram de idades aproximadas e pouco admira que se tenham tornado amigas e confidentes.

Em 1336, Constança contaria quase 20 anos. A família arranjou-lhe casamento com o príncipe Pedro, herdeiro do trono português.

Afonso XI, o antigo marido, não ficou contente com a ideia. Ainda consentiu no casamento por procuração, mas não autorizou a noiva de Pedro a sair de Castela. A cerimónia realizou-se em Évora, no convento de S. Francisco. D. Pedro esteve presente, mas dormiu sozinho nessa noite.

Afonso IV de Portugal andava já zangado com o genro, que lhe trataria mal a filha. Os dois reinos entraram em guerra. O conflito arrastou-se até 1339, sem que ficasse à vista um vencedor claro. No sul da Península, os mouros regalavam-se com as batalhas entre os seus inimigos.

O impasse foi ultrapassado por negociações e o rei de Castela acabou por aceitar a saída de Constança para Portugal. Em 1340, Dona Constança Manuel casou de facto com Pedro de Portugal.

Em 1342, nasce Maria, a primeira filha do casal.

Por essa altura, Constança dera já conta da paixão do marido pela sua dama de companhia. Para tentar condicionar-lhe o comportamento, convidou Inês de Castro para madrinha do seu segundo filho, a que deu o nome de Luís. As regras vigentes à época condenavam vivamente as relações amorosas entre compadres e comadres.

Luís viveu apenas alguns dias e Pedro parece ter-se sentido mais livre.

O rei fez o que pôde para controlar a situação e obrigou Dona Inês a retirar-se para Albuquerque, em Castela.

A favorita do príncipe herdeiro permaneceu ali até à morte de Constança Manuel.

Consta que os amantes se encontravam às escondidas na vila do Jarmelo, perto da Guarda.

Escreveu Fernão Lopes, na crónica de El Rei Dom Pedro I: Semelhante amor, qual El Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma pessoa.  

A que esperara vir a ser rainha, primeiro de Castela e, depois, de Portugal, teve uma sorte madrasta. Constança morreu em 1345, pouco depois de dar à luz Fernando, futuro rei de Portugal.

O príncipe viúvo não entristeceu. Mandou Inês regressar do exílio, assumiu o concubinato, escandalizando a corte, e desinteressou-se do governo do Reino. Iam mal os tempos e a peste negra assolava o país. Pedro tentou mesmo casar-se e, em 1351, pediu ao Papa uma bula de dispensa de parentesco.

A ligação de Pedro e Inês esteve longe de constituir uma paixão fugaz. Durou mais de uma dúzia de anos. Inês teve quatro filhos do príncipe, que seria gago e epilético, mas bom reprodutor. Sobreviveram três. Contavam-se entre eles dois varões, eventuais candidatos à coroa de Portugal: João, nascido em 1349 e Dinis, seis anos mais novo.

Dom Afonso IV contemplou o país e os netos e considerou essencial escolher entre eles. Optou por Dom Fernando, o herdeiro legítimo do trono. 

Não se sabe se Pedro alguma vez declarou a sua preferência pelos filhos da amante, mas tratava-se de uma possibilidade real e o risco de uma guerra com Castela espreitava no horizonte. Falava-se no desejo de independência do antigo Reino da Galiza e da sua eventual união a Portugal. Entre Pedro e os irmãos de Inês, Fernando e Álvaro Peres de Castro, desenvolvera-se uma amizade estreita. Segundo alguns, esses galegos, deteriam uma influência exagerada na corte portuguesa. Em colisão com Pedro I de Castela, procuravam obter do príncipe herdeiro português apoio político e militar. 

O rei “Bravo” escutou os seus conselheiros e mandou matar Inês.

Pedro e Inês passaram alguns anos no norte do país. A dada altura, voltaram a Coimbra e instalaram-se no Paço de Santa Clara, edificado por ordem da Rainha Santa Isabel, avó de Pedro.

Os fidalgos Pêro Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco deslocaram-se a Coimbra. Encontraram a amante do príncipe naquele enlevo de alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito e degolaram-na. Pedro ausentara-se para caçar. O crime aconteceu a 7 de janeiro de 1355.

O príncipe herdeiro contava com apoiantes que chegassem para se lançar numa revolta armada contra seu pai e assim fez. A rebelião não constituía novidade, naqueles tempos duros: já Afonso IV, quando era príncipe, reunira um exército contra Dom Dinis, o seu progenitor.

Dom Pedro agregou à sua volta um grupo de seguidores. Aos Castros e aos seus vassalos, juntou amigos e um grupo de criminosos amnistiados. Na primavera de 1355, as hostes do encolerizado príncipe deslocaram-se pelas comarcas de Entre-Douro e Minho e Trás-os-Montes, em direção ao Porto, conquistando castelos e devastando terras de cultivo.

Sabe-se pouco sobre esta guerra civil. O objetivo dos rebeldes era tomar a cidade do Porto, com o intuito de dominar o norte do país, onde os velhos senhores feudais, descontentes com o processo de centralização administrativa intentada por Dom Afonso IV, os poderiam apoiar.  No entanto, o Porto estava bem defendido e comandado por Dom Álvaro Gonçalves Pereira, Prior do Hospital.

Falhado esse propósito, o exército rebelde retirou-se, procurando ir ao encontro de Dom Afonso IV. A rainha-mãe, Dona Beatriz,e o arcebispo de Braga, Dom Guilherme, intervieram como medianeiros e convenceram o infante a fazer as pazes com o pai. A 5 de agosto de 1355 foi assinado, em Canaveses, o acordo que pôs termo ao conflito.

Dom Pedro jurou que perdoaria a todos que haviam participado na morte de Inês e que seria um vassalo leal e um filho obediente. Nem ele, nem os seus seguidores, tomariam posse de domínios reais. O rei concedia perdão a todos os revoltosos, atribuía um condado e uma renda anual a D. João, filho de Pedro e de Inês, e delegava no príncipe o essencial da administração de Justiça em todo o território nacional. O infante passava a estar diretamente envolvido no governo do país.

A guerra durara cerca de meio ano. Dom Afonso VI desfrutaria da nova paz por pouco tempo: faleceu em 1357.

Após a morte do rei, os matadores de Inês fugiram para Castela. Receavam a vingança do novo soberano. Terão transformado em valores portáteis os bens de que dispunham.

Não se sabe em que data, nem onde, nasceu Pêro Coelho. Há quem aponte Barcelos como a sua terra de origem, mas também há quem refira Vila Real e mesmo a Guarda. Sabe-se que foi executado em 1361.

Fidalgo de alta linhagem, contava Lourenço Viegas de Ribadouro (O Espadeiro) e Egas Moniz entre os seus ascendentes. Foi conselheiro do rei Dom Afonso IV de Portugal e um dos matadores de Inês de Castro, amante do príncipe herdeiro Dom Pedro.

Dom Pedro I apressou-se a empobrecê-lo. Doou a um fidalgo da sua confiança todas as terras que eram de Pêro Coelho. Terá feito o mesmo aos seus cúmplices.

Em Castela, Pêro Coelho tentou passar despercebido, levando uma vida recatada. Valeu-lhe de pouco.

De Álvaro Gonçalves, sabe-se menos.

Os reis de Portugal e de Espanha (primos, ambos Pedros e ambos “crus”) entenderam-se. Em 1360, Coelho e Álvaro Gonçalves foram trocados por dois nobres castelhanos refugiados em Portugal. Regressaram à Pátria para enfrentar mortes dolorosas. Diogo Lopes Pacheco escapou para França.

Há historiadores que consideram Pêro Coelho um patriota incorruptível. Terá sacrificado Inês pelo bem de Portugal. Por outro lado, provindo de uma linhagem que gerara reis, terá sentido como uma afronta o desdém a que o príncipe Dom Pedro votava sua esposa, Dona Constança Manuel.

Pêro já não era novo quando da morte de Inês e envelhecera quando o carrasco de Santarém lhe abriu o peito e lhe arrancou o coração para o entregar ao rei. Terá dito, instantes antes: acharás um coração mais forte que o de um touro e mais leal do que o de um cavalo.

A lenda conta que Dom Pedro lhe mordeu o coração e lhe mandou queimar o corpo. Não existia punição maior, naquele tempo.

Sobre o acontecido, ouçamos Fernão Lopes, que escreveu a crónica de El-rei Dom Pedro I:

A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarém onde el-Rei dom Pedro era; e el-Rei com prazer de sua vinda, porém magoado porque Diego Lopez fugira, os saiu fora a receber, e sanha cruel sem piedade lhos fez por sua mão meter a tormento, querendo que lhe confessassem quais foram na morte de Dona Inês culpados, e que o que seu pai tratava contra ele, quando andavam desavindos por caso da morte dela; e nenhum deles respondeu a tais perguntas coisa que a el-Rei prouvesse; e el-Rei com queixume dizem que deu um açoite no rosto a Pero Coelho, e ele se soltou então contra el-Rei em desonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, perjuro, algoz e carniceiro dos homens; e el-Rei dizendo que lhe trouxessem cebola e vinagre para o coelho, enfadou-se deles e mandou-os matar. A maneira de sua morte, sendo dita de forma abreviada, seria muito estranha e crua de contar, pois mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Álvaro Gonçalves pelas costas; e quais palavras houve, e aquele que lho tirava tinha pouca experiência daquele ofício, seria coisa bem dolorosa de ouvir, enfim, mandou-os queimar; e tudo feito ante os paços onde ele estava, de modo que comendo olhava quanto mandava fazer. Muito perdeu el-Rei da sua boa fama de tal escambo como este, o que foi tido em Portugal e em Castela por um mal muito grande, dizendo todos os bons que o ouviam, que os Reis erravam muito indo contra suas verdades, pois que estes cavaleiros estavam acoutados em seus reinos sob segurança.

Em julho de 1360, o rei anunciou em Cantanhede que, seis anos antes, casara secretamente com Inês de Castro, em Bragança. A sua palavra e os testemunhos, falsos ou autênticos, do seu capelão e de um dos seus criados bastaram para legitimar os filhos de Dona Inês.  

Algum tempo depois, mandou transladar os restos mortais de Inês para Alcobaça, onde fez construir dois túmulos magníficos.

Além da rainha e da bela Inês, que morreram cedo, Pedro I de Portugal teve um romance com uma certa Teresa e, segundo as más-línguas, com o escudeiro Afonso Madeira a quem, de acordo com Fernão Lopes, amava mais do que se deve aqui dizer.

O escudeiro foi pouco afortunado. Enredou-se com uma dama da corte. O caso chegou aos ouvidos do rei. Pedro reagiu à sua maneira: mandou capar o pobre Afonso. O escudeiro sobreviveu, mas engordou e perdeu a barba.

Dom Pedro I reinou durante dez anos. Apesar do seu feitio violento, foi estimado pelos portugueses. Manteve a paz externa e reforçou a independência de Portugal face à Igreja, mediante a consolidação do Beneplácito Régio que fazia depender da aprovação do rei a divulgação, em Portugal, dos documentos do Papa. Tratava-se de uma espécie de censura que permitia excluir das bulas e instruções o que fosse prejudicial aos interesses do país.

Vimos o que sucedeu a Pêro Coelho e a Álvaro Gonçalves. Falemos agora um pouco de Diogo Lopes Pacheco, que foi bem mais afortunado.

Era conselheiro do rei Afonso IV. Esteve, como sabemos, implicado na morte de Inês e testemunhou os juramentos do infante Dom Pedro, em 1355.

Conhecedor da natureza humana e do valor relativo dos juramentos, exilou-se, primeiro em Espanha e, depois, em França. Acabou por viver no estrangeiro também durante todo o reinado de Dom Fernando. Regressou a Portugal em 1384 e foi aprisionado pelo exército castelhano que cercava Almada. Uma troca de prisioneiros permitiu que fosse entregue ao Mestre de Avis.

Diogo Pacheco retomou a posse dos seus bens e regressou à vida política, voltando a ser nomeado membro do conselho real. Nas cortes de Coimbra, colaborou com João das Regras, a propósito do casamento de Dona Leonor Teles com João Lourenço da Cunha, e foi consultado sobre a legitimidade dos filhos de Dom Pedro e de Dona Inês. Teve uma velhice tranquila, vindo a falecer em 1393.

O caso de Pedro e de Inês esteve longe de constituir um amor fugaz. Não esmoreceu com a passagem dos anos, nem com os desgastes que as quatro maternidades hão de ter produzido na elegância da mulher.

Teria existido mais do que amor nesta ligação? As considerações políticas, a aliança com os Castros, a possibilidade de estender o seu poder sobre a Galiza e (quem sabe?) o sonho de vir a reinar também sobre Castela poderão ter consolidado a ligação sentimental.

Os historiadores dividem-se quanto ao cognome de Pedro I. Para uns é “justiceiro” e para outros “Cru”, que significa “cruel”. A sua ânsia de justiça levava-o a colaborar pessoalmente na tortura dos presos, para que confessassem.

A tortura (os tormentos) fazia parte da justiça medieval.

No entanto, o rei gostava de fazer sofrer. Era também um homem torturado.

Para finalizar a sua história, cito alguns parágrafos (truncados) do drama Pedro o Cru, de António Patrício.

A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos. Beijo-a como beijei a tua boca, como beijei a tua alma. Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Morreste moça para viveres na eternidade sempre moça. Bendito seja sempre o teu martírio! Bendito o lobo que há em mim.

Estás outra vez no reino pequenino. Cada árvore sabe a tua graça. A tarde cai lembrando o teu sorriso.



 



Referências

Patrício, António. Pedro, o cru. Paisagem Editora, Porto. (Sem data).  

 

 

 

  

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