ECOS DA FEIRA DE TRANCOSO
(SÃO BARTOLOMEU)
António Porfírio Moreirão
Neste breve apontamento, falaremos da
região que margina o Douro e o Côa, onde a terra, a sul, se desdobra e estende
pela Beira Alta, enquanto, a nascente, se alonga por terras de Espanha.
É desta rica região, onde oliveiras e
amendoeiras se erguem em desafio, onde toda a espécie de searas atapeta montes
e vales, onde, aqui e além, se alinham grandes vinhedos, é da rica e histórica
vila de Almendra – repositório de ecos, memórias e vivências da Feira de
Trancoso – que falaremos.
Recuaremos a tempos idos e distantes,
para melhor compreendermos como a Feira de Trancoso (S. Bartolomeu), naquelas
paragens, era vivida e sentida, nas vertentes económicas, sociais e lúdico-culturais.
Nessa feira eram negociados e transacionados
os tractores da época (machos, vacas e cavalos), tão necessários aos transportes
e ao revolver das terras: lavra das vinhas, olivais e amendoais e arar das
sementeiras. Por isso, no decurso do ano agrícola, os almendrenses imaginavam e
planeavam as compras, as vendas ou as trocas desses animais e assentavam na ida
à Feira de Trancoso – a mãe de todas as feiras.
Assim, familiares, compadres e amigos
faziam circular, entre si, os seus sonhos e os seus planos e, neste
envolvimento, pensam e aprazam a viagem.
Chegado o dia, aí vão eles, em grupos, dormindo
no caminho, neste ou naquele povoado, para, pela manhã, atingirem a tão afamada
feira.
Feitos os negócios, vivida a feira,
adquiridas as lembranças, deitavam-se à viagem de regresso, enquanto os de “olho
para o negócio” continuavam a comprar, a vender ou a trocar, até ao final da
feira, procurando engordar a carteira e, às vezes, ganhavam um “dinheirão”, o
que lhes dava vanglória.
De regresso à terra, eram recebidos com
alegre gritaria e grande algazarra dos “putos” que, postados no caminho, que se
alonga a perder de vista, procuravam descortinar e reconhecer cada vulto que,
ao longe, ia surgindo.
A distância ia-se encurtando e os
miúdos opinavam:
− O pai do Manel traz um macho preto!
− O pai do Chico um castanho!
− O pai do Joaquim traz um buçalo!
Buçalo é um macho novo ainda incapaz de
trabalhar.
E, deste modo, a todos faziam
referência.
Havia tendência e todo o interesse em
comprar buçalos, porque os buçalos contavam para a pequena economia agrícola –
custavam pouco dinheiro, custavam pouco a sustentar, porque apascentavam “à
rédea solta”, sob vigia dos donos e, quando já machos, rendiam bom dinheiro ou,
então, eram exercitados no trabalho e, se agradavam, ficavam.
À medida que os feirantes iam chegando,
logo os miúdos iam identificando os animais: “burreiros” uns, enquanto “eguariços”
outros. A sua ascendência era conhecida pelo tamanho das orelhas – grandes as
do “burreiro” e pequenas as do “eguariço”.
No entanto, uma coisa era certa; o seu,
o que o pai trazia, era o melhor e o mais bonito e, até, já era o mais valente.
Acabado este pequeno reconhecimento,
todos perguntavam pela “lembrança da Feira”. E as lembranças eram mostradas e
entregues aos destinatários - a flauta (pífaro), o realejo (harmónica de
beiços) ou o primeiro canivete ou aquilo que a imaginação do pai havia
preferido. E para as jovens, as companheiras de caminhada, não havia prenda? Claro
que havia – a boneca de papelão – a única prenda destinada às miúdas do tempo.
Chegados a casa, satisfeitas as
primeiras curiosidades, refeitas as forças, era o feirante quem fazia relato
pormenorizado do que vira, ouvira e vivera: gente do todo o lado, de perto e de
longe e muito gado, de todo o gado – todos os dias entrava gado e saía gado!
De tudo dera conta: coisas que viu,
coisas que ouviu, coisas que nunca pensou ver e viver.
E as mulheres a venderem água, ao
copo!...
E os animais a beberem águas das
grandes gamelas espalhadas pela feira do gado!...
Que feira, a de Trancoso! Lá, de tudo
se faz dinheiro – tudo se vende e tudo se compra.
E o “dinheirão” que os trancosenses
ganhavam com o aluguer das lojas (estábulos), para a pernoita das pessoas e dos
animais! Que gananciosos aqueles trancosenses – até parecem aparentados aos
judeus…
De um momento, lembrando-se, tira um
panfleto do bolso da jaqueta e estende-o à mulher, dizendo: são uns versos que um homem e uma mulher
cantavam – é o caso do “maneta que, à machadada, matou o cunhado e a irmã,
na cama”. Ao ouvi-los, havia pessoas que choravam… e toda a gente comprava.
E, assim, era aumentado o repertório
das cantigas que as moças cantavam durante as mondas e os outros trabalhos
agrícolas.
Nos dias seguintes os relatos
continuavam, agora na rua e na frescura da noite e, sentados à porta de casa,
com agrupamentos de familiares e amigos, cada um opinava. Relatos de todas as
horas vividas e de todas as surpresas acontecidas.
Porém, durante muito tempo continuavam
os almendrenses a pensar na Feira de Trancoso e a falar de Trancoso, quando,
aos domingos, dividiam o tempo entre as “visitas às capelas” e os longos e
minuciosos exames às adventícias alimárias: tiravam-nas das lojas,
passavam-lhes as mãos afavelmente pela testa, alongavam-lhe as orelhas,
amaciavam-lhe o lombo, davam-lhe duas pancadinhas nas ancas e, escorrendo a mão
pelo rabo, tomavam-lhe a pata. Feito o exame elegiam as vedetas.
Depois, de tempos a tempos, voltavam a
observá-los e faziam conjecturas sobre o seu aspeto e desenvolvimento.
Trancoso é bonito e tem muralhas em
toda a volta, tem torres (antigamente eram quinze) e tem um grande castelo. E tem
teatro – tem uma casa de teatro, dentro do castelo, à entrada, do lado
esquerdo. É uma grande e bonita casa!
Fomos, à noite, ver teatro e foi lindo:
uma peça que fazia chorar e outra que fazia rir.
Tudo havia em Trancoso, até Teatro!
E agora, em jeito de quem se despede, deixarei
duas notas aos trancosenses: em Almendra, todo o indivíduo que se prezava, no
ano do seu casamento, levava a mulher à feira de Trancoso (viagem de núpcias
diferida no tempo).
Tomem lá segunda, não menos singular: à
época, a ligação Almendra–Trancoso era feita através de caminhos vicinais que
se interligavam e se enrolavam e desenrolavam, em curvas e contracurvas, num
nunca mais acabar, ladeira acima, ladeira abaixo. E, se para aqueles que já
tinham calcorreado o caminho, a distância era grande, para os que o não
conheciam era maior porque tinha a medida da imaginação.
Ora, quando à refeição, ao fazer do
molho, se deitava o azeite, de maneira demorada e abundante (em curvas e
contracurvas) alguém sussurrava do lado -Trancoso…
Trancoso… Trancoso… - alusão metafórica ao longo e tortuoso caminho para
esta vila, que, deste modo, entrou no quotidiano dos almendrenses.
Estes são os ecos que ressoaram em Almendra
e voltaram à mítica, histórica e nobre Vila de Trancoso, pela mão de um
Almendrense.
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