A NARRATIVA TELÚRICA
EM ESCRITORES MÉDICOS TRANSMONTANOS
A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA E BENTO DA CRUZ
III
Voltemo-nos
agora para Bento da Cruz.
Bento
Gonçalves da Cruz nasceu na aldeia de Peireses (Montalegre, Trás-os-Montes), em
1925 e faleceu no Porto, em 2015.
18
anos mais novo que Torga, teve uma vida longa e produziu uma obra literária
extensa. Publicou 14 livros de ficção (entre romances e contos), 3 estudos
biográficos e 3 volumes de crónicas.
Na
sua obra central, o Planalto de Gostofrio, descreveu ao pormenor o trabalho
infantil a que foi sujeito, colaborando para o sustento da família na
pastorícia e na rega dos campos.
Aos
quinze anos, ingressou na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges
beneditinos, e ali estudou durante seis anos. Durante esse período, dirigiu
duas revistas estudantis.
Dois
anos mais tarde, matriculou-se em Medicina, em Coimbra.
Já
médico, exerceu clínica geral e estomatologia na região do Barroso. Acabou por
se fixar no Porto, em1971.
Em
1974, fundou o jornal «Correio do Planalto», que dirigiria até perto do final
dos seus dias. Reuniu as crónicas que ali publicou sobre a região natal nos
três volumes dos «Prolegómenos», que recordam a aldeia da sua infância e narram
histórias antigas.
Para preparar este texto, apoiei-me no
Planalto de Gostofrio, um romance de inspiração autobiográfica recheado de
imagens poéticas, nas Histórias da Vermelhinha, uma coletânea de contos
recolhidos da tradição rural do Barroso e em dois volumes dos Prolegómenos.
A
escrita de Bento da Cruz é alegre e fácil de ler.
Gostofrio (Peireses) tem crescido
comigo. É hoje uma aldeia com ares de burgo, mas ainda me lembro dela de
tamancos e burel, toda negra nas casitas de colmo e pedra bruta, sem o menor
fogacho de telha ou desmaio de cal. Os sobrados contavam-se pelos dedos e,
todos juntos, não somariam tantas janelas de vidraça como dias tem o mês.
Peireses tem um anel de montanhas à
volta. Nos dias de sol, as montanhas afastam-se e o mundo é grande. Nos de
vento e chuva, as montanhas apertam o cerco, o mundo é pequeno e as pessoas
sentem um constrangimento de angústia no coração.
Bento
da Cruz escreveu, no Prefácio de Histórias da Vermelhinha:
A fauna desses caminhos do Senhor era
um espetáculo variegado e ininterrupto: lavradores que subiam da Ribeira com a
carga do vinho ou de Ruivães, com a carga do sal; almocreves de ou dois machos
que mercadejavam em tudo e morriam pobres; mendigos com alforges nem sempre
cheios de esmolas, mas sempre repletos de desilusões; ciganos, olho vivo, mão
ligeira, buena dicha, contrabandistas de fardo às costas e pé furtivo; galegos
escachapernados em montes de peles e boas mulas; saltimbancos dos sete
instrumentos e setenta artimanhas; ourives ambulantes de baú a tiracolo e credo
na boca… …feirantes, romeiros, cumpridores de promessas, pedintes para a «casa
ardida»;
Assim como nenhum espadachim saía à rua
desarmado duma boa espada, também nenhum barrosão viajava desprevenido dum bom
lodo.
Esquematicamente, poderíamos dizer que
os nossos avós se vestiam de burel no inverno e de linho no verão. Do que a
terra dava e a dona fiava.
De linho era toda a roupa interior, os
lençóis e travesseiros da cama, as toalhas de rosto e da mesa, os sacos de
farinha e do grão, os alforges da burra. De lã de ovelha as capas, as calças,
as saias, os coletes, os saiotes, os aventais, os carpins, as meias, as
polainas, as mantas e os cobertores.
Tendo
em comum o amor profundo à terra natal, Miguel Torga e Bento da Cruz, sentem o
telurismo de formas diferentes.
Em
Torga, o sentimento telúrico é dramático e quase obsessivo. A terra é o ventre
materno, é a deusa procriadora. Torga tem saudades de si próprio.
Tal
como Torga, Bento da Cruz sente necessidade de se revigorar no contacto
periódico com a terra mãe. É, contudo, um otimista. Bento da Cruz tem saudades
do passado. Procura preservar a sua memória nos seus escritos.
Para o diabo os pensamentos tristes. Eu
fico-me com esta beleza. Com este solo atapetado de folhas, esta irradiação de
luz que sobe pelas árvores e ilumina o firmamento.
Com a graciosidade de uma carvalha de
copa mais aparada e redonda que jarra de centro de mesa e um círculo de folhas
na relva como a sua imagem refletida na colina. Com as cabriolas de um gato
amarelo que afia as garras na ervagem seca e rosna como a dizer-me: agarra-te à
vida; não te deixes ir abaixo.
Em
ambos, o contacto com a terra mãe, com as origens, renova o vigor do homem. É,
no essencial, o mito de Anteu. Anteu era filho de Poseidon, deus do mar, e de Gaia, a terra. Anteu era um
gigante malvado e extraordinariamente forte com os pés assentes na terra, sua
mãe, mas que perdia as forças se fosse levantado no ar. Foi derrotado e morto
por Hércules, que o sustentou nos braços, impedindo-o de poisar no chão.
Este
bronze é de António de Poillaiolo, pintor, escultor e anatomista, 20 anos mais
velho que Leonardo da Vinci.
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