DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017



   A MORTE DE JOÃO PAULO I



Na madrugada do dia 28 de setembro de 1978, a freira Vincenza Taffarel deu com o papa João Paulo I morto.
Trabalhava para ele havia 18 anos e servia-lhe habitualmente o café da manhã. Na versão oficial dos factos, terá sido o padre Diego Lorenzi, um dos secretários do papa, a encontrar o cadáver. A causa da morte foi «possivelmente associada com enfarte do miocárdio». A freira fez depois voto de silêncio, o que levantou suspeitas. Que terá sido obrigada a calar?
O fim súbito dum papado tão breve alimentou rumores. Aldo Moro tinha sido assassinado quatro meses antes. Multiplicaram-se os boatos. Alguns deles estiveram na origem de teorias conspirativas.
Albino Luciani nasceu no norte de Itália, em 1912. Tinha sido Patriarca de Veneza. Foi eleito Papa, num conclave rápido, a 26 de agosto de 1978 e entronizado a 3 de setembro. O cardeal Giuseppe Siri, tido como conservador, era, para a imprensa, o favorito, mas a imprensa engana-se com frequência. Falava-se de outros nomes. Luciani nunca trabalhara no Vaticano, o que lhe reduziria as probabilidades de ser eleito. Muita gente ficou surpreendida com a nomeação, a começar pelo novo papa. Diz-se mesmo que tentou recusar o cargo.
A hora exata da sua morte é desconhecida. Foi avistado vivo pela última vez por volta das 23.30. O corpo foi encontrado às 4.30 da manhã.
Conta-se que previu o próprio fim. «Alguém mais forte que eu e que merece estar nesse lugar estava sentado à minha frente, durante o conclave. Ele virá, porque eu me vou.» Diz-se que esse homem era o polaco Karol Wojtyla.



O papa terá falado na possibilidade da sua morte ao cardeal John Magee um dia antes de falecer. Ou se sentia doente, ou ameaçado. A verdadeira causa do óbito é desconhecida. O cadáver não terá sido autopsiado. As leis canónicas dificultariam a autópsia do Sumo Pontífice e a família não concordaria com ela.
A Santa Sé declarou que o papa João Paulo I morreu na sua cama de um ataque cardíaco. Contudo, treze anos mais tarde, alguns familiares afirmaram que o papa não faleceu na cama, mas no seu gabinete de trabalho.
Esta e outras incongruências deixam no ar a hipótese de morte violenta de João Paulo I que, segundo alguns, terá sido envenenado.
O Papa foi embalsamado depressa demais. De acordo com um comunicado da Ansa, uma agência de notícias italiana, um automóvel do Vaticano foi buscar às suas casas os embalsamadores Renato e Ernesto Sinoracci às cinco da manhã, meia hora depois de ter sido encontrado o corpo do Papa.
O Vaticano segue, em parte, o paradigma dos impérios: chefe por eleição e vitalício. Em teoria, o Papa tem um poder quase absoluto. Não existe, contudo, poder sem conhecimento e não é certo que os altos funcionários da Santa Sé facultem de imediato aos novos chefes os segredos mais comprometedores. Lembremos que há secretários que desempenham funções durante papados consecutivos.
Uma vez posta a hipótese de assassinato, foram apontados muitos presumíveis culpados: a Opus Dei, que se erigira em estado dentro do Estado Pontifício; a Cúria Romana, avessa a mudanças políticas ou doutrinárias; a Maçonaria, que há muito infiltrara o Vaticano, apesar das ameaças de excomunhão; a Máfia, ligada a alguns membros da hierarquia católica e às instituições financeiras da Igreja.
O Banco católico Ambrosiano fora fundado no final do sec. XIX, em Milão. O seu nome provém de Santo Ambrósio, antigo arcebispo da cidade. Em 1971, Roberto Calvi, apoiado pela loja maçónica P2 (Propaganda Dois), de que era membro, assumiu a sua presidência e criou, na América do Sul, uma rede complexa de companhias fantasma destinadas a retirar dinheiro de Itália. Calvi aproximou-se do Banco do Vaticano, oficialmente designado por Istituto per le Opera di Religione e do seu presidente, bispo Paul Marcinkus. Financiou o jornal Corriere della Sera, alguns partidos italianos de Direita e o ditador da Nicarágua, Anastasio Somoza, que enfrentava a rebelião sandinista. Terá também enviado fundos para o sindicato polaco Solidariedade. Em 1978, ano da morte de João Paulo I, o Banco da Itália elaborou um relatório sobre o Ambrosiano, prevendo o seu colapso financeiro e desencadeando uma investigação policial.
O escândalo do Banco Ambrosiano veio relançar as suspeitas sobre o eventual assassinato de João Paulo I.


                                     Roberto Calvi

Em 1981, a polícia irrompeu pelas instalações da loja maçónica P2. Prendeu Licio Gelli, o grão-mestre, e encontrou provas que incriminavam Roberto Calvi. Calvi foi condenado à pena de quatro anos de cadeia, mas recorreu da sentença e conseguiu ser libertado.
No ano seguinte, não foi possível esconder por mais tempo as dívidas da instituição. A secretária de Calvi, Graziella Corrocher, de 55 anos, deixou um bilhete a denunciar os prejuízos que o seu chefe causara ao banco e aos empregados, antes de se atirar duma janela do 5º andar do edifício do Banco Ambrosiano
Calvi fugiu do país com um passaporte falso. A 18 de julho, deram com ele enforcado na ponte Blackfriars, em Londres. 



    Poderá ter-se tratado de suicídio, mas um homem, para se matar, precisa de viajar para tão longe?
O Banco do Vaticano perdeu, também, muitos milhões de dólares.
O escândalo com os investimentos da Santa Sé não terminou aí. Em 1994, o primeiro-ministro Bettino Craxi, socialista, o ministro da Justiça Claudio Martelli e Licio Gelli, da loja P2, foram acusados de cumplicidade no caso do Banco Ambrosiano. Gelli foi condenado a doze anos de prisão.
Verdadeiro ou falso, o assassinato dum Papa é um excelente tema jornalístico e literário. Sucederam-se as publicações a explorar o assunto. No seu livro Em nome de Deus, o escritor inglês David Yallop sugeriu que o Papa fora assassinado por ter descoberto esquemas de corrupção no Istituto per le Opera di Religione. De acordo com Yallop, Albino Luciano teria sido feito papa por ser considerado um homem modesto e influenciável. Ao assumir funções, revelara um caráter determinado que lhe iria custar a vida.
A obra de David Yallop não ficou isolada a defender a teoria da conspiração. Outras se lhe seguiram. A Santa Sé defendeu-se. Num livro muito bem documentado a que deu o nome de Um Ladrão na noite, John Cornwell refutou a argumentação de Yallop e dos seus seguidores. Segundo ele, Albino Luciani morrera de doença natural.
Nenhum deles merece inteira confiança. Se Yallop é um jornalista de investigação especializado em escrever sobre mortes suspeitas de gente famosa, Cornwell, ex-seminarista, terá tido a sua publicação encomendada e paga pelo Vaticano.



O estado aparente de saúde do papa é também objeto de controvérsia. Cornwell afirma que o Papa estava muito doente. Escreveu, perto do final do seu livro: «João Paulo I quase de certeza morreu de embolia pulmonar. Necessitava de descanso e de medicação. Se estes tivessem sido receitados, provavelmente sobreviveria. As advertências de uma doença mortal estavam à vista de todos. Pouco ou nada foi feito para socorrê-lo».
As suposições de John Cornwell vão no interesse do Vaticano, que, desejoso de explicar a morte do papa por causas naturais, tentou convencer a opinião pública que Albino Luciani tinha a saúde debilitada. São, porém, negadas pelo testemunho do seu médico pessoal desde os tempos de Veneza, Dr. António Da Ros. Quinze anos após a morte do Papa, Ros declarou à revista 30 Giorni que o tinha observado cinco dias antes da morte e que a sua saúde era excelente. Aliás, os conclaves evitam, há muito, elevar ao papado cardeais demasiado doentes.
Há quem tente ligar a morte de João Paulo I a vaticínios e premunições. 



     Segundo alguns, o Papa teria adivinhado a morte próxima. Dizem outros que a profecia feita por Nostradamus no séc. XVI se refere a ele:

   O papa eleito será traído pelos seus eleitores,
   Esta pessoa prudente será reduzida ao silêncio.
   Irão matá-lo por ele ser muito bondoso,
   Atacados pelo medo, tratarão da sua morte à noite.



De acordo com um dos irmãos de João Paulo I, a Irmã Lúcia, que ele visitou no Carmelo de Coimbra quando era Arcebispo de Veneza, teria também feito uma profecia. Tratou o Cardeal Luciani por Santo Padre. Luciani ficou intrigado e perguntou «Porquê?» Lúcia terá respondido: «Vossa Eminência será feito papa… Mas terá um pontificado muito breve…»
Lúcia nunca teve muito juízo e gostou sempre de dar nas vistas. Não foi, contudo, a vidente quem associou Albino Luciani ao «bispo vestido de branco» que terá sido avistado por ela e pelos seus primos Jacinta e Francisco durante uma das supostas aparições de Nossa Senhora de Fátima, em 1917.
Luciani foi Papa durante trinta e três dias. Pode ter tido morte natural, mas as declarações oficiais da Santa Sé, cheias de imprecisões, contribuíram para alimentar a teoria do seu assassinato. Nada teria acontecido de novo no palácio de São Pedro. Muitos dos seus antecessores tiveram morte violenta. Pelo menos dez foram envenenados. 
    A pressa em chamarem os embalsamadores aumentou as suspeitas. Não se vê para ela outra explicação, senão o descontrolo dos responsáveis do Vaticano e a urgência em se desembaraçarem das evidências do suposto crime.

(Capítulo do livro de António Trabulo, por publicar, Estranho ofício de Matar)

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