PADRE JÚLIO GOMES
O HOMEM
António
Moreirão
Natural de Almendra,
nascido em 1871, o padre Júlio César Gomes descendia de uma família abastada e
complementava uma prole numerosa: seis irmãos – quatro homens e duas mulheres.
Parafraseando, parcialmente, Sá de
Miranda, tracemos o seu carácter:
“Homem
dum só parecer,
De um só rosto e uma só
fé,
Tudo o mais pode ser,
Mas
frouxo e sem carácter é que não é.”
Este homem que amava Deus,
que amava, ajudava e defendia os desditosos, ousou amar uma mulher: a filha do
dono da casa onde se hospedara, quando nomeado pároco do Terrenho.
Um ano os separava na
idade e o seu profundo e desmedido amor os uniu para a vida inteira.
Ela havia de ser
encarcerada no seu próprio quarto, durante um ano, e ele transpôs a “Teja” e
aquartelou em Moreira de Rei, sua nova paróquia.
Moreira de Rei havia de
ser o Paraíso para os amores de Júlio e Carmina. Ela, sempre que podia, dava
uma escapadela e aí se entregavam à grandeza e pureza dos seus amores sem
limites.
Moreira acolheu, não
hostilizou e beneficiou. Recebeu a inteligência e a capacidade de um homem
superior que pôs todas as suas forças e influências – que haviam de ser muitas
– ao serviço dos seus paroquianos, defendendo-os e orientando-os junto dos
poderes públicos, onde era ouvido e se fazia ouvir… A eles se entregou, a todos
defendeu, a todos ajudou e todos beneficiaram do seu lema: “Aos ricos nada levo
porque são amigos – aos pobres nada levo por nada terem”.
Aplicando e desenvolvendo
o seu espírito humanista, o padre Júlio, a breve trecho, se tornou a voz, o
querer e o sentir das gentes de Moreira.
Entretanto, as visitas de
Carmina são cada vez mais amiudadas e as presenças mais alongadas – presenças e
ausências equilibram-se: mês cá, mês lá…
O Bispo impõe o corte
cerce do relacionamento. O padre não cede. Sucedeu-se a suspensão do renitente,
que durou dois meses. O Bispo, perante tão forte caráter, reconsiderou e
recuou.
Os filhos sucedem-se:
primeiro o varão, a que havia de chamar Hermínio, e que pouco tempo vivera
(três ou quatro anos). Depois nasce a Carlota, que havia de morrer de parto,
casada que foi com um professor. Do filho da infortunada Carlota havia de se
ocupar, carinhosamente, sua avó Carmina. Mas a criança pouco tempo resistiu.
Mais novo que a Carlota
apenas quatro anos, em 1913, nasce outro varão que, como o falecido irmão, se
havia de chamar Hermínio. O por quê dos “Hermínios” deve encontrar-se na estima
e admiração nutrida pelo padre Júlio em relação ao seu irmão doutor Hermínio
Gomes, coronel médico.
E a Igreja, e o Bispo e o
povo de Moreira de Rei… o que pensavam, como encaravam, como sentiam os amores
inefáveis de Júlio e Carmina?
A Igreja, vencida – como
noutros casos e muitos foram ao tempo – procurou ignorar, deixando que novos
núcleos sociais (novas famílias), sã e claramente, nascessem, se desenvolvessem
e multiplicassem… Era o devir, o devir natural…
O Bispo foi conquistado
pela gentileza e simpatia da jovem Carlota, quando a Moreira se deslocou na
preparação da Comunhão e aos seus préstimos se habituara e não mais os
dispensara.
Quanto a Moreira de Rei,
ainda se respira a lendária simpatia e admiração que os seus avós dedicavam ao
seu padre e ao seu amigo. A simpatia e a sã convivência foram tais que a
família Gomes deixou em Moreira mais de uma vintena de afilhados.
O último dos Gomes, o
Hermínio Nunato, faleceu no Lar de Trancoso em 8 de Setembro de 1995. Foi o
único sepultado em Trancoso, enquanto a restante família repousa no cemitério
do Terrenho. Assim, o padre Júlio nem post
mortem se separou de D. Carmina, a eterna companheira.
Fiquemos com a profunda e
muitas vezes repetida frase do padre Júlio – situando-se no mundo e na vida –
acerca dos seus amores: “ A Deus não me posso esconder – dos homens do mundo
não me importo”.
Mas, para melhor
conhecermos o homem, aludiremos a alguns episódios onde o seu timbre ficou bem
patente. Assim, ao transpor a Teja, deixou para trás parte de uma paróquia – a
Castanheira – a que não virou costas e onde se deslocava, sempre que a obrigação
e a devoção por ele reclamavam.
É numa dessas deslocações
à Castanheira que, no seu regresso, já noite dentro, uma espera lhe é feita –
quiçá, contrapartida dos ousados amores… Porém o valente e corajoso padre Júlio
não gostou do estorvo e desancou o primeiro, medindo-o um par de vezes com um
varapau, seu companheiro das viagens noturnas.
Se um “viu estrelas, os
outros viram relâmpagos” e, batendo com os calcanhares no rabo, deram às de
Vila Diogo.
Muito ligado à família,
era ele quem aconselhava e prestava auxílio aos pais, já idosos, até porque dos
filhos era o que mais perto vivia. E, nesse contexto, consta em Almendra que o
Conde, grande ricalhaço a tender para o usurpador, queria “apanhar” uns
choupos, próximos de outros dele, ao pai do padre Júlio.
Ora, o pai Gomes escreveu
uma carta ao filho, queixando-se das intenções e arremetidas do Conde. A
resposta, num postal − para que o conteúdo pudesse ser alastrado e vulgarizado –
foi peremptória, precisa e concisa: diga ao Conde que tenha juízo, porque senão
vou aí, meto-lhe o dedo no cu e atiro-o para o telhado! O Conde, se não foi
para o telhado, também não voltou a falar nos choupos.
É isso mesmo. Quem tem cu,
tem medo!
Republicano e democrata
fervoroso, acabou por estar ao lado de Afonso Costa – e contra a própria Igreja
– no processo de laicização da sociedade, com a sua lei da separação da Igreja
e do Estado – “novo quadro institucional e mental, centrado no respeito pela
liberdade de consciência de cada um”.
Sabemos que o padre Júlio
era inteligente, era valente…, mas também sabemos que não era incauto e, por
isso mesmo, nesta agitação político-social (lutando ele abertamente contra o “statu quo ante”), astuciosamente se
fazia acompanhar de duas pistolas que “religiosamente” entregava ao sacristão
quando entrava na igreja, para “laicamente” as retomar quando dela saía.
Hoje falámos da forte
personalidade e dos conturbados amores de um Homem que soube viver, para além
do seu tempo e… de todos os tempos.
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