DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 12 de dezembro de 2020

 

 

 A EXECUÇÃO DA FAMÍLIA ROMANOV

 


A 17 de julho de 1918, a família imperial russa foi abatida a tiro, em Ecaterimburgo, por um destacamento de tropas bolcheviques comandadas por Yakov Yurovski. Foram mortos a frio o czar Nicolau II, a czarina Alexandra e os cinco filhos do casal: Olga, Tatiana, Maria, Anastasia e Alexei. Os amigos que tinham optado por acompanhar os soberanos no exílio foram também executados.

Yurovsky cumpria ordens do Soviete Regional do Ural. Consta que um número reduzido de guardas se recusou a participar no massacre.

Seria meia-noite quando Yakov Yurovsky, o chefe dos carcereiros, mandou o médico da família real, Eugene Botkin, chamar os Romanov. Os acontecimentos estavam a precipitar-se em Ecaterimburgo e seria preciso transferir o antigo czar e a família para um local seguro.

A viagem foi curta. Os prisioneiros limitaram-se a descer alguns lances de degraus, até à cave do edifício. Foram informados de que estaria a chegar um camião para os transportar.

O antigo Nicolau II pediu ao carcereiro que mandasse trazer duas cadeiras para que a esposa e o filho mais novo, doente, se sentassem. Minutos depois, entrou o pelotão de execução.

Yurovsky leu em voz alta a ordem emitida pelo soviete do Ural: como Nicolau Alexandrovich e os seus familiares mantinham contactos com os inimigos da União Soviética, tinham de ser executados.

O czar voltou-se para a família, mas não teve tempo para contestar a sentença. Contou, mais tarde, um guarda que a czarina e a grã-duquesa Olga esboçaram o sinal da cruz. As balas impediram-nas de o terminar.

Os matadores contiuaram a atirar até todas as vítimas tombarem. Os criados não foram poupados. Yurovsky terá dado pessoalmente os tiros de misericórdia ao czar e ao pequeno Alexei. Foi preciso abrir as portas para que o fumo da pólvora se dispersasse.

As raparigas que não morreram de imediato foram liquidadas à baioneta.

Os corpos da família real russa e dos seus servidores mais chegados foram levados para uma mina, na floresta Koptyaki. As grã-duquesas e uma das suas criadas foram despidas e despojadas das valiosas joias que transportavam, costuradas nas roupas interiores. Fala-se de quase quilo e meio de diamantes.

Os matadores preocuparam-se com o eventual reconhecimento posterior dos cadáveres. Os corpos foram primeiro queimados e depois colocados numa vala e regados com ácido sulfúrico.  O chefe dos executores procurou derrubar o teto da mina com granadas de mão. Tendo falhado, mandou disfarçar a cova com terra e ramos de árvore.

Os matadores regressaram à mina no dia seguinte e acharam as sepulturas demasiado fáceis de encontrar. Removeram os corpos e amontoaram-nos num camião.

O veículo de transporte dirigiu-se a uma mina de cobre mais profunda situada a oeste de Ecaterimburgo, mas atolou-se num dos muitos buracos da estrada, perto de um lugar apelidado de “Prado do porco”.  Yurovsky mudou de ideias e resolveu fazer o segundo enterro logo ali.   

Cavou-se outra vala pouco profunda. Os rostos dos mortos foram esmagados com as coronhas das espingardas, para não serem reconhecidos. Seguiu-se nova irrigação com ácido sulfúrico. É curioso notar que a execução esgotou as reservas de ácido sulfúrico dos estabelecimentos de Ecaterimburgo. Antes de serem cobertos com terra, os restos mortais dos descendentes da família que governara a Rússia durante várias gerações foram cobertos com cal virgem.

Para dificultar ainda mais a eventual identificação dos corpos, o carrasco mandou sepultar o czarevich Alexei e uma das suas irmãs numa cova separada. Não se sabe se alguém rezou por eles.

Decorria a guerra civil entre os bolcheviques “vermelhos” e os “russos brancos”.

No ano anterior, o governo provisório de Alexander Kerensky mandara transferir a família real russa para Tobolsk, na Sibéria, com o intuito de a proteger da violência revolucionária. Kerenski era um político social-democrata. Antigo advogado, foi o segundo primeiro-ministro do Governo Provisório russo saído da revolução de fevereiro. O czar e a sua família foram alojados no palácio do governador, onde desfrutaram de certo conforto.

Quando, em outubro de 1917, os bolcheviques derrubaram o Governo Provisório e tomaram o poder, o destino dos Romanov ficou traçado.

A família real russa passou a ser tratada com hostilidade e foi sendo sujeita a humilhações. Falava-se cada vez mais no eventual julgamento do antigo czar.

Em abril de 1918, o czar, sua esposa Alexandra e sua filha Maria foram transferidos para Ecaterimburgo, no flanco ocidental dos Montes Urais. Alexei, hemofílico, encontrava-se muito doente e ficou em Tobolsk com as suas irmãs Olga, Tatiana e Anastásia. Iriam juntar-se aos pais no mês seguinte.

A guerra civil prosseguia, com as forças “brancas” a enfrentar o Exército Vermelho. Em meados de junho, as tropas da Legião Checoslovaca estavam a aproximar-se de Ecaterimburgo. Teriam a intenção de reforçar o controlo da linha ferroviária transiberiana. Os bolcheviques desconfiaram das intenções dos checoslovacos, que poderiam estar a tentar libertar o czar e a sua família. Foi esse receio que apressou o massacre. 

O facto é que os checos chegaram uma semana depois e, a 25 de julho, ocuparam a cidade. 

Os Romanov eram importantes para os bolcheviques. Se o czar escapasse, poderia reunir apoios para a sua casa. Qualquer membro vivo da família poderia ser considerado por algumas nações europeias o legítimo governante da Rússia. Os inimigos dos revolucionários russos ficariam reforçados.

A tragédia ficou também assinalada por um episódio de contraespionagem. Pyotr Voykov, membro da Tcheca, uma das primeiras polícias secretas da União Soviética, fez-se passar por oficial monárquico e endereçou ao czar algumas cartas em francês. As cartas tiveram respostas, escritas nos envelopes ou nos espaços entre as linhas e foram mais tarde utilizadas pelo governo bolchevique para justificar a execução da família imperial.

Dois dias após o massacre, apareceu na imprensa russa a notícia de que o czar tinha sido executado por ordem do Soviete Regional do Ural, face à aproximação da Legião Checoslovaca.

Há historiadores que defendem que a ordem partiu de um ponto muito mais alto da hierarquia bolchevique, sendo atribuída ao governo de Moscovo e, especificamente, a Yakov Sverdlov e a Lenine. Lev Trotsky escreveu no seu diário:

A minha visita seguinte a Moscovo teve lugar após a queda de Ecaterimburgo. Falando com Sverdlov, perguntei-lhe: Onde está o czar? Respondeu-me: foi fuzilado. E a família? A família também. Todos? Todos. Que acha disso? Eu não respondi e perguntei: Quem tomou a decisão? Resolvemos isso aqui. Lenine achou que, nas difíceis circunstâncias do momento, não poderíamos dar uma vantagem dessas aos Brancos.

Em 1993, uma investigação do Comité de Investigação da Rússia sobre o massacre da família Romanov, dirigida por Vladimir Solovyov, conclui pela inexistência de documentos que indicassem que a ordem de execução tivesse sido dada por Lenine ou por Sverdlov. Há, contudo, indícios de que as ordens tenham saído de Moscovo, já depois de as mortes estarem consumadas. As dificuldades de comunicação registadas naquela época difícil dão algum suporte a essa possibilidade.

Diz-se que Lenine tinha um cuidado exagerado com o sigilo das suas instruções. Recorria a telegramas codificados e exigia que as fitas de telégrafo utilizadas fossem destruídas. Depois, a hagiologia soviética, que reservara a Lenine o lugar maior no seu panteão, empenhou-se em apagar da biografia de Lenine qualquer mancha de culpa. 

Em julho de 1991, os corpos da maioria da família imperial russa foram exumados. A identificação dos cadáveres foi feita por análise do DNA. Os restos mortais foram sepultados com honras de estado na catedral de Pedro e Paulo, em São Petersburgo, na presença do presidente Boris Yeltsin.

O livro que vou escrevendo aborda crimes violentos. Constam dele, contudo, apenas dois episódios de massacre. É-me impossível não estabelecer comparações entre os extermínios das famílias Távora e Romanov.

Bem sei que as matanças ocorreram em condições substancialmente separadas no espaço e no tempo. Lisboa dista muito dos Montes Urais e decorreram 159 anos entre os dois assassinatos coletivos. O espaçamento das épocas explica também parte das envolvências. Os Távoras foram barbaramente torturados, enquanto os Romanov não sofreram maus tratos físicos.

Restam, contudo, semelhanças notórias. Os martírios de duas famílias inteiras obedeceram a motivações políticas. Julgo que ninguém de bom senso acredita hoje que a velha marquesa de Távora, amiga da rainha, tenha estado direta ou indiretamente ligada ao atentado contra o rei José.

Se, no tempo do marquês de Pombal, estava em causa a necessidade de centralizar o poder real para reunir condições para a modernização do país, na época de Lenine, a implantação da União Soviética dependia da solidez do Exército Vermelho.

Que os leitores analisem factos e circunstâncias e julguem os acusados nos tribunais das consciências. Poderão aceitar, ou recusar as motivações dos matadores. Outras penas não poderão já ser aplicadas. 


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