TRANCOSO
Trancoso é terra linda, de verão e de inverno. A parte
velha da vila permanece entre muralhas e o coração das gentes continua a bater
mais forte no interior do peito couraçado. No entanto, o casario extravasou há
muito do castelo. Armando gostava de o comparar aos ovos de uma galinha
gigantesca que, não cabendo já no ninho, se espalhassem no espaço em redor.
Maria Helena e Armando entraram por uma das portas
amplas da fortificação e estacionaram o automóvel logo a seguir, junto à Câmara
Municipal.
No largo fronteiro, a estátua do profeta parecia deslocada, no tempo e no lugar. A escultura era estranha. A figura nada tinha de sapateiro. Parecia antes um fidalgo baixote e bem trajado, como os viam os ilustradores de contos infantis. Bandarra não adivinhara que iria ter um monumento. Provavelmente, não gostaria de ser ver assim representado. Os artífices do couro e da sovela eram modestos, mas pareciam gente a valer.
No largo fronteiro, a estátua do profeta parecia deslocada, no tempo e no lugar. A escultura era estranha. A figura nada tinha de sapateiro. Parecia antes um fidalgo baixote e bem trajado, como os viam os ilustradores de contos infantis. Bandarra não adivinhara que iria ter um monumento. Provavelmente, não gostaria de ser ver assim representado. Os artífices do couro e da sovela eram modestos, mas pareciam gente a valer.
Era fácil a Helena imaginar o homem subir ao banquinho
de trabalho e recitar rimas coxas para quem o quisesse ouvir. Gonçalo Anes
Bandarra previra uma sucessão de desgraças e, para os portugueses que
sobrevivessem às tragédias que anunciava, o advir de nova era de glória e
prosperidade. Morrera antes de nascer o rei cujo mito ajudara a construir.
Percorreram a pé uma rua com mais lojas que fregueses. Armando
reparou num livro sobre as profecias do Bandarra, exposto na montra duma
papelaria. Ombreava com uma biografia do padre Costa, o cidadão mais prolífico
de Trancoso e talvez do País. Tivera cerca de 300 filhos de mais de cinquenta
mulheres. Eram os dois best-sellers
locais. Helena entrou para comprar o volume de trovas, ainda que achasse a capa
demasiado vistosa.
Prosseguiram até ao largo onde se via a igreja de S. Pedro e
o pelourinho de gaiola. Maria Helena foi tirando fotografias com a sua pequena
máquina digital.
− O pelourinho é muito bonito – declarou Armando.
− Era neles que se administravam a primeira justiça –
informou Maria Helena. Os presos eram ali amarrados e depois chicoteados, em
público. Os liberais consideraram-nos símbolos da tirania e derrubaram uns
tantos, por volta de 1834. Acontece o mesmo em muitas revoluções. Deita-se
abaixo património cultural.
O templo ficava mesmo em frente. Armando comentou:
− Sabes? Nunca gostei muito das igrejas da minha terra.
Acho que Trancoso merecia melhor.
Maria Helena não fez comentários. As críticas ficam
melhor aos indígenas.
Deram a volta ao templo. Parecia fechado. Um pouco a
medo, Helena carregou na alavanca da fechadura. A porta estava no trinco e abriu-se.
A campa do Bandarra
ficava logo à entrada. Estava protegida por um vidro grosso que tinha sido colocado
tarde demais. Os dizeres gravados na pedra já não se podiam ler. Uma placa, ao
lado, substituía-os.
Aqui
jaz Gonçaliannes Bandarra natural desta Villa que profitizou a restauração
deste Reino, e que havia de ser no anno de seiscentos e quarenta por el Rey Dom
João o quarto noso Senhor, que hoje Reina.
Pouca gente na terra se importava com as Trovas. Quase
ninguém as lia. No entanto, a campa do sapateiro era ponto de passagem
obrigatório dos circuitos turísticos.
Maria Helena olhou a pedra levantada e pareceu-lhe tão
falsa como outras que conhecia. Que importava? Alguém queria saber do que
dissera o sapateiro? Ficara-lhe a fama de adivinho. Espíritos ilustres, como
Vieira e Pessoa, tinham procurado interpretar as suas quadras e dar-lhes sentidos
novos. A seu ver, não tinham acrescentado glória aos próprios nomes.
Texto extraído do romance "O Túmulo de Camões", de António Trabulo
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