A NARRATIVA TELÚRICA
EM ESCRITORES MÉDICOS TRANSMONTANOS
A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA E BENTO DA
CRUZ
I
O
conceito de narrativa telúrica, ou de telurismo literário, é sul-americano. É
pouco referenciado na cultura europeia.
O
sentimento telúrico é a consciência da aliança natural do homem com a terra, o
respeito pelas forças da natureza e a aceitação da influência que o solo natal
exerce nos costumes e no caráter dos seus habitantes. Veremos adiante como a
sua presença é bem viva na obra de escritores médicos transmontanos. A novela
telúrica configura uma moral própria, com um código de conduta adequado ao
mundo.
O
telurismo parece ter nascido na Colômbia. Eduardo Pachón Padilla, notável
crítico literário colombiano falecido em 1995, organizou uma antologia de
contos, sucessivamente revista e aumentada. Elaborou também uma teoria sobre a
relação do homem hispano-americano com o elemento telúrico. No seu modo de ver,
a Europa privilegiou a história, o humano, enquanto a América deu lugar à
geografia, ao território. A novela hispano-americana refletiria o processo de
adaptação do homem ao ambiente que o rodeava e o respeito pelo poder da
natureza indomada, a qual iria, aos poucos, modelando o seu temperamento e os
seus hábitos. As fronteiras literárias não são tão nítidas como as dos
continentes e as influências telúricas estão bem presentes em escritores
europeus.
A
novela terrígena, novela da terra, ou telúrica, foi assim chamada porque a
terra era protagonista dela. Terá nascido com José Eustasio Rivera, também
colombiano.
“La
voragine”, publicada em 1924, é considerada por muitos a primeira novela
genuinamente americana, após séculos de dominação da literatura europeia. A
“agressividade maligna e misteriosa da selva tropical” lançaria o homem contra
o homem.
A
Rivera seguiram-se o argentino Ricardo Güiraldes, que publicou em 1926 o
romance Don Segundo Sombra, uma história sobre a decadência dos gaúchos e o
venezuelano Rómulo Gallegos, cuja obra fundamental, Dona Bárbara, saiu em 1929.
Curiosamente,
Gallegos chegou a ser presidente do seu país. Foi eleito por voto secreto e
universal, mas exerceu o mandado durante menos de um ano, tendo sido derrubado
por um golpe militar. Foi um dos primeiros novelistas sul-americanos a granjear
fama universal.
No
espaço andino, e em particular, na Bolívia, Peru e Equador, a literatura da
terra ganhou características especiais quando se envolveu na questão dos
índios. Deu origem a um movimento literário, ideológico e político bem definido
que ficou conhecido como “indigenismo”.
Desse
caldo de culturas, nasceria o realismo mágico, de Miguel Ángel Asturias e
Gabriel Garcia Marques. O realismo tradicional foi enriquecido com lendas e
elementos mágicos e fantásticos.
A
novela telúrica desenvolveu-se de 1920 a 1945. Cronologicamente coincidiu, em
parte, com o neorrealismo europeu, que emergiu do modernismo para dar
seguimento, de uma forma nova, ao realismo e ao naturalismo do século XIX.
O
neorrealismo literário desenvolveu-se entre os finais dos anos 30 e os 50. Em
Portugal representou uma revolta intelectual contra o salazarismo e assentou
largamente na cultura marxista. Curiosamente, além da influência literária
italiana, agregou uma componente brasileira, iniciada por Graciliano Ramos e
José Lins do Rego, que denunciava as injustiças sociais no nordeste do Brasil.
No nosso país, nasceu em 1940, com Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol e
continuou com Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio e outros,
entre os quais o nosso colega Fernando Namora.
As
sensações que suportam a literatura telúrica são demasiado fortes para se
espartilharem em correntes literárias. Quem as procurar, há de encontrar
indícios delas em continentes e épocas diversas. Em contacto com a natureza, os
homens estabeleceram há muito as regras e o saber que possibilitavam a paz
interior e exterior.
(Continua)
Estou lendo agora “Manuelzão e Miguilim”; novela escrita por João Guimarães Rosa e considerada por seu editor uma narrativa telúrica. Obrigado por esclarecer esse conceito.
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