O ASSASSINATO DE ANNA POLITKOVSKAYA
Há quem diga que a motivação para o assassinato de Anna
Politkovskaya foi a conveniência em meter medo aos jornalistas. Terá sido
assim, em parte. Politkovskaya não foi a única periodicista abatida por
escrever contra a corrupção do governo russo, ou contra o desprezo pela vida
humana na Chechénia. Numerosos jornalistas e defensores dos direitos humanos
deram as vidas pelas suas causas. Após uma série de assassinatos, a «Novaya
Gazeta» anunciou publicamente que não se arriscava a enviar mais jornalistas
para a Chechénia.
O corpo de Politkovskaya foi encontrado com diversos ferimentos de
bala, no elevador do seu bloco de apartamentos, em Moscovo, a 7 de outubro de
2006. Os disparos que a mataram foram efetuados a curta distância.
Esta mulher demonstrou em ocasiões sucessivas uma coragem anormal.
Devia saber perfeitamente que estava a mais no mundo.
Curiosamente, Anna nasceu em Nova Iorque, filha de diplomatas
ucranianos a trabalhar nas Nações Unidas. Tinha 48 anos quando morreu. Era cidadã russa,
embora tivesse também passaporte americano. Cresceu em Moscovo e licenciou-se
em jornalismo, na Universidade Estatal de Moscovo.
Tornou-se conhecida por escrever sobre a Chechénia. Tratava-se de
um país conturbado e dividido, onde os soldados chegavam a vender os cadáveres
das suas vítimas às famílias que pretendiam proporcionar aos mortos funerais
conformes ao ritual islâmico.
Os seus matadores vieram de lá. Anna denunciou raptos, torturas e
execuções em massa, da parte de militares russos.
Anna Politkovskaya era casada e tinha dois filhos. Trabalhou para
diversos jornais russos. Escreveu sobre os refugiados de guerra e criticou a
Rússia de Putin.
Vladimir Putin era um oficial superior da KGB. Subiu até se tornar
primeiro-ministro de Boris Yeltsin e sucedeu-lhe como Presidente da Rússia.
Para além de denunciar os crimes de guerra russos na Chechénia,
Anna acusou também a administração chechena pró russa dos Kadyrov de diversos
abusos. Publicou livros críticos do regime que dominou a Rússia após 1991 e
preocupou-se com a violentação dos direitos humanos no Cáucaso do Norte. Foi
agraciada com diversos prémios internacionais.
Sobre a KGB, escreveu: «respeita
apenas os fortes e devora os fracos».
Opinou também: «regressámos
a um vazio de informação. Deixaram-nos apenas a Internet, onde a comunicação
ainda é livre. Se quiseres continuar a trabalhar como jornalista, tens de
servir Putin. De outro modo, conta com uma bala, um veneno, ou um julgamento,
conforme os cães de guarda de Putin acharem melhor».
Por vezes, foi além do seu trabalho de jornalista. Numa altura em
que Grozni estava a ser submetida a bombardeamentos violentos, Politkovskaya
ajudou a organizar a retirada de um grupo de cidadãos idosos. Quando muitas
centenas de crianças da escola de Beslan, na Ossétia do Norte, foram vítimas de
sequestro, ofereceu-se como mediadora e meteu-se num avião em direção à cidade.
Não chegou lá. Foi envenenada com chá, durante o voo, em setembro de 2004.
Perdeu os sentidos e foi retirada do avião, numa escala do percurso, em
Rostov-na-Donu, para receber tratamento médico.
Anna Politkovskaya queixava-se ocasionalmente das pedras que lhe
iam atravessando no caminho: «Recebo
ameaças por carta, por telefone e pela Internet. Semanalmente, sou chamada a
depor perante as autoridades por causa dos meus artigos. A primeira pergunta é
sempre a mesma: como é que obteve esta informação?»
Anna podia bem com o próprio medo. Em dezembro de 2005, numa
conferência sobre a liberdade de imprensa, organizada em Viena pelos Repórteres
sem Fronteiras, declarou: «As pessoas, às
vezes, pagam com as próprias vidas por dizerem em voz alta o que pensam. Uma
pessoa pode ser morta por me prestar informações. Não sou a única em perigo.
Tenho exemplos que provam o que digo.»
Foi ameaçada de violação
e de morte. Chegou a ser torturada e submetida a uma falsa execução, levada a
cabo por oficiais russos, na Chechénia. Anna descreveu o episódio: «Um tenente-coronel de rosto moreno e olhos
escuros e salientes disse-me, como se falasse de negócios: “Vamos. Vou
matar-te.” Fez-me sair da tenda para a escuridão total. Lá, as noites são
impenetráveis. Depois de caminharmos um bocado, disse: “Quer estejas pronta ou
não, chegou a hora”. O fogo rebentou em volta de mim, guinchando, rugindo e
rosnando. O tenente-coronel parecia muito feliz por me ver aterrorizada.
Tinha-me posto atrás dum lançador múltiplo de foguetões Grad no momento em que
era disparado».
Ao contrário de outros casos semelhantes, o assassinato de Anna
Politkovskaya não ficou impune. A opinião pública internacional obrigou as
autoridades russas a uma investigação séria.
Foram
presos dez homens suspeitos de terem participado no crime. Três eram chechenos
e irmãos: Ibragim, Dzhabrail e Rustam Makhmudov. Terá sido Rustam a efetuar os
disparos. Um antigo investigador da polícia foi também acusado. Em maio de
2007, os arguidos foram apresentados ao Tribunal Militar do Distrito de
Moscovo.
Em
dezembro de 2008, um dos editores da Novaya Gazeta declarou, ao tribunal, que
tinha recebido informações segundo as quais Dzhabrail Makhmudov seria agente da
FSB. Recusou indicar as fontes de informação.
O coronel Pavel Ryaguzov, membro da FSB (a
organização policial que sucedeu à KGB para a investigação das questões
internas), foi acusado de ligações aos assassinos, mas não de participação no
crime.
O julgamento dos acusados pela morte de Anna Politkovskaya sofreu várias vicissituides e atrasos. Teve mesmo de ser repetido.
Em dezembro de 2012, Dmitry Pavliuchenkov, um antigo polícia,
considerado o principal organizador do assassínio e acusado de ter dado
informações sobre os hábitos da vítima e proporcionado a arma para o crime, foi
condenado a 11 anos de cadeia numa colónia penal de alta segurança.
Ninguém acreditou que tivesse agido por iniciativa própria. O
editor de Politkovskaya na Novaya Gazeta continuou a afirmar que ela tinha sido
assassinada porque as suas investigações prejudicavam os interesses de
financeiros russos. Fontes próximas do governo sugeriram que inimigos de Putin
a residir fora da Rússia (pareciam referir-se em especial ao milionário
Berezovsky, exilado em Londres) encomendaram o atentado com a intenção de
provocar uma crise que lhes facilitasse o regresso ao Poder.
(Capítulo do livro não publicado Estranho Ofício de Matar, de António Trabulo)
Sem comentários:
Enviar um comentário