JE NE SUIS PAS CHARLIE!
III
Há razões de queixa bem conhecidas por parte das populações e
dos líderes maometanos em relação ao chamado ocidente.
A criação do Estado de Israel em território árabe, em 1948,
deu origem a uma série de guerras periódicas sem fim à vista. Israel é o
principal aliado americano no Médio Oriente.
O poderoso lobby judaico nos E.U.A.
parece inamovível. O apoio que dão aos seus confrades tem-lhes permitido vencer
todas as guerras e desrespeitar sistematicamente as deliberações da ONU.
A invasão do Iraque (um grande produtor de petróleo) em 2003,
levada a cabo por uma coligação liderada pelos norte-americanos, a coberto de
um pretexto reconhecidamente falso, desestabilizou toda a região. Os confrontos
entre sunitas e xiitas têm-se mantido, com intermitências. Em 2014, rebentaram
combates sangrentos no norte e no leste do país, onde a maioria da população é
sunita. Seguiu-se, como já vimos, a criação do ISIS. Muitos observadores
receiam que o conflito alastre a estados vizinhos.
A intervenção militar da NATO na guerra civil da Líbia em
2011, com o derrube e a execução do velho líder Muammar Gaddafi, lançou a
instabilidade no país, que é actualmente disputado por dois governos e dois
parlamentos. Ainda no dia 5 de fevereiro ocorreram combates em Benghazi, a
principal cidade do Leste deste país norte-africano (também produtor de
petróleo...)
Recentemente, o grupo terrorista Boko Haram tem assolado o
nordeste da Nigéria, prolongando o espaço de actuação do ISIS.
O petróleo barato custa, afinal, muito caro. A guerra que os
americanos levaram ao Iraque e a Tripoli está a fazer correr sangue no velho
continente.
Nos países árabes, a pobreza, a repressão, a corrupção, a
falta de educação e de perspectivas estão na origem da raiva.
Aos conflitos que grassam em boa parte do Médio Oriente há a
juntar o choque civilizacional patente nos países ocidentais, que se têm
mostrado incapazes de lidar com as suas crescentes populações de fé muçulmana.
Muitos maometanos europeus sentem-se entre dois fogos. Sabem
que a violência leva ao medo e que o medo engorda os preconceitos. Receiam o
isolamento social e temem pela sua segurança. Um pouco mais e haverá mesquitas a
arder um pouco por toda a Europa.
Trata-se de um círculo vicioso: a violência engendra justificados
preconceitos contra os que a praticam, mas também contra a maioria dos inocentes que se parecem com eles. A percepção
dos preconceitos gera mais violência.
Muitos muçulmanos sentem-se desnecessariamente ofendidos. Até
os mais moderados encaram as caricaturas do profeta como blasfémias.
E se não tivessem existido as caricaturas? Evitar-se-iam
actos terroristas? Não. O terrorismo tem uma dinâmica própria. O ataque dar-se-ia
noutro lugar, com vítimas diferentes.
Segundo a «Time» de 19 de Janeiro, o ataque ao Charlie Hebdo tinha
sido anunciado: antes do Natal, em eventos separados, dois condutores lançaram
os automóveis contra multidões que faziam compras em Nantes e Dijon. As
instalações da revista haviam sido já atacadas à bomba em Dezembro de 2011.
A França abriga mais de 5 milhões de muçulmanos. Muitos são
filhos de emigrantes e têm nacionalidade francesa. Trata-se da maior população
islâmica da Europa. Ora, o desemprego em França ronda os 11% e é maior nas comunidades
emigradas. Muitos jovens muçulmanos estão desiludidos com as perspectivas de
vida e sentem a hostilidade dos franceses europeus.
A questão da integração dos grupos islamizados nas sociedades
ocidentais é complexa e demorará décadas a resolver. Não é viável expulsar os muçulmanos
na Europa e, se o fosse, não resolveria o problema. Resta procurar pontos de encontro
entre as civilizações, ao mesmo tempo que se reforça a segurança. Não conheço outro
caminho. Julgo que ninguém conhece.
Sem abdicar dos grandes princípios que orientam a nossa civilização,
será necessário procurar entender o Outro e respeitá-lo. Provocações desnecessárias não constituem um exercício de liberdade. JE NE SUIS PAS CHARLIE.
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