DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

                  

 ECOS DA FEIRA DE TRANCOSO

                         (SÃO BARTOLOMEU)

                                          António Porfírio Moreirão

Neste breve apontamento, falaremos da região que margina o Douro e o Côa, onde a terra, a sul, se desdobra e estende pela Beira Alta, enquanto, a nascente, se alonga por terras de Espanha.
É desta rica região, onde oliveiras e amendoeiras se erguem em desafio, onde toda a espécie de searas atapeta montes e vales, onde, aqui e além, se alinham grandes vinhedos, é da rica e histórica vila de Almendra – repositório de ecos, memórias e vivências da Feira de Trancoso – que falaremos.
Recuaremos a tempos idos e distantes, para melhor compreendermos como a Feira de Trancoso (S. Bartolomeu), naquelas paragens, era vivida e sentida, nas vertentes económicas, sociais e lúdico-culturais.
Nessa feira eram negociados e transacionados os tractores da época (machos, vacas e cavalos), tão necessários aos transportes e ao revolver das terras: lavra das vinhas, olivais e amendoais e arar das sementeiras. Por isso, no decurso do ano agrícola, os almendrenses imaginavam e planeavam as compras, as vendas ou as trocas desses animais e assentavam na ida à Feira de Trancoso – a mãe de todas as feiras.


Assim, familiares, compadres e amigos faziam circular, entre si, os seus sonhos e os seus planos e, neste envolvimento, pensam e aprazam a viagem.
Chegado o dia, aí vão eles, em grupos, dormindo no caminho, neste ou naquele povoado, para, pela manhã, atingirem a tão afamada feira.
Feitos os negócios, vivida a feira, adquiridas as lembranças, deitavam-se à viagem de regresso, enquanto os de “olho para o negócio” continuavam a comprar, a vender ou a trocar, até ao final da feira, procurando engordar a carteira e, às vezes, ganhavam um “dinheirão”, o que lhes dava vanglória. 
De regresso à terra, eram recebidos com alegre gritaria e grande algazarra dos “putos” que, postados no caminho, que se alonga a perder de vista, procuravam descortinar e reconhecer cada vulto que, ao longe, ia surgindo.
A distância ia-se encurtando e os miúdos opinavam:
− O pai do Manel traz um macho preto!
− O pai do Chico um castanho!
− O pai do Joaquim traz um buçalo!
Buçalo é um macho novo ainda incapaz de trabalhar.


E, deste modo, a todos faziam referência.
Havia tendência e todo o interesse em comprar buçalos, porque os buçalos contavam para a pequena economia agrícola – custavam pouco dinheiro, custavam pouco a sustentar, porque apascentavam “à rédea solta”, sob vigia dos donos e, quando já machos, rendiam bom dinheiro ou, então, eram exercitados no trabalho e, se agradavam, ficavam.
À medida que os feirantes iam chegando, logo os miúdos iam identificando os animais: “burreiros” uns, enquanto “eguariços” outros. A sua ascendência era conhecida pelo tamanho das orelhas – grandes as do “burreiro” e pequenas as do “eguariço”.
No entanto, uma coisa era certa; o seu, o que o pai trazia, era o melhor e o mais bonito e, até, já era o mais valente.
Acabado este pequeno reconhecimento, todos perguntavam pela “lembrança da Feira”. E as lembranças eram mostradas e entregues aos destinatários - a flauta (pífaro), o realejo (harmónica de beiços) ou o primeiro canivete ou aquilo que a imaginação do pai havia preferido. E para as jovens, as companheiras de caminhada, não havia prenda? Claro que havia – a boneca de papelão – a única prenda destinada às miúdas do tempo.
Chegados a casa, satisfeitas as primeiras curiosidades, refeitas as forças, era o feirante quem fazia relato pormenorizado do que vira, ouvira e vivera: gente do todo o lado, de perto e de longe e muito gado, de todo o gado – todos os dias entrava gado e saía gado!
De tudo dera conta: coisas que viu, coisas que ouviu, coisas que nunca pensou ver e viver.
E as mulheres a venderem água, ao copo!...
E os animais a beberem águas das grandes gamelas espalhadas pela feira do gado!...
Que feira, a de Trancoso! Lá, de tudo se faz dinheiro – tudo se vende e tudo se compra.
E o “dinheirão” que os trancosenses ganhavam com o aluguer das lojas (estábulos), para a pernoita das pessoas e dos animais! Que gananciosos aqueles trancosenses – até parecem aparentados aos judeus…
De um momento, lembrando-se, tira um panfleto do bolso da jaqueta e estende-o à mulher, dizendo: são uns versos que um homem e uma mulher cantavam – é o caso do “maneta que, à machadada, matou o cunhado e a irmã, na cama”. Ao ouvi-los, havia pessoas que choravam… e toda a gente comprava.
E, assim, era aumentado o repertório das cantigas que as moças cantavam durante as mondas e os outros trabalhos agrícolas.
Nos dias seguintes os relatos continuavam, agora na rua e na frescura da noite e, sentados à porta de casa, com agrupamentos de familiares e amigos, cada um opinava. Relatos de todas as horas vividas e de todas as surpresas acontecidas.
Porém, durante muito tempo continuavam os almendrenses a pensar na Feira de Trancoso e a falar de Trancoso, quando, aos domingos, dividiam o tempo entre as “visitas às capelas” e os longos e minuciosos exames às adventícias alimárias: tiravam-nas das lojas, passavam-lhes as mãos afavelmente pela testa, alongavam-lhe as orelhas, amaciavam-lhe o lombo, davam-lhe duas pancadinhas nas ancas e, escorrendo a mão pelo rabo, tomavam-lhe a pata. Feito o exame elegiam as vedetas.
Depois, de tempos a tempos, voltavam a observá-los e faziam conjecturas sobre o seu aspeto e desenvolvimento.
Trancoso é bonito e tem muralhas em toda a volta, tem torres (antigamente eram quinze) e tem um grande castelo. E tem teatro – tem uma casa de teatro, dentro do castelo, à entrada, do lado esquerdo. É uma grande e bonita casa!
Fomos, à noite, ver teatro e foi lindo: uma peça que fazia chorar e outra que fazia rir.
Tudo havia em Trancoso, até Teatro!


E agora, em jeito de quem se despede, deixarei duas notas aos trancosenses: em Almendra, todo o indivíduo que se prezava, no ano do seu casamento, levava a mulher à feira de Trancoso (viagem de núpcias diferida no tempo).
Tomem lá segunda, não menos singular: à época, a ligação Almendra–Trancoso era feita através de caminhos vicinais que se interligavam e se enrolavam e desenrolavam, em curvas e contracurvas, num nunca mais acabar, ladeira acima, ladeira abaixo. E, se para aqueles que já tinham calcorreado o caminho, a distância era grande, para os que o não conheciam era maior porque tinha a medida da imaginação.
Ora, quando à refeição, ao fazer do molho, se deitava o azeite, de maneira demorada e abundante (em curvas e contracurvas) alguém sussurrava do lado -Trancoso… Trancoso… Trancoso… - alusão metafórica ao longo e tortuoso caminho para esta vila, que, deste modo, entrou no quotidiano dos almendrenses.
Estes são os ecos que ressoaram em Almendra e voltaram à mítica, histórica e nobre Vila de Trancoso, pela mão de um Almendrense.



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