A MORTE DE INÊS DE CASTRO
Demos agora
um salto considerável na geografia e outro, muito maior, na contagem do tempo. Situemo-nos em Portugal, durante o reinado de D. Afonso IV. Falemos da morte de
Inês de Castro e dos seus assassinos.
Inês Pires
de Castro pertencia a uma família galega poderosa. Era filha bastarda de D.
Pedro Fernández de Castro (a quem chamavam “o da guerra”), camareiro-mor de
Afonso XI de Castela e primo-direito do príncipe D. Pedro, futuro rei de
Portugal. Inês era, assim, prima segunda de Pedro. A sua mãe era portuguesa.
Inês chegou a
Portugal como dama da companhia de Dona Constança Manuel, que se vinha casar
com o herdeiro do trono.
Era uma
jovem muito bela de pescoço longo, cabelos loiros e olhos verdes. Chamavam-lhe
“o colo de garça”. Depressa seduziu o Infante. Esse Pedro arrebatado, gago,
bruto e um pouco louco, perdeu-se de amores por ela.
Dona
Constança Manuel teve seguramente culpas no cartório. Presumo que fosse feia.
Esperta não era. Nenhuma mulher avisada traz para junto do noivo uma rapariga
mais linda do que ela.
Ao tempo, não
se esperava de uma dama ilustre consorciada com um monarca que lhe tivesse amor. Bastava que lhe desse filhos, de preferência
varões. Da parte do marido, nem sequer se exigia fidelidade.
A História
de Pedro e de Inês tornou-se mito. “Aquela que, depois de morta, foi rainha”
conta-se as mais conhecidas histórias de amor de todas as épocas. No entanto, o
beija-mão do cadáver desenterrado parece ter sido acrescentado tardiamente à
lenda. Faz lembrar o ultra-romantismo do século XIX.
De qualquer
forma, Constança viria a desempenhar um papel relativamente breve nesta
tragédia. Morreu em 1345, duas semanas depois de dar à luz o terceiro filho, o
futuro rei D. Fernando.
Vale a pena
esmiuçar um pouco a vida de D. Constança, de memória geralmente obscurecida
pelo brilho da sua rival. Era filha de D. João Manuel, neto de Fernando III de
Castela, duque de Penafiel, nobre de muito poder e ambição, que fora tutor e
co-regente do Reino durante a mocidade de Afonso XI.
Logo ao
chegar aos 14 anos, Afonso XI assumiu as rédeas do poder e afastou o duque, que
ficou melindrado.
As filhas
dos poderosos desempenhavam com frequência papéis importantes nos jogos de
alianças. O pai de Constança prometeu em casamento a filha de seis anos ao
senhor de Biscaia, D. João, o Torto, que se dispunha a apoiar D. João Manuel numa
projetada guerra contra o rei.
O jovem
Afonso XI trocou-lhes as voltas. Fez as pazes com D. João Manuel, pedindo-lhe a
filha em casamento. Deslumbrado, o duque aceitou e o senhor da Biscaia viu-se
forçado a sair do país, para salvar a vida.
Assim, a
pequena Constança viu o primeiro noivado desfeito. Depois, o casamento foi
ratificado pelas Cortes de Valladolid e a menina foi levada para os paços
reais, onde deveria permanecer até atingir a idade adequada para consumar a
união nupcial.
Afonso XI revelou-se
muito cedo um bom jogador no xadrez da política ibérica. Resolvida a ameaça de
rebelião, o rei de Castela repudiou D. Constança, antes de o casamento ser
consumado, e encarcerou-a no castelo de Toro. A menina foi devolvida à casa
paterna aos doze anos de idade. Afonso casou, em 1328, com Maria de Portugal,
filha de D. Afonso IV.
Podemos
imaginar o acumular de frustrações e desenganos ao logo da curta vida da
rapariguinha.
Por essa
altura, Inês de Castro, sua prima afastada, foi para junto dela, como dama de
companhia. Eram de idades aproximadas e pouco admira que se tenham tornado
amigas e confidentes.
Em 1336,
Constança contaria quase 20 anos. A família arranjou-lhe casamento com o
príncipe Pedro, herdeiro do trono português.
Afonso XI, o
antigo marido, não ficou contente com a ideia. Ainda consentiu no casamento por
procuração, mas não autorizou a noiva de Pedro a sair de Castela. A cerimónia
realizou-se em Évora, no convento de S. Francisco. D. Pedro esteve presente,
mas dormiu sozinho nessa noite.
Afonso IV de
Portugal andava já zangado com o genro, que lhe trataria mal a filha. Os dois
reinos entraram em guerra. O conflito arrastou-se até 1339, sem que ficasse à vista
um vencedor claro. No sul da Península, os mouros regalavam-se com as batalhas
entre os seus inimigos.
O impasse
foi ultrapassado por negociações e o rei de Castela acabou por aceitar a saída
de Constança para Portugal. Em 1340, Dona Constança Manuel casou de facto com
Pedro de Portugal.
Em 1342,
nasce Maria, a primeira filha do casal.
Por essa
altura, Constança dera já conta da paixão do marido pela sua dama de companhia.
Para tentar condicionar-lhe o comportamento, convidou Inês de Castro para
madrinha do seu segundo filho, a que deu o nome de Luís. As regras vigentes à
época condenavam vivamente as relações amorosas entre compadres e comadres.
Luís viveu
apenas alguns dias e Pedro parece ter-se sentido mais livre.
O rei fez o
que pôde para controlar a situação e obrigou Dona Inês a retirar-se para
Albuquerque, em Castela.
A favorita
do príncipe herdeiro permaneceu ali até à morte de Constança Manuel.
Consta que
os amantes se encontravam às escondidas na vila do Jarmelo, perto da Guarda.
Escreveu
Fernão Lopes, na crónica de El Rei Dom Pedro I: Semelhante amor, qual El Rei Dom
Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma pessoa.
A que
esperara vir a ser rainha, primeiro de Castela e, depois, de Portugal, teve uma
sorte madrasta. Constança morreu em 1345, pouco depois de dar à luz Fernando, futuro rei
de Portugal.
O príncipe viúvo não entristeceu. Mandou
Inês regressar do exílio, assumiu o concubinato, escandalizando a corte, e
desinteressou-se do governo do Reino. Iam mal os tempos e a peste negra
assolava o país. Pedro tentou mesmo casar-se e, em 1351, pediu ao Papa uma bula de
dispensa de parentesco.
A ligação de
Pedro e Inês esteve longe de constituir uma paixão fugaz. Durou mais de uma
dúzia de anos. Inês teve quatro filhos do príncipe, que seria gago e epilético,
mas bom reprodutor. Sobreviveram três. Contavam-se entre eles dois varões,
eventuais candidatos à coroa de Portugal: João, nascido em 1349 e Dinis, seis
anos mais novo.
Dom Afonso IV contemplou o país e os netos e considerou essencial escolher entre eles. Optou por Dom Fernando, o herdeiro legítimo do trono.
Não se sabe se Pedro alguma vez
declarou a sua preferência pelos filhos da amante, mas tratava-se de uma
possibilidade real e o risco de uma guerra com Castela espreitava no horizonte.
Falava-se no desejo de independência do antigo Reino da Galiza e da sua eventual união a
Portugal. Entre Pedro e os irmãos de Inês, Fernando e Álvaro Peres de Castro,
desenvolvera-se uma amizade estreita. Segundo alguns, esses galegos, deteriam
uma influência exagerada na corte portuguesa. Em colisão com Pedro I de
Castela, procuravam obter do príncipe herdeiro português apoio político e
militar.
O rei
“Bravo” escutou os seus conselheiros e mandou matar Inês.
Pedro e Inês
passaram alguns anos no norte do país. A dada altura, voltaram a Coimbra e
instalaram-se no Paço de Santa Clara, edificado por ordem da Rainha Santa
Isabel, avó de Pedro.
Os fidalgos Pêro Coelho,
Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco deslocaram-se a Coimbra. Encontraram a
amante do príncipe naquele enlevo de alma ledo e cego que a fortuna não deixa
durar muito e degolaram-na. Pedro ausentara-se para caçar. O crime aconteceu a
7 de janeiro de 1355.
O príncipe
herdeiro contava com apoiantes que chegassem para se lançar numa revolta armada
contra seu pai e assim fez. A rebelião não constituía novidade, naqueles tempos
duros: já Afonso IV, quando era príncipe, reunira um exército contra Dom Dinis,
o seu progenitor.
Dom Pedro
agregou à sua volta um grupo de seguidores. Aos Castros e aos seus vassalos,
juntou amigos e um grupo de criminosos amnistiados. Na
primavera de 1355, as hostes do encolerizado príncipe deslocaram-se pelas
comarcas de Entre-Douro e Minho e Trás-os-Montes, em direção ao Porto,
conquistando castelos e devastando terras de cultivo.
Sabe-se
pouco sobre esta guerra civil. O objetivo dos rebeldes era tomar a cidade do
Porto, com o intuito de dominar o norte do país, onde os velhos senhores
feudais, descontentes com o processo de centralização administrativa intentada por Dom Afonso IV, os poderiam apoiar. No
entanto, o Porto estava bem defendido e comandado por Dom Álvaro Gonçalves
Pereira, Prior do Hospital.
Falhado esse
propósito, o exército rebelde retirou-se, procurando ir ao encontro de Dom Afonso
IV. A rainha-mãe, Dona Beatriz,e o arcebispo de Braga, Dom Guilherme, intervieram como medianeiros e convenceram o infante a fazer as pazes com o pai. A 5 de
agosto de 1355 foi assinado, em Canaveses, o acordo que pôs termo ao conflito.
Dom Pedro
jurou que perdoaria a todos que haviam participado na morte de Inês e que seria
um vassalo leal e um filho obediente. Nem ele, nem os seus seguidores, tomariam
posse de domínios reais. O rei concedia perdão a todos os revoltosos, atribuía
um condado e uma renda anual a D. João, filho de Pedro e de Inês, e delegava no
príncipe o essencial da administração de Justiça em todo o território nacional.
O infante passava a estar diretamente envolvido no governo do país.
A guerra
durara cerca de meio ano. Dom Afonso VI desfrutaria da nova paz por pouco tempo:
faleceu em 1357.
Após a morte
do rei, os matadores de Inês fugiram para Castela. Receavam a vingança do novo
soberano. Terão transformado em valores portáteis os bens de que dispunham.
Não se sabe
em que data, nem onde, nasceu Pêro Coelho. Há quem aponte Barcelos como a sua
terra de origem, mas também há quem refira Vila Real e mesmo a Guarda. Sabe-se
que foi executado em 1361.
Fidalgo de
alta linhagem, contava Lourenço Viegas de Ribadouro (O Espadeiro) e Egas Moniz
entre os seus ascendentes. Foi conselheiro do rei Dom Afonso IV de Portugal e um
dos matadores de Inês de Castro, amante do príncipe herdeiro Dom Pedro.
Dom Pedro I
apressou-se a empobrecê-lo. Doou a um fidalgo da sua confiança todas as terras
que eram de Pêro Coelho. Terá feito o mesmo aos seus cúmplices.
Em Castela,
Pêro Coelho tentou passar despercebido, levando uma vida recatada. Valeu-lhe de
pouco.
De Álvaro
Gonçalves, sabe-se menos.
Os reis de
Portugal e de Espanha (primos, ambos Pedros e ambos “crus”) entenderam-se. Em
1360, Coelho e Álvaro Gonçalves foram trocados por dois nobres castelhanos
refugiados em Portugal. Regressaram à Pátria para enfrentar mortes dolorosas.
Diogo Lopes Pacheco escapou para França.
Há
historiadores que consideram Pêro Coelho um patriota incorruptível. Terá
sacrificado Inês pelo bem de Portugal. Por outro lado, provindo de uma linhagem
que gerara reis, terá sentido como uma afronta o desdém a que o príncipe Dom Pedro votava sua esposa, Dona Constança Manuel.
Pêro já não
era novo quando da morte de Inês e envelhecera quando o carrasco de Santarém lhe
abriu o peito e lhe arrancou o coração para o entregar ao rei. Terá dito,
instantes antes: acharás um coração mais forte que o de um touro e mais leal
do que o de um cavalo.
A lenda
conta que Dom Pedro lhe mordeu o coração e lhe mandou queimar o corpo. Não
existia punição maior, naquele tempo.
Sobre o
acontecido, ouçamos Fernão Lopes, que escreveu a crónica de El-rei Dom Pedro I:
A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero
Coelho, e chegaram a Santarém onde el-Rei dom Pedro era; e el-Rei com prazer de
sua vinda, porém magoado porque Diego Lopez fugira, os saiu fora a receber, e
sanha cruel sem piedade lhos fez por sua mão meter a tormento, querendo que lhe
confessassem quais foram na morte de Dona Inês culpados, e que o que seu pai
tratava contra ele, quando andavam desavindos por caso da morte dela; e nenhum
deles respondeu a tais perguntas coisa que a el-Rei prouvesse; e el-Rei com
queixume dizem que deu um açoite no rosto a Pero Coelho, e ele se soltou então
contra el-Rei em desonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, perjuro,
algoz e carniceiro dos homens; e el-Rei dizendo que lhe trouxessem cebola e
vinagre para o coelho, enfadou-se deles e mandou-os matar. A maneira de sua
morte, sendo dita de forma abreviada, seria muito estranha e crua de contar,
pois mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Álvaro Gonçalves
pelas costas; e quais palavras houve, e aquele que lho tirava tinha pouca
experiência daquele ofício, seria coisa bem dolorosa de ouvir, enfim, mandou-os
queimar; e tudo feito ante os paços onde ele estava, de modo que comendo olhava
quanto mandava fazer. Muito perdeu el-Rei da sua boa fama de tal escambo como
este, o que foi tido em Portugal e em Castela por um mal muito grande, dizendo
todos os bons que o ouviam, que os Reis erravam muito indo contra suas
verdades, pois que estes cavaleiros estavam acoutados em seus reinos sob
segurança.
Em julho de
1360, o rei anunciou em Cantanhede que, seis anos antes, casara secretamente
com Inês de Castro, em Bragança. A sua palavra e os testemunhos, falsos ou
autênticos, do seu capelão e de um dos seus criados bastaram para legitimar os
filhos de Dona Inês.
Algum tempo
depois, mandou transladar os restos mortais de Inês para Alcobaça, onde fez construir dois túmulos magníficos.
Além da
rainha e da bela Inês, que morreram cedo, Pedro I de Portugal teve um romance
com uma certa Teresa e, segundo as más-línguas, com o escudeiro Afonso Madeira
a quem, de acordo com Fernão Lopes, amava mais do que se deve aqui dizer.
O escudeiro
foi pouco afortunado. Enredou-se com uma dama da corte. O caso chegou aos
ouvidos do rei. Pedro reagiu à sua maneira: mandou capar o pobre Afonso. O
escudeiro sobreviveu, mas engordou e perdeu a barba.
Dom Pedro I
reinou durante dez anos. Apesar do seu feitio violento, foi estimado pelos
portugueses. Manteve a paz externa e reforçou a independência de Portugal face
à Igreja, mediante a consolidação do Beneplácito Régio que fazia depender da
aprovação do rei a divulgação, em Portugal, dos documentos do Papa. Tratava-se
de uma espécie de censura que permitia excluir das bulas e instruções o que
fosse prejudicial aos interesses do país.
Vimos o que
sucedeu a Pêro Coelho e a Álvaro Gonçalves. Falemos agora um pouco de Diogo
Lopes Pacheco, que foi bem mais afortunado.
Era
conselheiro do rei Afonso IV. Esteve, como sabemos, implicado na morte de Inês e
testemunhou os juramentos do infante Dom Pedro, em 1355.
Conhecedor
da natureza humana e do valor relativo dos juramentos, exilou-se, primeiro em Espanha e,
depois, em França. Acabou por viver no estrangeiro também durante todo o reinado
de Dom Fernando. Regressou a Portugal em 1384 e foi aprisionado pelo exército
castelhano que cercava Almada. Uma troca de prisioneiros permitiu que fosse
entregue ao Mestre de Avis.
Diogo
Pacheco retomou a posse dos seus bens e regressou à vida política, voltando a
ser nomeado membro do conselho real. Nas cortes de Coimbra, colaborou com João
das Regras, a propósito do casamento de Dona Leonor Teles com João Lourenço da
Cunha, e foi consultado sobre a legitimidade dos filhos de Dom Pedro e de Dona Inês.
Teve uma velhice tranquila, vindo a falecer em 1393.
O caso de
Pedro e de Inês esteve longe de constituir um amor fugaz. Não esmoreceu com a
passagem dos anos, nem com os desgastes que as quatro maternidades hão de ter
produzido na elegância da mulher.
Teria existido mais do que amor nesta ligação? As considerações políticas, a aliança com os
Castros, a possibilidade de estender o seu poder sobre a Galiza e (quem sabe?)
o sonho de vir a reinar também sobre Castela poderão ter consolidado a ligação
sentimental.
Os
historiadores dividem-se quanto ao cognome de Pedro I. Para uns é “justiceiro”
e para outros “Cru”, que significa “cruel”. A sua ânsia de justiça levava-o a
colaborar pessoalmente na tortura dos presos, para que confessassem.
A tortura
(os tormentos) fazia parte da justiça medieval.
No entanto,
o rei gostava de fazer sofrer. Era também um homem torturado.
Para
finalizar a sua história, cito alguns parágrafos (truncados) do drama Pedro o
Cru, de António Patrício.
A minha dor,
Inês, beijo-a nos olhos. Beijo-a como beijei a tua boca, como beijei a tua
alma. Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Morreste moça para viveres na
eternidade sempre moça. Bendito seja sempre o teu martírio! Bendito o lobo que
há em mim.
Estás outra
vez no reino pequenino. Cada árvore sabe a tua graça. A tarde cai lembrando o
teu sorriso.
Referências
Patrício,
António. Pedro, o cru. Paisagem Editora, Porto. (Sem data).
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