DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

             

      PADRE JÚLIO GOMES

                 O HOMEM


                         António Moreirão

Natural de Almendra, nascido em 1871, o padre Júlio César Gomes descendia de uma família abastada e complementava uma prole numerosa: seis irmãos – quatro homens e duas mulheres.
Parafraseando, parcialmente, Sá de Miranda, tracemos o seu carácter:

        “Homem dum só parecer,
        De um só rosto e uma só fé,
        Tudo o mais pode ser,
        Mas frouxo e sem carácter é que não é.”

Este homem que amava Deus, que amava, ajudava e defendia os desditosos, ousou amar uma mulher: a filha do dono da casa onde se hospedara, quando nomeado pároco do Terrenho.
Um ano os separava na idade e o seu profundo e desmedido amor os uniu para a vida inteira.
Ela havia de ser encarcerada no seu próprio quarto, durante um ano, e ele transpôs a “Teja” e aquartelou em Moreira de Rei, sua nova paróquia.



Moreira de Rei havia de ser o Paraíso para os amores de Júlio e Carmina. Ela, sempre que podia, dava uma escapadela e aí se entregavam à grandeza e pureza dos seus amores sem limites.



Moreira acolheu, não hostilizou e beneficiou. Recebeu a inteligência e a capacidade de um homem superior que pôs todas as suas forças e influências – que haviam de ser muitas – ao serviço dos seus paroquianos, defendendo-os e orientando-os junto dos poderes públicos, onde era ouvido e se fazia ouvir… A eles se entregou, a todos defendeu, a todos ajudou e todos beneficiaram do seu lema: “Aos ricos nada levo porque são amigos – aos pobres nada levo por nada terem”.
Aplicando e desenvolvendo o seu espírito humanista, o padre Júlio, a breve trecho, se tornou a voz, o querer e o sentir das gentes de Moreira.
Entretanto, as visitas de Carmina são cada vez mais amiudadas e as presenças mais alongadas – presenças e ausências equilibram-se: mês cá, mês lá…
O Bispo impõe o corte cerce do relacionamento. O padre não cede. Sucedeu-se a suspensão do renitente, que durou dois meses. O Bispo, perante tão forte caráter, reconsiderou e recuou.
Os filhos sucedem-se: primeiro o varão, a que havia de chamar Hermínio, e que pouco tempo vivera (três ou quatro anos). Depois nasce a Carlota, que havia de morrer de parto, casada que foi com um professor. Do filho da infortunada Carlota havia de se ocupar, carinhosamente, sua avó Carmina. Mas a criança pouco tempo resistiu.
Mais novo que a Carlota apenas quatro anos, em 1913, nasce outro varão que, como o falecido irmão, se havia de chamar Hermínio. O por quê dos “Hermínios” deve encontrar-se na estima e admiração nutrida pelo padre Júlio em relação ao seu irmão doutor Hermínio Gomes, coronel médico.
E a Igreja, e o Bispo e o povo de Moreira de Rei… o que pensavam, como encaravam, como sentiam os amores inefáveis de Júlio e Carmina?
A Igreja, vencida – como noutros casos e muitos foram ao tempo – procurou ignorar, deixando que novos núcleos sociais (novas famílias), sã e claramente, nascessem, se desenvolvessem e multiplicassem… Era o devir, o devir natural…
O Bispo foi conquistado pela gentileza e simpatia da jovem Carlota, quando a Moreira se deslocou na preparação da Comunhão e aos seus préstimos se habituara e não mais os dispensara.



Quanto a Moreira de Rei, ainda se respira a lendária simpatia e admiração que os seus avós dedicavam ao seu padre e ao seu amigo. A simpatia e a sã convivência foram tais que a família Gomes deixou em Moreira mais de uma vintena de afilhados.
O último dos Gomes, o Hermínio Nunato, faleceu no Lar de Trancoso em 8 de Setembro de 1995. Foi o único sepultado em Trancoso, enquanto a restante família repousa no cemitério do Terrenho. Assim, o padre Júlio nem post mortem se separou de D. Carmina, a eterna companheira.
Fiquemos com a profunda e muitas vezes repetida frase do padre Júlio – situando-se no mundo e na vida – acerca dos seus amores: “ A Deus não me posso esconder – dos homens do mundo não me importo”.
Mas, para melhor conhecermos o homem, aludiremos a alguns episódios onde o seu timbre ficou bem patente. Assim, ao transpor a Teja, deixou para trás parte de uma paróquia – a Castanheira – a que não virou costas e onde se deslocava, sempre que a obrigação e a devoção por ele reclamavam.
É numa dessas deslocações à Castanheira que, no seu regresso, já noite dentro, uma espera lhe é feita – quiçá, contrapartida dos ousados amores… Porém o valente e corajoso padre Júlio não gostou do estorvo e desancou o primeiro, medindo-o um par de vezes com um varapau, seu companheiro das viagens noturnas.
Se um “viu estrelas, os outros viram relâmpagos” e, batendo com os calcanhares no rabo, deram às de Vila Diogo.
Muito ligado à família, era ele quem aconselhava e prestava auxílio aos pais, já idosos, até porque dos filhos era o que mais perto vivia. E, nesse contexto, consta em Almendra que o Conde, grande ricalhaço a tender para o usurpador, queria “apanhar” uns choupos, próximos de outros dele, ao pai do padre Júlio.
Ora, o pai Gomes escreveu uma carta ao filho, queixando-se das intenções e arremetidas do Conde. A resposta, num postal − para que o conteúdo pudesse ser alastrado e vulgarizado – foi peremptória, precisa e concisa: diga ao Conde que tenha juízo, porque senão vou aí, meto-lhe o dedo no cu e atiro-o para o telhado! O Conde, se não foi para o telhado, também não voltou a falar nos choupos.
É isso mesmo. Quem tem cu, tem medo!
Republicano e democrata fervoroso, acabou por estar ao lado de Afonso Costa – e contra a própria Igreja – no processo de laicização da sociedade, com a sua lei da separação da Igreja e do Estado – “novo quadro institucional e mental, centrado no respeito pela liberdade de consciência de cada um”.
Sabemos que o padre Júlio era inteligente, era valente…, mas também sabemos que não era incauto e, por isso mesmo, nesta agitação político-social (lutando ele abertamente contra o “statu quo ante”), astuciosamente se fazia acompanhar de duas pistolas que “religiosamente” entregava ao sacristão quando entrava na igreja, para “laicamente” as retomar quando dela saía.
Hoje falámos da forte personalidade e dos conturbados amores de um Homem que soube viver, para além do seu tempo e… de todos os tempos.



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